Por Pedro Henrique Araújo
Fotos: Cauiá Franco
O cheiro é quase indescritível. A mistura de mijo, fezes e suor se amalgamam ao cheiro de plástico, borracha e alumínio queimados. Os cachimbos estalam e acendem compulsivamente nas bocas. Crianças, jovens, adultos, idosos, negros, brancos, advogados, médicos, jornalistas, analfabetos e desempregados se uniformizam como zumbis. Os olhos não têm nenhuma expressão. Eles brilham, as pupilas dilatadas e as mãos trêmulas. Tudo isso acontece perto da imponente Sala São Paulo, palco da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e de tantas outras filarmônicas. Na Rua Cleveland uma grávida suga a fumaça da pedra avidamente enquanto, ao seu lado, uma criança com menos de 10 anos pratica o mesmo ritual. É só o começo da noite na Cracolândia em dezembro de 2011. Centenas de pessoas invadem a Rua Dino Bueno. Meninos-aviões passam de bicicleta observando a movimentação. O estoque é inesgotável. Os traficantes encostam, dezenas de usuários se aglomeram e evaporam na mesma velocidade da “brisa”. Não tem mais inocência naquele quarteirão.
“Esse moleque jogava bola com a gente lá na igreja”, conta João Carlos Batista, o João Boca. O menino entra no meio do bolo e tira do bolso algumas pedras. “Tá vendendo droga”, lamenta. João Boca tem 45 anos, 15 deles dedicados à região. Pastor da Missão Cena (Comunidade Evangélica Nova Aurora), anda por ali como se estivesse no quintal de sua casa. De baixa estatura, olhar vivo e agilidade no passo, chama os adictos pelo nome e ouve todo tipo de brincadeira. “Este aqui é o cara mais considerado da região”, brada um homem que aparenta mais de 40 anos e tem menos de meia dúzia de dentes. Ao ver o missionário, coloca seu cachimbo no bolso. Esse é um dos maiores sinais de respeito que um “craqueiro” pode apresentar. Boca é de casa, anda com tranquilidade. Abraça, é abraçado e enxerga naqueles homens e mulheres seres humanos. Anda geralmente com um boné do time argentino Boca Juniors com a palavra BOCA escrita na frente. Até hoje diz já ter recuperado cerca de 130 pessoas, número que parece ínfimo considerando as centenas de pessoas que perambulam pelo local, mas alto em se tratando de um vício tão nocivo. Apenas 15% dos usuários que buscam a recuperação de fato chegam até o último estágio. João condena outras igrejas, ONGs e o poder público. Ele rebate a quantificação da cura. “Não dá pra pegar o cara, tirar da rua e ele estar aqui uma semana depois.”
Embaixo do poste com luz de mercúrio, dois homens dividem um pequeno espaço na calçada. Acocorados, prestam atenção a cada um de seus movimentos. Em suas mãos, os cachimbos feitos com antena de carro são levados à boca. O mundo ao redor não importa mais até o próximo trago. Do outro lado da rua, como ratos, se enfiam em buracos nas paredes. O espaço de menos de um metro esconde outra dimensão. Escuro, com montantes de lixo que alcançam mais de um metro de altura e ratazanas pra todo lado, uma espécie de labirinto se apresenta. Escadas, mais buracos e, lá no fundo, uma luz fraca iluminando o que um dia já foi o cômodo de uma casa. Cinco homens começam a preparar o próximo “barato”. Ao avistarem o homem da igreja, tratam de encostar um pouco o cachimbo pra ouvir a palavra do Senhor. “Ih, chegou a igreja”, resmunga um deles que logo é repreendido. Eles se abraçam e fecham os olhos enquanto Boca tece alguns conselhos. Uma espécie de papo reto com Deus, sem intermediários, pedindo a preservação daquelas almas. O pastor deixa o recinto e, antes mesmo de sair do buraco, vê lá no fundo cinco pontinhos iluminados. Nem sempre a prece atinge imediatamente seu objetivo. Essa cena aconteceu cerca de duas semanas depois de a presidenta Dilma Rousseff anunciar um investimento ímpar em programas voltados ao tratamento de dependentes químicos, à prevenção do consumo e à repressão do tráfico. Quatro bilhões de reais foram injetados e, desse total, cerca de 500 milhões só pro estado de São Paulo. Uma das autoridades no assunto, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra ceticismo. “Apesar da boa intenção, sou cético quanto aos resultados”, contesta.
