Em entrevista, o escritor Daniel Munduruku mostra os problemas de tentar unir todas as comunidades tradicionais em um mesmo estereótipo de índio
Ronaldo Pelli – Revista de História
“Os índios são muito diversos entre si, em comum eles têm sua diferença em relação aos não indígenas.” Assim a antropóloga Clarice Cohn, em artigo para a edição de abril de 2013 da Revista de História, mostra o problema que é tentar definir dentro de um único e vago termo as diversas etnias que, por preconceito, ignorância, ou simples falta de conhecimento, chamamos de “índios”. O escritor Daniel Munduruku, que é o modelo para a capa do número 91 da RHBN, é um exemplo vivo disso.
Nascido em uma das 120 aldeias do povo munduruku no Pará, Daniel explica que a distância da cidade ainda hoje permite que esses homens, mulheres e crianças “vivam como antigamente”. Mas, como ele – nem ninguém – se enquadra facilmente em etiquetas, em estereótipos, Daniel partiu para a longínqua cidade para estudar. Lá, porém, sofreu um grande problema de identidade: “você se sente à margem, excluído, impotente”, contou. “Como gostar do que eu era se tudo me levava a crer que minha vida de aldeia era a comprovação de que eu era primitivo, atrasado, selvagem?”
Foi misturando esses dois ambientes quase contraditórios, que Daniel Munduruku se criou, inventando uma terceira posição, única, individual, de convivência pacífica. Formou-se em Filosofia e fez doutorado em Educação. Virou escritor, focado no público infantil. Ganhou prêmios diversos. Porém, quando pensa num grande mestre, se lembra do avô, que lhe passou os grandes ensinamentos da vida.
Hoje em dia, além das funções acadêmicas, é também presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual, que tem como objetivo combater a biopirataria. Nos primeiros anos de funcionamento do instituto, ele e outros diretores promoveram intercâmbios com outras comunidades tradicionais para tentar ganhar o reconhecimento, para ser legitimado, como representantes desses grupos. Porque, como se verá na longa entrevista que se segue, por mais que haja elementos de contato entre as diferentes tribos, talvez o único traço fundamental que os una é o fato de serem todos humanos. Ou como o próprio Daniel explica: “Aprendi que não há dignidade em falar em nome de outra pessoa ou grupo.”
Revista de História: Você vê algumas características que poderiam unir as tão diferentes etnias, além do fato de serem diferentes dos não-indígenas?
Daniel Munduruku: Minha dificuldade não é tanto com o termo indígena quanto com o termo índio, este sim genérico e ocultador das diversidades dos povos indígenas brasileiros. Tenho consciência que o uso de determinados termos podem reforçar estereótipos e estigmas e é preciso avançar na conceituação adequada capaz de valorizar a rica experiência de ser um munduruku, kayapó, guarani ou maraguá. Estas “marcas” precisam ser valorizadas uma vez que carregam consigo toda uma experiência que levou centenas, talvez milhares, de anos para chegarem a ser o que são em sua totalidade. Neste sentido, é importante acentuar que são povos que lutaram bravamente para chegar a um modo de vida que consideram ideal e nenhum outro povo – ou experiência – pode desqualificar ou minimizar. Viver do jeito que deseja tem de ser um direito protegido com unhas e dentes.
RH: E o inverso: você poderia ver as principais diferenças que lhe chamam a atenção entre etnias que você conhece?
DM: É notório que há diferenças linguísticas, alimentares, geográficas, rituais que podem ser elencadas à exaustão. Infelizmente, nosso hábito universalista ou generalizante acaba por reduzi-las a um conceito que tem acompanhado a educação brasileira. Dizer que o indígena é simplesmente um ser da natureza é incorrer no erro histórico de desconsiderar que esta natureza tem nome, acidentes geográficos, fauna e flora características, entre outras coisas. Isso acaba classificando estes povos como próximos da natureza, ou seja, quase bichos, quase selvagens, quase sem tecnologia, quase sem sabedoria, quase sem cultura. Isso não é verdade porque contempla um viés ideológico que não se sustenta mais. Penso que a sociedade brasileira precisa se esforçar em conhecer os diferentes povos e suas diversas culturas.
RH: Você já disse que o índio vê o “ambiente como um parente”. Você não acha que isso pode reforçar o estereótipo do índio como o “homem natural”, que vive apenas na “floresta”?
