Sobrevivente dos anos de chumbo. Depoimento e apelo. Entrevista com Anivaldo Padilha

“Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que não se calou diante da tirania”, diz o sociólogo e membro do grupo de trabalho constituído pela Comissão Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas durante a ditadura militar

Depois de ter tido sua história de vida marcada pelas torturas da ditadura, Anivaldo Padilha acaba de encerrar um ciclo, após o julgamento de seu caso na Comissão de Anistia. “No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da comissão Dr. Paulo Abraão pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava resgatada”, disse à IHU On-Line.

Líder da juventude metodista e do movimento ecumênico de juventude no Brasil e na América Latina durante os anos 1960, Padilha lutou contra a opressão e pela democracia. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele resgata essa história e diz que na prisão conheceu o “lado mais cruel e diabólico do ser humano”, mas também “o lado mais sublime, que é a capacidade de ser solidário em situações-limite”. E complementa: “Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas vezes não pensávamos possuir”.

Quase 50 anos depois, Padilha avalia que a situação do país melhorou, especialmente no âmbito jurídico-institucional. “Conseguimos, no período pós-ditadura, construir um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca). Entretanto, paralelamente a esses avanços, mantivemos estruturas e instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no estadual”, conclui.

Anivaldo Padilha é formado em Ciências Sociais e membro da Igreja Metodista. Esteve exilado por 13 anos no Chile, EUA e Suíça. De regresso ao Brasil, em 1984, incorporou-se ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI. Em 1994, participou da fundação de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. É membro da equipe de assessores de KOINONIA, membro da Diretoria do Conselho Latino-Americano de Igrejas (Região Brasil) e da Junta Diretiva do Church World Service, dos Estados Unidos e mora em São Paulo. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em maio deste ano, o senhor recebeu indenização da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça pelos graves danos que lhe foram causados na época da ditadura. Como se sente diante desta decisão?

Anivaldo Padilha – Com muita sinceridade, devo dizer que o aspecto mais importante da anistia é o caráter político da decisão, e não a indenização que vou receber. Nunca lutei por dinheiro e, sim, pela democracia.

A sessão da Comissão de Anistia na qual meu caso foi julgado representou um momento ímpar para mim. Eu já havia assistido a algumas sessões da Comissão e já conhecia o ritual. No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da Comissão Dr. Paulo Abraão pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava resgatada. Naquele momento compreendi o significado simbólico daquele gesto que eu já havia presenciado em outras ocasiões, mas não tinha ainda noção do que representava para uma pessoa que teve seus direitos violentamente agredidos por uma política de terror oficialmente executada pela ditadura.

Ao mesmo tempo, senti que, apesar de tudo e de todos os problemas que enfrentei, a minha luta e a de todos que lutaram contra a ditadura valeu a pena. A Anistia, para mim, marcou o encerramento de um ciclo importante da minha vida, mas, acima de tudo, representa estímulo e incentivo para o início ou continuidade um novo ciclo sem, contudo, significar mudança de rumos ou de lados. Se antes a luta foi contra a ditadura, hoje é a luta pelo aprofundamento da democracia que conquistamos até agora. Ou seja, vejo a construção da democracia como um processo permanente e sinto-me feliz por fazer parte desse processo.

IHU On-Line – Na época em que foi preso e torturado, qual era sua atuação na Ação Popular – AP e na liderança ecumênica jovem?

Anivaldo Padilha – Como militante da AP eu atuava no movimento estudantil (cursava Ciências Sociais na USP) e me dedicava ao trabalho de conscientização e de organização de setores da classe média. Ao mesmo tempo, trabalhava na Igreja Metodista como diretor do Departamento Nacional de Juventude e editor da “Cruz de Malta”, uma revista publicada por essa igreja e dirigida especificamente ao público jovem. Eu era também o secretário, para o Brasil, da União Latino-americana de Juventudes Ecumênicas.

Sempre procurei separar minha militância política na AP da minha participação e atuação na igreja e no movimento ecumênico apesar de que, em muitos casos, havia certa coincidência. Por exemplo, a defesa dos direitos humanos, a oposição à ditadura, a crítica às estruturas injustas da nossa sociedade e os esforços para a superação das desigualdades econômicas e sociais no Brasil eram bandeiras ecumênicas que em grande parte coincidiam com as posições políticas dos diversos movimentos que se opunham à ditadura. Meu trabalho eclesial e ecumênico envolvia a promoção de reflexões bíblico-teológicas, produção de materiais educativos visando a formação ecumênica da juventude não só metodista mas de outras igrejas também, o envolvimento de jovens em projetos sociais e o incentivo à solidariedade com pessoas perseguidas pela ditadura.

