Camila Nobrega e Rogério Daflon, do Canal Ibase
Quem vê o Santa Marta do asfalto costuma achar que a favela tem serviços idênticos aos cidade, é um modelo de ocupação policial e é ponto certo para turistas que querem ver comunidades cariocas de perto. A vida de quem mora lá, porém, está longe de corresponder a essas expectativas. Foi o que mostrou manifestação desta segunda-feira, organizada pela comunidade, que ocupou ruas as principais ruas do bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio, onde fica a favela. Acima de tudo, o protesto deixou claro que a primeira favela em que a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi instalada não tem a atenção devida do poder público. Representantes da população da comunidade disseram que a UPP, sem os investimentos de que o lugar tanto precisa, é mais uma forma de opressão do estado.
Em um protesto pacífico do início ao fim, os manifestantes carregaram muitas faixas pedindo o fim das remoções de famílias que há décadas moram no pico do morro, reivindicaram uma inclusão social que não seja “maquiagem” e pediram investimentos em educação e saúde. Os moradores fizeram entoavam vários gritos de guerra pedindo também mais respeito da polícia.
O morador João Batista Aragão deu exemplos concretos do comportamento totalitário das forças policiais. Apontou para o muro que cerca o morro, que, aliás, é totalmente desnecessário. É o que aponta estudo do Instituto Pereira Passos publicado à época de sua construção. De acordo com a pesquisa, há tempos não havia crescimento horizontal naquele local. Aragão também citou o sistema de vigilância de mais de 500 câmeras. A imagem de favela modelo, para os moradores, cai por terra quando se analista a falta de uma política de reurbanização discutida com os residentes dali.
– Priorizaram a segurança e deixaram o plano inclinado com o funcionamento totalmente comprometido e o esgoto a céu aberto. Favela modelo de quê? Estamos é abandonados – disse João Batista.
O rapper Fiell contou que, como o plano inclinado vive em manutenção, se alguém passa mal nessas horas e mora no alto do morro, na região do Pico, tem de descer 788 degraus. E a ideia de favela modelo, acrescenta a guia turística Sheila Souza, ainda atrai um tipo de serviço não condizente com a história do Santa Marta.
– Eles não conhecem o nosso passado e apresentam a favela de uma maneira totalmente equivocada e invasiva. Por isso nós queremos que os guias locais recebam os turistas, não pessoas que chegam aqui e falam qualquer coisa.
Durante a concentração da passeata, na praça em frente à comunidade, parte da população estava protestava ao lado de uma placa que dizia: “A new point of view of Rio de Janeiro. Tourist options and curiosities of Santa Marta”. Ali estava a guia turística local Salete Miranda, cujo cartaz mostrava os seguintes dizeres: “Valorizar os iguais da comunidade”.
– Há empresas que sobem o Santa Marta de jeep, deixam as pessoas fotografarem tudo, crianças, casas dos moradores, etc. É uma falta de respeito.
Enquanto isso, no microfone outra moradora da comunidade protestava: “Nós não somos bichos de circo. Precisamos pensar outra relação com o território favela. Queremos mais respeito”.
Urbanização descontinuada
No decorrer do protesto, os moradores chamaram de “remoção branca” o processo de aumento do custo de vida que vem ocorrendo no morro. Muitos moradores estão saindo e pessoas de fora se instalam na comunidade. Trata-se do mesmo processo de especulação que ocorre no asfalto, com uma elevação exponencial dos valores pagos para se viver no Rio de Janeiro. Em músicas, eles questionaram também a realização de festas caras no local, que atraem muita gente de fora, mas exclui os moradores devido aos altos preços cobrados nos ingressos: “Vocês que vêm pra festinha no Santa Marta acham que isso é troca de cultura. Mas e a gente, como faz pra poder frequentar os locais fora da favela e sermos respeitados? E como fazemos pra pagar os preços das festinhas q vocês frequentam na nossa favela?” – perguntou uma jovem moradora no microfone.
Diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, o Ibase, e morador do Santa Marta, Itamar Silva conta como tem sido o processo de urbanização do Santa Marta e, nele, vê a marca da descontinuidade.
– A urbanização do Santa Marta começou a ser feita em 2003 e foi paralisada em setembro de 2008, ou seja, dois meses antes da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), quando o plano inclinado já havia sido concluído. Nesse período, foram feitas novas unidades habitacionais para substituir as que estavam no caminho do plano inclinado e um novo reservatório de água. Ocorre é que, a partir da UPP, não há qualquer continuidade da urbanização, à exceção de um conjunto habitacional que começou a ser construído no ano passado. A drenagem do morro é muito mal feita e, quando chove forte, as escadarias viram uma cachoeira. A gestão do plano inclinado foi terceirizada e, como o equipamento está sempre em manutenção, não atende à população de maneira adequada. Se pegarmos a proposta do poder público de até 2020 reurbanizar todas as favelas da cidade e pegar o caso do Santa Marta, cujas obras de urbanização já duram mais de 10 anos em vez dos três previstos inicialmente, dá para fazer uma projeção para outras favelas do Rio e perceber a dificuldade que será de alcançar essa meta”.
Itamar afirma que o poder público pretende, com o novo conjunto habitacional, remover parte das famílias do alto do Morro, na localidade do Pico.
– Eles dizem que o Pico é uma área de risco, mas há um contra-laudo de um engenheiro mostrando que isso não é verdade.
A passeata começou na rua São Clemente, uma das principais de Botafogo e ocupou também a Real Grandeza e a Voluntários da Pátria. Os moradores fecharam apenas uma faixa da rua, sem interromper o trânsito. Durante todo o trajeto, eles usaram um bordão que vem se tornando comum nos protestos realizados nas últimas semanas no Rio de Janeiro: “quem apóia, pisca a luz”, pediam, gritando para os prédios em volta. Em pelo menos dois momentos, a euforia foi grande, quando luzes de vários apartamentos começaram a piscar intercaladas, em sinal de apoio ao protesto.