DM: Isso não é estereótipo, é real. Os povos tradicionais são mesmo naturais. A tradição ocidental tem em sua raiz a natureza. O problema da afirmação é sua lógica narcisista nascida junto com a separação que o ocidente fez entre os seres. Aqui não se trata de pensar e agir diferentemente. O que está por trás disso é o desrespeito ao direito do outro ser o que ele quiser ser, o que a cultura do outro encontrou como resposta e solução ao enigma da vida. Portanto, a questão é a arrogância do ocidente que se considera superior por conta de seu desenvolvimento tecnológico e por sua ideia de progresso que está baseada numa teoria evolutiva como se fosse natural passar de um estágio a outro na escala humana. E o pior: impor isso como uma verdade obrigando pessoas e povos a acreditarem nisso, viverem e morrerem por isso. Não está certo. Os povos tradicionais têm que ter garantido o direito de, se quiserem, viver do modo que suas culturas considerarem ideal para si. E aí cabem as ideias sobre a convivência harmônica com o meio ambiente. Pode até que, no fundo, a natureza não seja tão nossa parenta assim, mas essa foi a solução encontrada pela mãe-cultura para solucionar os problemas de convivência, de alimentação, de moradia entre os seus membros. O que há de errado nisso?
RH: Você também já criticou a ideia de “sustentabilidade” exatamente porque ela está baseada numa “culpa”. Esse tipo de atitude não seria se eximir do problema, dizendo que quem é o responsável pelo problema, no caso, a exploração desordenada do ambiente, que cuide dele?
DM: A ideia de sustentabilidade é uma farsa, na minha opinião. Assim como o é a de democracia ou cidadania. São subterfúgios para ações de controle da vida das pessoas. Entendo que numa sociedade complexa a que chegamos é mais que natural que o controle aconteça. O que me deixa furioso é o escamoteamento que fazem disso alegando a necessidade de ações que impedem que os “cidadãos” possam criar alternativas econômicas. Somos escravos de um sistema político em que as pessoas não podem se candidatar a um cargo político se não estiverem inscritas num partido; não podem educar seus filhos dentro de casa sendo obrigadas a “internarem” em creches ou pré-escolas; não podem ser tratadas por métodos alternativos de saúde porque são considerados ilegais ou perigosos (justamente por estarem fora da medicina que é dominada pela indústria farmacêutica); indígenas não podem ter terras que tradicionalmente ocupam porque atrapalham o desenvolvimento econômico, e por aí vai. Quem mais destrói o meio ambiente é o que menos tem interesse em cuidá-lo, mas são obrigados por uma política de culpa, sim. Isso dá a falsa impressão de que o governo cuida do ambiente que é de todos. Pura falácia. Os exemplos poderiam se multiplicar por mil. Que fique claro, no entanto, que estou falando de uma ideia pública de sustentabilidade. Acho que a população em geral tem outra visão sobre meio ambiente e que se ouve nas ruas é exatamente um discurso mais verdadeiro e real do entendimento sobre o tema. Creio que são discursos que estão separados por um turbilhão de interesses econômicos e jamais vão ser compatíveis.
RH: Você diz que decidiu em certo momento integrar a filosofia ocidental à sua filosofia, “pessoal”: o que seria isso na prática?
DM: Eu me considero um livre pensador. Não tenho compromisso intelectual com o pensamento indígena a ponto de me achar um embaixador desse pensamento. Aprendi que não há dignidade em falar em nome de outra pessoa ou grupo. Assim, não sou representante de ninguém. Fui educado dentro dos princípios do povo Munduruku e a eles devo alguma fidelidade enquanto os considerar importantes para meu crescimento pessoal. Por outro lado sou “iniciado” na lida intelectual do ocidente, mas não me sinto comprometido com este tipo de pensamento alienador, coisificante, manipulador que aprendi a manusear. Procuro buscar num e noutro pequenas frestas para que possa criar uma relação de convivência pacifica.
RH: Você também fala sobre como se pode enxergar paralelos entre a sua filosofia “pessoal” e os saberes orientais. Quais seriam eles?
DM: O modelo de pensamento oriental tem uma pequena vantagem ao se aproximar do modelo indígena. Está mais comprometido com a visão holística de nossa gente e pode oferecer importantes pistas para compreender nosso modo de existir. Os orientais têm uma visão da natureza muito mais próxima da indígena. Desenvolveu rituais milenares de culto aos elementos naturais como o sol, a água, a terra e aos ventos. Isso tem muito a ver com o jeito indígena de ser. Meu avô me ensinou a ler os sinais da natureza como parte integrante do meu ser e acho que isso me faz um pouco oriental e faz dos orientais, um pouco indígenas.
RH: Você já falou sobre ter sofrido uma crise de identidade na adolescência ao ter que ir estudar na cidade e viver em uma aldeia. Poderia explicar quais eram as grandes dúvidas que lhe perpassavam?
