Através da experiência com o sagrado, populações negras reestruturaram-se no Novo Mundo e superaram as tremendas fragmentações de toda ordem a que foram submetidas. Com os elementos do sagrado realimentavam-se de forças primordiais e obtinham a vitalidade simbólica para resistir à pobreza material.
Tal estratégia de sobrevivência lançava mão de práticas rituais sincréticas, na medida em que reelaborava contribuições de diferentes etnias africanas; e também ressignificava festas e rituais religiosos dos colonizadores para neles introduzir sentidos e elementos que representassem afirmações das suas próprias identidades.
Isto aconteceu, p. ex., com as festas relacionadas ao período de Natal e Ano Novo, largamente utilizadas pelos padres jesuítas para a conquista das almas de africanos e indígenas e a conversão daquelas pessoas ao cristianismo. Cantava-se e dramatizava-se a narrativa mítica dos Reis Magos que visitaram o Menino Deus na manjedoura de Belém.
É antiguíssima a tradição européia de fazer festas em tal período, desde a Antiguidade Clássica, quando eram organizadas as festas pagãs do solstício de inverno — a festa do renascimento do sol – recriadas posteriormente pelo cristianismo para a comemoração do nascimento do Menino Jesus, tido como o novo sol da humanidade.
No Brasil, esse mesmo jogo de conflito e negociação que marcou a afirmação do cristianismo na Europa seria reatualizado no confronto entre europeus e os afro-indígenas. Aqui, os batuques e as danças dos povos escravizados engrossaram as procissões religiosas e as festas dos padroeiros dos brancos.
Essa participação negro-indígena mudava, às vezes radicalmente, o caráter daquelas festas, como se vê em registros do início do século XIX que se referem a “elementos burlescos e maliciosos” que desagradaram a igreja, a tal ponto que em 1801 as autoridades eclesiásticas solicitaram ao governo a repressão à “função das chamadas pastorinhas”, um dos nomes dados aos grupos que comemoram o ciclo de Natal.
Com o passar do tempo, as elites coloniais foram afastando-se desses festejos, que passaram a ser sustentados, cada vez mais, pelas populações de origem africana e indígena, as quais tornaram-se as principais responsáveis pela manutenção das folias, ternos ou ranchos de Reis. Ainda hoje, as festas em louvor aos Reis Magos são manifestações populares da cultura mais presentes em todos os municípios baianos.
A estrutura fundamental do Reisado é o cortejo de um grupo de foliões, que sai pelas ruas das cidades e estradas da zona rural, tocando e cantando na porta das casas, entrando naquelas em que os moradores queiram recebê-los. No interior das residências, diante do presépio, cantam para o deus menino; sambam em torno da mesa de comida; recebem donativos; cantam o agradecimento e a despedida e saem para repetir o mesmo ritual na casa seguinte.
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Enviado para Combate ao Racismo Ambiental por José Carlos.