Dia 3 de janeiro de 2012, uma investida completamente atabalhoada, chamada Operação Centro Legal, expulsou os usuários de drogas da região e gerou constrangimento e comoção dos paulistanos. Moradores de Higienópolis reclamaram da aproximação da miséria em suas portas, jovens abastecidos de impulso e vontade fizeram o evento Churrascão da Cracolândia, confundindo um pouco o motivo da manifestação, e outros tantos bradaram que aquilo não passava de especulação imobiliária. Uma ordem direta e simples espalhou pros arredores centenas de dependentes químicos, e a perseguição indiscriminada aos moradores de rua durou semanas. Todo mundo virou “craqueiro”. Um grupo de 40 pessoas assume a calçada da Avenida Rio Branco perto da Rua General Osório. A maioria porta cachimbos feitos artesanalmente e muitos dão baforadas compulsivas sentados de cócoras. Duas motos da Polícia Militar passam pelo local em velocidade reduzida. Eles observam os homens fardados com olhos atentos. Um dos policiais faz um gesto com a mão direita pra eles circularem. Alguns projetam uma fuga estratégica, dão alguns passos, mas como os militares não param pra fazer a abordagem, voltam ao ponto inicial. Eles vão pra Rua Guaianazes, e outros militares os espantam a tapas. Eles param na Santa Ifigênia e novamente são enxotados. Perambulando pelas vias estreitas do centro, foram parar em outros bairros como Liberdade, Glicério, Jardins. Uma andança sem rumo, sem norte, sem explicação.
Os abrigos não comportam tanta procura, e igrejas como a missão batista Cristolândia os colocam pra dentro quando a Ronda Ostensiva passa. O padre Júlio Lancelotti está lá também. Com o corpo cansado, levemente curvado pra frente, tenta junto com o grupo evangélico controlar os ânimos tanto dos oficiais do estado quanto dos moradores de rua. Entre eles está Wellington Amorim, de 26 anos. Há um ano e oito meses ele integra o grupo de monitores que atendem no local. Ex-usuário, passou seis anos no crack e chegou a pesar 46 quilos, muito pouco pra seus mais de 1,80 m de altura. Wellington se prostituiu, vendeu drogas e chegou ao fundo do posso. Ele explica como as prisões de consumidores eram transformadas em prisões de traficantes: “O cara vinha aqui bem vestido, dava 100 pedras na mão de algum noia. Dias depois ele passava pra pegar seus 600 reais”. Ele é um dos que afirma a presença de corpos não revelados pela prefeitura e pelo governo do estado. “Há pelo menos 45 ossadas nos escombros que eles demoliram”, atesta. No dia 12 de junho deste ano, o Ministério Público do Estado de São Paulo entrou com uma ação civil pública contra o governo estadual por considerar a Operação Centro Legal um fracasso. Segundo os promotores que assinam a ação de danos morais, a atitude violou os direitos humanos. O valor pedido pelo MP é de 40 milhões de reais.
A higienização é rápida. A Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicleta (Rocam) passa e, na sequência, um caminhão-pipa com água limpa o chão. Um brilho, mas como não há tapete capaz de acobertar as pessoas em situação de rua, elas continuavam a vagar. As que procuram abrigo veem burocracia e dificuldades. A ação, ironicamente chamada de Operação Centro Legal, foi tramada e executada pelo segundo escalão da Polícia Militar. Há quem diga que a medida só foi tomada depois de uma viatura policial ter sido depredada nas imediações. A falta de estrutura da operação foi tanta, que nem o Complexo Prates, abrigo pra cerca de 1.200 usuários, estava pronto. O espaço de 11.000 metros quadrados é a menina dos olhos da vice-prefeita e secretária municipal de assistência social, Alda Marco Antonio. A ação é, segundo a Prefeitura, o primeiro passo de um projeto de seis meses. Neste estágio a PM faz o patrulhamento ostensivo, aborda as pessoas e encaminha pra delegacia aqueles que portarem a droga pra uso próprio ou comercialização. O segundo estágio será feito em parceria com a Secretaria de Assistência Social e da saúde, e levará os adictos, mesmo que de forma compulsória, pra tratamento. A terceira fase é a manutenção do quadro com a finalidade de evitar novas áreas de consumo na cidade. Em outro ponto, na Rua Dino Bueno, próximo aos “mocós” que haviam sido invadidos por dependentes, dois policiais abordam um homem que portava uma tesoura, uma serrinha e uma pequena barra de metal. Alexsandro de Oliveira, 33 anos, viciado há 14, tira os chinelos, a camiseta, o boné do Corinthians e afirma que já tem passagem pela Polícia por homicídio culposo. Falante e acelerado, é obrigado a deixar seus pertences e logo é liberado pela dupla. “Cada hora eles vêm de um jeito”, reclama sobre a abordagem policial. A primeira fase foi feita e foi perdendo força ao longo dos meses, mas a sequência nunca teve um desfecho. “A Cracolândia não é um lugar, e sim uma situação coletiva de usuários e dependentes da droga”, explica o coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Dartiu Xavier da Silveira, que desde o início mostrou-se contrário à internação compulsória: “Vão criar uma espécie de campo de concentração de drogados com essa postura”. E ainda questiona o termo epidemia. “Eu trabalho há 25 anos nesta área e desde 1993 atendo entre 150 e 200 usuários que são dependentes do crack”, questiona.