DM: Imagine viver num mundo onde as pessoas se importam umas com as outras; onde não há pobres e ricos; onde não infância abandonada ou jovens em situação de riscos; onde todos têm casa, comida, espaço para diversão…Imagine chegar em outro lugar onde tudo isso desmorona e você se sente à margem, excluído, impotente…acho que isso geraria uma grande crise de identidade, não é mesmo? Criança ainda, fui obrigado a viver uma vida que não era minha, morar numa casa que eu não conhecia, conviver com pessoas que não gostavam de mim e aprender coisas que não me diziam respeito. Como me sentir bem num ambiente assim? Como gostar do que eu era se tudo me levava a crer que minha vida de aldeia era a comprovação de que eu era primitivo, atrasado, selvagem? Ora, tudo isso gerava em mim muitos sentimentos contraditórios que me levaram a negar minha origem e desejar ser outro. Na medida em que eu crescia, as angústias aumentavam e me faziam crer que eu não seria “alguém” na vida, pois minha vocação para o trabalho produtivo era nula. Eu não sabia “fazer” nada de “útil” para a sociedade brasileira. Todo o conhecimento que carregava comigo tinham a ver com o cuidado de casa, com o conhecimento da natureza, com o nadar no rio. E a escola dizia que isso era “coisa de índio” e que eu deveria abandonar aquilo se quisesse ser “alguém”. Francamente eu acho que as crianças e jovens das cidades estão vivendo a mesma crise nos dias de hoje. As escolas continuam descomprometidas com os conhecimentos que as crianças trazem de casa criando uma barreira. A escola é chata, monótona e segue um modelo de poder que já está ultrapassado na cultura juvenil. A impressão que tenho é que a escola quer continuar assim para ser, ainda, um lugar de controle da criatividade e da revolução.
RH: Você é presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual. Por que você vê necessidade de uma instituição desse tipo?
DM: Tudo começou em 2001 quando houve o primeiro encontro de pajés em São Luis do Maranhão. Eu e outros “intelectuais” indígenas fomos convidados como observadores dos debates promovidos pelo Instituto Nacional da Propriedade Intelectual – Inpi. No final, os pajés nos chamaram e nos delegaram a tarefa de estudar o assunto e propor algo novo. Dali saiu a Comissão Indígena da Propriedade Intelectual – Cipi – que durante dois anos se reuniu e estudou o tema da PI. Outros encontros aconteceram até que, em 2003, foi criado o Inbrapi, Instituto Indígena para Propriedade Intelectual com o objetivo muito claro de proteger estes conhecimentos dos usos indevidos que a industria farmacêutica e de alimentos estavam fazendo dos mesmos. Era o momento da chamada biopirataria.
Quando definimos o nome para a instituição houve um grande burburinho em torno dele. Houve gente que dizia que tínhamos sido infelizes na escolha do nome porque estávamos nos rendendo ao capitalismo especialmente porque os povos indígenas não têm noção de propriedade. Aguentamos bem as criticas e procuramos justificar a escolha pelo grau de competência de sua diretoria que era composta por advogados especializados no tema e educadores que propunham formar e informar as comunidades para a temática da propriedade intelectual. Isso de fato se deu. Durante os cinco primeiros anos de funcionamento da instituição percorremos boa parte do território nacional levando informações através de cursos, seminários, oficinas, debates e publicações. O Inbrapi precisava se tornar uma instituição com aval das comunidades para poder fazer valer sua atuação junto aos órgãos governamentais que estavam capitaneando os debates.
Parte da legislação hoje em vigor no Brasil tem nosso interferência institucional e ainda somos uma organização referência no país e no exterior. Estamos trabalhando, atualmente, em algumas comunidades indígenas na busca de encontrar melhores opções para o registro de marcas de produtos indígenas. Fazemos isso pensando em profissionalizar o acesso aos conhecimentos ancestrais de modo que possa haver um ganho, também financeiro, para nossas comunidades.
RH: Você é apenas um dos autores indígenas que vêm se destacando ultimamente. Quais outros nomes você indicaria – e por quê?
DM: É verdade. Sou apenas um fio na teia da literatura indígena. É assim que me sinto e é assim que acho que deve ser. Gosto de pensar nesse movimento como um coletivo, um círculo onde todos são igualmente capazes de realizar lindas proezas. Nosso grupo como um todo é muito criativo, mas cito alguns nomes que mais têm se destacado no processo criativo.
Yaguarê Yamã– Maraguá – AM. Tem produzido lindos e premiados textos por várias casas editoriais. Escreve com facilidade e leveza. Já publicou 17 títulos.
Roni Wasiry– Maraguá – AM. É um excelente contador de histórias. Seus textos têm magia e força narrativa. Ele une bem a oralidade com a expressão escrita. Tem cinco livros publicados.
Olívio Jekupé– Guarani – SP. Um dos primeiros escritores indígenas, Olívio é oriundo do Paraná onde iniciou seu curso de filosofia. Na década de 1990 migrou para São Paulo onde continuou seu curso na USP. Escreve as histórias do povo Guarani e tem motivado outros autores de sua comunidade a escreverem também. Já tem doze títulos publicados.
Graça Graúna– Potiguara – RN. Professora universitária com pós-doutorado em educação. É também poeta e autora de livros de poesia e infantil. É militante do movimento social desde muito nova. Sua poética é muito bem elaborada e profunda. Tem um livro infantil publicados e quatro para o público adulto.
Trabalho com Saúde Indígena. Sou farmacêutica na SESAI e professora por formação. Gostaria muito de conhecer os livros desses autores idígenas, citados nesta entrevista. Onde posso encontrá-los?