Alexandre Gomes e João Paulo Vieira*
A história dos índios no Ceará é marcada por um intenso processo de lutas e resistências. Lutas contra as invasões que já no início do século XVII tentavam expulsá-los de seus territórios e negar suas existências e culturas. No alvorecer da modernidade, discutia-se se os índios tinham alma, se eram gente, pois se não o fossem, poderiam ser escravizados e ter suas terras legitimamente apossadas pelos invasores. Hoje, a justificativa de que as populações tradicionais não são indígenas basta para tentar expulsá-las dos locais onde vivem há várias gerações.
Concomitantemente à construção deste discurso, as elites locais impõem à sociedade cearense um projeto de modernização que está modificando completamente sua paisagem, com a construção de uma complexa infra-estrutura que visa à imersão efetiva do estado nas malhas do neoliberalismo. Sob a capa do velho discurso do progresso, prometem emprego e desenvolvimento. Na verdade, um projeto de desenvolvimento nitidamente elitista e concentrador de renda.
Insustentável e explorador de recursos humanos e naturais, com fortes impactos no modo de vida das populações indígenas e tradicionais, tanto do sertão quanto do litoral cearenses. Não é de se estranhar que o mesmo estado que negou a existência de índios no Ceará na segunda metade do século XIX, venha hoje apoiar empreendimentos que têm na apropriação da terra e na utilização de nativos como mão de obra barata sua lógica, sob a justificativa de que trarão o famigerado ‘progresso’ e ‘desenvolvimento’. Afinal, a existência de populações indígenas organizadas emperram o projeto político e econômico em curso. Pois pressupõe a existência de terras tradicionais, habitadas pelos índios, que não podem ser vendidas, uma vez que estão protegidas por lei federal desde 1988.
A problemática da etnicidade no Ceará coloca-se como um fator mais complexo no contexto das relações político-econômicas locais e externas. A agressiva especulação imobiliária avança Ceará adentro sem nenhuma preocupação com os impactos sócio-ambientais por ela ocasionada. O que importa é saber se o Estado concede meios legais e estruturais para receber os recursos internacionais tão sonhados pelas elites industriais e agrárias locais.
Em outras palavras, se está apto a se incorporar ao projeto de modernização capitalista. É imprescindível denunciarmos a falsidade do discurso ancorado em declarações infundadas, baseadas numa visão estereotipada, há tanto ultrapassada, de que não existem mais índios no Ceará, ou de que os índios que existem se travestem a partir de invenções de intelectuais e organizações não-governamentais. Pois, as comunidades indígenas organizadas no Ceará, que totalizam cerca de 12 etnias e mais de 20 agrupamentos, afirmam sua etnicidade e se mobilizam pelo reconhecimento e demarcação de suas terras.
Resta-nos, pois, desmascarar essas afirmações e apoiar a luta destes povos, dando visibilidade às suas ações políticas e o apoio jurídico e científico necessários à demarcação definitiva de seus territórios. Tornamos nossa a consigna dos índios no Ceará que diz: Não nos vendemos nem nos rendemos!
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*Alexandre Gomes e João Paulo Vieira são historiadores e integrantes do Projeto Historiando, que realiza um programa de educação patrimonial em comunidades étnicas no Ceará. O projeto apóia a criação de museus indígenas que atuem como espaços de formação, mobilização e organização comunitária.
Compartilhada por Janete Melo.
Que interesses há na negação da etnicidade dos índios no Ceará?