Por Ricardo Rossetto, Carta Capital
Em uma plenária da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, Abimael Santos, de 36 anos, pediu o uso da palavra e logo disse à multidão: “gente, eu sei que não parece, mas eu sou gay”. Abimael só conseguiu fazer a declaração pois não estava na CDHM oficial, baseada na Câmara, em Brasília. O ‘Bill da Pizza’, como é conhecido entre os amigos, homossexual assumido há 16 anos, estava na Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Minorias, organizada na noite de quinta-feira 25, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo. A comissão extraordinária é um protesto contra as posições racistas e homofóbicas do deputado e pastor Marcos Feliciano (PSC-SP), presidente da CDHM “oficial”.
Idealizado pela ONG Conectas e pelos coletivos Existe Amor em SP e Pedra no Sapato, o ato suprapartidário propôs resgatar uma política de direitos humanos que represente toda a diversidade da sociedade brasileira. O debate, que durou cerca de três horas, foi presidido simbolicamente pelo cartunista Laerte Coutinho, ao lado do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), de Milton Barbosa, do Movimento Negro Unificado, Sany Kalapalo, do Movimento Indígena, e Bruno Torturra, do movimento Existe Amor em SP.
Militante do movimento LGBT desde 2004, Bill da Pizza avisou que o ato não era contra qualquer religião. “Estamos aqui lutando pelos direitos humanos. E a minha família é evangélica, eu fui criado na Assembleia de Deus. Meu pai era pastor e, por isso, durante muito tempo acreditei que a homossexualidade era pecado”, diz Bill, que tem uma filha de 16 anos, “super moderna e livre de qualquer preconceito”, como ele mesmo coloca, orgulhoso.
Contra-ataque
Para o deputado Jean Wyllys, o evento em São Paulo é um novo passo na luta política contra Feliciano. Wyllys diz ter percebido que o esforço para tirar Feliciano da presidência da CDHM e recompor um colegiado dedicado à causa estava alimentando o discurso “fundamentalista do pastor”. “Mudamos a nossa estratégia e constituímos espaços proativos de atuação, entre eles a Frente Parlamentar de Direitos Humanos, que já tem a adesão de mais de 178 parlamentares. Aprovamos, também uma subcomissão de Cultura e Direitos Humanos, que garante outro espaço legislativo para tocar esses assuntos”.
Ao chegar à Praça Roosevelt – também chamada de “Praça Rosa” pelos coletivos envolvidos com a produção cultural da capital paulista -, Wyllys ficou encantado com a resposta que a sociedade deu ao evento. “Isso aqui já é um sucesso. As pessoas aceitaram vir. E eu dou ênfase nesse modelo criativo de chamamento público usado pelos movimentos sociais, porque a gente sabe que hoje em dia é muito difícil mobilizar politicamente uma porção de gente”.
O jornalista e diretor da ONG Oboré, Sérgio Gomes, amigo de longa data de Laerte e de muitos dos outros idealizadores do evento, avaliou mais detalhadamente o perfil de quem esteve na Praça e destacou que “desde a redemocratização do Brasil (em 1985) não existiu sequer um evento que reuniu, na mesma mesa pra debate, índios, gays, negros, travestis, transexuais e moradores de rua”.
Para Bruno Torturra, as pessoas, quando separadas por rótulos de gêneros, raça, credos e opções sexuais, tornam-se minorias. “A disputa que está acontecendo, não só na nossa Comissão de Direitos Humanos, mas no mundo todo, é quem é a maioria? Pessoas que estão dispostas a ver a política como o território de cuidado e amor ao próximo, ou aquela que acredita que
seus valores pessoais devem ser impostos aos outros?”
A escolha da “Praça Rosa” como palco da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos não foi por acaso, já que o território dela tem um histórico de disputa física e simbólica na luta pelo direito à cidade. Foi ali, em outubro do ano passado, que 20 mil pessoas deram origem ao movimento ‘Existe Amor em SP’, em uma catarse coletiva para protestar contra uma São Paulo agressiva, individualista, proibida e militarizada.
Verdadeira natureza
Sentado ao centro da mesa de debate, Laerte, que recentemente se tornou porta-voz da causa dos transgêneros, foi um dos destaques do evento ao defender as liberdades individuais. “Os nossos corpos, os nossos olhares, a nossa maneira de se relacionar com o divino, com o sagrado, e tudo isso é muito particular de cada um”, disse. “Isso é a nossa verdadeira natureza, e temos que ter o direito de expressar a nossa religiosidade, a nossa orientação sexual, nossos próprios rituais”, afirmou.
De acordo com o vereador Nabil Bonduki (PT), esses rituais têm sido cada vez mais reprimidos no espaço público da cidade. “Há um movimento conservador na Câmara Municipal de São Paulo que busca limitar as manifestações culturais dos paulistanos”, diz. “Expressões, estas, que nascem muitas vezes nas periferias e vêm buscas as ruas do centro”, alertou o parlamentar.
Apesar dessas forças contrárias, João Paulo Charleaux, porta voz da ONG Conectas Direitos Humanos, e um dos idealizadores do evento, considerou o saldo da reunião extraordinária muito positivo. Para ele, o melhor efeito foi o de levar as pessoas para um espaço público de debate qualificado. “Além de também desmistificar o Feliciano, trazendo as questões que ele está querendo ofuscar. O que nós fizemos foi inverter esse modelo, porque o importante é toda essa pauta que está negligenciada por ele”.
Charleaux disse torcer para que a pauta de direitos humanos seja incontrolável, de modo a “ativar” nas pessoas o interesse em discutir o assunto. “E isso vai ficar bom quando o contraditório começar a aparecer. Quando os evangélicos, os cristãos e o [vereador de São Paulo] Coronel Telhada [PSDB] vierem para o debate”.