Mas há quem comemore. Os moradores da região veem ali uma área mais tranquila, mesmo com a tensão e a frequente presença policial. A manicure Rosimeire da Silva, de 43 anos, baiana que mora há 20 anos na região, diz que a ação da polícia não interferiu em sua rotina profissional, que, num dia bom, chega a dez clientes. “Ainda é cedo pra avaliar e é ótimo andar por aqui sem ver as pessoas fumando pedra na sua frente, mas o movimento continua parecido”, pondera. Francisco Araújo Ferreira, 55 anos, mostra-se satisfeito com o novo aspecto da rua na qual trabalha. Dez dias antes, lá circulavam centenas de viciados, e hoje há apenas uma base comunitária da Polícia Militar. “A vista está muito mais agradável, mas não acho que o problema esteja sendo resolvido. Nós só jogamos a sujeira no vizinho”, complementa. A atitude desgovernada mostrou-se ineficaz desde seu primeiro passo.
Nove meses se passaram, uma gestação dolorosa. Ainda nem escureceu e a esquina da Rua Helvetia com a Rua Dino Bueno está lotada. Os cigarreiros passam pra lá e pra cá (o filtro dos “caretas” são usados também pro crack), a polícia vez ou outra dá o ar da graça e os protagonistas continuam a atuar como peças indigestas. Onde antes ficavam os mocós hoje estão elefantes brancos e vazios que ostentam o brasão da prefeitura da cidade de São Paulo. À sua frente, cerca de 50 usuários de crack se concentram pra mais um dia comum. Eles vão se aglomerando em pequenos bolos. Um rapaz, ali há dois ou três dias, ainda destoa dos demais. Aparentemente alimentado, limpo e com a barba feita, se acocora em meio ao grupo. Tem 21 anos e tenta vender um radinho de pilha. Se perde na multidão. “Você vai ver daqui alguns dias”, comenta Boca. “Ele mora em Taipas, cara. Falei pra ele que era só um busão pra voltar. Tem família, casa”, completa. Antes disso ele falou com outro jovem. Loiro, atlético e com uma camiseta polo branca escrito Ferrari no peito. Ele passou por ele, voltou e o intimou: “O que cê faz aqui? Tá com o pessoal?”. O rapaz não entende muito bem a abordagem, mas ouve o papo. “Volta pra sua casa, isso aqui não é lugar pra você…” Boca sai de lá com a promessa de que, quando voltasse, aquele homem não estaria mais ali. Cerca de uma hora depois, já não dava mais pra vê-lo na calçada da Rua Dino Bueno, quase na Duque de Caxias, mas nem João nem ninguém pode garantir que aquela alma foi atingida. Há nove meses naquela mesma calçada ele abordou um garoto que não tinha completado a maioridade ainda. “O que cê tá fazendo aqui?”, “Isso não é lugar pra você” e outras frases de efeito foram assustando o adolescente, que foi apressando o passo em direção ao alívio. Os noias se aproximaram de Boca e perguntaram o que estava acontecendo. “O que foi João, o que esse playboy te fez?” Pra tentar assustar ainda mais o garoto, que já passava batido mais de 50 metros à frente, ele inventou uma história. “Tá vendo aquele moleque de mochilinha nas costas ali? Então, ele é meu sobrinho. Se vocês virem ele por aqui podem dar um susto.” Um dos homens que se aproxima diz: “Mas qual o tamanho do susto, mano? É pra machucar?”. Boca pede pra pegarem leve, mas que não era pra deixá-lo comprar drogas ali e sai com certa satisfação. “Esse não volta aqui perto por um tempinho”.
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Essa matéria tá excelente. é coisa de fazer sentir.