Desprezo e afronta à Constituição

Por André Augusto Salvador Bezerra*

O ano de 2012 foi marcado pelas manifestações dos Guarani-Kaiowá. Submetidos a toda espécie de violência sob a conivência do Poder Público, tais povos abandonaram o silêncio, denunciando, em alto e bom som, seus dramas frente à expansão para o oeste por que atravessa o agronegócio brasileiro.

Essa estratégia surtiu efeito, levando parcela da sociedade civil a intensificar as críticas contra o descaso histórico das autoridades em relação aos índios. Um dos momentos cruciais do processo ocorreu no início de dezembro de 2012, com a entrega de manifesto subscrito por mais de 20 mil pessoas a representantes do Executivo, Legislativo e Judiciário. Tal documento foi produto da campanha denominada “Eu apoio a causa indígena”, coordenada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Associação Juízes para a Democracia (AJD), exigindo basicamente a demarcação de terras, a urgência dos julgamentos relativos às demandas dos índios e a não aprovação do Projeto de Emenda Constitucional que retira do Executivo o processo de homologação e demarcação de terras (a PEC 215).

Para quem conhece minimamente a Constituição Federal (CF) de 1988, manifestações como as acima referidas não são de surpreender. Afinal, mais de 20 anos depois da promulgação de um diploma que atribui o direito à identidade cultural e à ocupação permanente da terra (art. 231), os indígenas continuam a sofrer opressão semelhante à experimentada desde o início da invasão ibérica às Américas no século 15. Pouca coisa mudou desde então.

Cobertura igual

A situação acima exposta não sensibilizou a grande mídia no decorrer do ano. O que se viu predominantemente nos principais veículos de comunicação foi a destinação de um diminuto espaço às demandas indígenas, concomitante a uma maior exposição de juízos depreciativos ou irônicos à causa destes povos.

Tal espécie de cobertura, entretanto, não é novidade. Lembra, a respeito, Dalmo Dallari (2012), que os índios são de há muito referidos pela imprensa como inconvenientes à economia do país; possuidores de espaços de terra desproporcionais ao tamanho de sua população; ameaças à soberania nacional e, até mesmo, comerciantes de suas terras (a despeito do art. 231, §4º da CF impossibilitar uma prática como essa).

Tudo isso, importante ressaltar, independente da comunidade ou do local em que se encontram. Pouco importa que o acontecimento noticiado envolva os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, os Pataxós da Bahia, os Mapuches do Chile, os Ianomâmi da Venezuela ou os Aimarás da Bolívia. Na essência, a cobertura jornalística é sempre a mesma.

Origem do desprezo

Esse inegável desprezo midiático contra os povos indígenas não causa estranheza a quem considera que a grande mídia é representada por oligopólios altamente capitalizados e que, como qualquer outro empreendimento concentrador, objetivam o lucro. Não se trata, pois, de instituições imparciais que necessariamente buscam o bem comum.

É mais do que esperado, portanto, que as matérias publicadas por tais organizações reflitam seus interesses. E o interesse básico de uma empresa que lucra em um ambiente que transforma qualquer objeto em mercadoria, inclusive a notícia, é fomentar a sobrevivência e a expansão do sistema.

Qual, então, o interesse das empresas de comunicação em propagar os costumes e os dramas dos índios? Se assim o fizessem, estariam a defender um sistema econômico baseado na propriedade coletiva e não no individualismo burguês; um sistema que consegue alimentar sua população pelo cultivo dos próprios produtos e não pelo consumismo de bens produzidos por anunciantes; um mecanismo educacional que se inicia pelas histórias contadas pelos mais velhos do núcleo familiar, ao invés de se dar por escolas privadas que prometem preparar crianças de dois ou três anos para o mercado de trabalho; por fim, e apenas para não se alongar na exemplificação, uma organização que ainda hoje faz uso de figuras tradicionais como parteiras, eximindo suas mulheres e crianças recém-nascidas da lucrativa indústria de cesáreas desnecessárias a que se encontram submetidas as brasileiras dos grandes centros urbanos.

Não há, sob esse ponto de vista, motivo para a grande mídia difundir um modo de vida que, nas palavras de Tarso de Melo, (2012), configura verdadeiro mau exemplo para o vigente sistema econômico. Melhor mesmo, segundo a lógica do capital, adotar um anacrônico etnocentrismo epistemológico – tal como chamado na crítica de Boaventura de Sousa Santos (1989, p. 71) –, para se considerar os índios como seres não evoluídos.

Massacre midiático

O quadro acima exposto produz graves efeitos aos indígenas.

É sabido que, sob a concentração midiática, as informações que em geral instruiriam os livres debates de uma sociedade democrática tornam-se dependentes da veiculação por reduzido número de empreendimentos de comunicação. Com isso, mencionados grupos passam a deter, com quase exclusividade, o poder de pautar as discussões realizadas no espaço público, realizando, nas palavras de Habermas (2003, p. 226), verdadeiro trabalho de opinião pública em conformidade aos seus interesses de classe.

Ora, como se viu, no referido trabalho da opinião pública encontra-se o menosprezo aos índios. As demandas destes povos, por natural consequência, passam a ser ignoradas nos períodos eleitorais e no trabalho diário das instituições, terminando por legitimar o quadro de genocídio que insiste perdurar nos tempos atuais.

É certo que inexiste centralidade absoluta dos meios de comunicação no processo de mediações sociais: as mais de 20 mil pessoas que assinaram o manifesto da campanha “Eu apoio a causa indígena”comprovam essa constatação. É inviável desconsiderar, contudo, que em uma sociedade complexa formada por cidadãos dispersos (como a existente nas principais cidades do país), somente os oligopólios midiáticos altamente capitalizados conseguem produzir opiniões em extensa área territorial, de forma permanente e célere. São tais organizações, portanto, que detém o maior poder de ascendência sobre os eleitores e até mesmo sobre agentes públicos como magistrados, promotores de justiça e delegados de policia, influenciando-os na tomada de decisões desfavoráveis às necessidades e aos atos de resistência indígenas.

A omissão do Estado

A situação acima descrita poderia ser diferente se o artigo 220, § 5º, da Constituição Federal fosse observado. Cuida-se de dispositivo que veda taxativamente a formação de monopólio ou oligopólio na propriedade dos meios de comunicação.

A realidade, porém, é que a vigência do texto constitucional não impediu que a divulgação de informações ao grande público no Brasil continuasse concentrada nas mãos de reduzidos empreendimentos. Conforme descrito pelo Projeto Donos da Mídia(GÖRGEN, 2010), no final da primeira década deste século 21, dos 1.512 veículos ligados às redes nacionais de televisão, 340 eram controlados pela Rede Globo; 195 pelo Sistema Brasileiro de Televisão; 166 pela Rede Bandeirantes e 142 pela Rede Record. Por sua vez, a Rede Globo detinha o controle de 213 veículos de rádio (as Redes CBN AM e Globo AM), de uma revista de informação de circulação nacional (a revista Época), de um jornal de circulação no Rio de Janeiro (O Globo) e de um portal de internet (portal G-1), além de publicar em sociedade com a Folha de S.Paulo, o jornal Valor Econômico; a Folha de S.Paulo controlava o portal UOL de internet, fruto da união com o portal BOL, que pertencia à Editora Abril, sendo ainda sócia de seu maior concorrente na capital paulista, o diário O Estado de S. Paulo, na empresa S. Paulo Distribuidora e Logística.

É sob esse arcabouço de número ínfimo de empresas, que ora são concorrentes, ora são aliadas, que os debates da esfera pública são pautados no Brasil. Não há, evidentemente, lugar relevante para que a sociedade civil e os indígenas divulguem pontos de vista contrários aos interesses do capital.

Esse espaço poderia ser proporcionado pelo Estado brasileiro por intermédio de políticas públicas que democratizassem os meios de comunicação e estimulassem a difusão plural de ideias. Entretanto, o art. 220, § 5º da CF, como se viu, mantém-se como verdadeira letra morta.

Considerações finais

O projeto de libertação dos indígenas, estampado na Constituição Federal de 1988, tem sido frustrado pelo Estado não apenas na morosidade da demarcação de terras ou no incentivo à atividade predatória do agronegócio. Tem sido frustrado também pela ausência de políticas públicas aptas à democratização da mídia.

Tal omissão acaba por manter a sobrevivência da estrutura oligopolista na propriedade dos meios de comunicação, responsável pela divulgação da mensagem hegemônica que oculta o modo de vida e as demandas dos índios. Isto, como se fossem um obstáculo ao que se considera desenvolvimento nacional.

O desprezo midiático configura, pois, consequência de mais uma afronta a dispositivos constitucionais pelo Estado.

Referências

DALLARI, Dalmo de Abreu. Índios, vítimas da imprensa. Observatório da imprensa, São Paulo, n. 687, 27 mar. 2012. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed687_indios_vitimas_da_imprensa. Acesso em: 27 mar. 2012.

GÖRGEN, James (Coord). Donos da Mídia, Brasília,2010. Disponível em: <http://donosdamidia.com.br>. Acesso em: 10 maio 2010.

HABERMAS, Jürgen.Mudança estrutural na esfera pública. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

MELO, Tarso de. Ser índio em tempos de mercadoria. Editora Expressão Popular: na batalha das ideias. 2012. Disponível em: http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/batalha-das-ideias-ser-%C3%ADndio-em-tempos-de-mercadoria. Acesso em: 4 nov. 2012.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 6 ed. Porto: Edições Afrontamento, 1990.

*Juiz de Direito em São Paulo, membro da Associação Juízes para a Democracia e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam/USP)

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed725_desprezo_e_afronta_a_constituicao

Enviada por Janete Melo.

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