Já minha atuação na AP envolvia esforços que visavam a construção de apoios políticos e logísticos para a ação política da AP. Era um trabalho clandestino e muito arriscado, realizado com muita dificuldade pois a ditadura impedia qualquer tipo de oposição aberta.

IHU On-Line – Como o senhor descreve os 20 dias em que ficou preso no DOI-CODI, respectivamente Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna?

Anivaldo Padilha – Somados os três períodos em que estive no DOI-CODI e os em que estive no DEOPS, entre o final de fevereiro o final de junho, foram três meses de terror. O período mais difícil foi no DOI-CODI porque os interrogatórios acompanhados de torturas foram diários durante cerca de três semanas. E as torturas não eram somente físicas. Eram acompanhadas de torturas psicológicas para quebrar a resistência do prisioneiro. Por exemplo, ficar em uma cela suja, dormindo no chão em um colchão também sujo, sem possibilidade de fazer a higiene pessoal, como tomar banho ou escovar os dentes, sem ter como trocar de roupa, uma só refeição diária que no início era composta de restos do jantar do quartel do exército e posteriormente uma marmita fornecida pelo Grupo Ultra. Juntamente com esse tratamento vinham os insultos constantes dos carcereiros e dos membros da guarda. Vivi essa situação durante o primeiro período de cerca de vinte dias em que estive no DOI-CODI. A ditadura sabia que é muito difícil para uma pessoa manter o senso de dignidade diante de uma situação como essa. Entretanto, creio que todos nós, prisioneiros, tínhamos consciência de que a prisão era também uma frente de luta e que era necessário reunir todas as forças interiores que tínhamos para resistir.

Lado mais cruel e diabólico do ser humano

Sempre digo que conheci na prisão o lado mais cruel e diabólico do ser humano. É quando o mal que temos dentro de nós assume o controle total dos nossos atos e passa a agir com total liberdade. É quando o mal se instala de forma absoluta. Pude vivenciar isso na ação dos torturadores, mas não era algo simplesmente individual. É claro que alguns deles se moviam por sentimentos de extremo sadismo, mas é possível até que alguns deles fossem meigos com seus amigos e familiares. Entretanto, ali no DOI-CODI, tornavam-se possuídos pelo poder de vida ou de morte que tinham sobre nós, pois tinham consciência de que estavam executando uma política de Estado. Sabiam que a tortura não era somente uma técnica sistemática de interrogatório, mas, acima de tudo, um instrumento de terror usado para intimidar a sociedade. Não se sentiam pessoalmente responsáveis e acreditavam na impunidade.

O lado mais sublime do ser humano

Ao mesmo tempo, conheci o que considero o lado mais sublime do ser humano, que é a capacidade de ser solidário em situações-limite como a que na qual nos encontrávamos. Essa solidariedade se manifestava de várias formas: nas palavras de incentivo e de encorajamento quando um de nós era levado para interrogatório ou quando regressava das sessões de torturas e necessitava de cuidados; no respeito às diferenças político-ideológicas que havia entre os prisioneiros; na manifestação concreta do amor ao próximo que atingia o ponto máximo na capacidade de doação da própria vida como aconteceu com vários de nossos companheiros e companheiras. Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas vezes não pensávamos possuir. Não quero fazer uma análise maniqueísta e reduzir essa experiência a uma luta entre o bem e o mal, mas o fato objetivo é que naquela situação as fronteiras entre um e o outro se tornavam muito claras para nós e isso nos ajudava a discernir claramente de que lado deveríamos estar e encontrar forças para não nos rendermos.

IHU On-Line – Que sentimento o senhor guarda em relação ao pastor metodista José Sucasas Jr. e o bispo Isaías Fernando Sucasas, já falecidos, que lhe denunciaram?

Anivaldo Padilha – É importante esclarecer que as denúncias feitas pelo bispo Isaias Fernandes Sucasas e seu irmão pastor José Sucasas Jr. contra mim não foram a causa imediata da minha prisão. Fui preso juntamente com uma companheira de militância, Eliana Rolemberg, quando fomos à casa do tio de dois jovens da Igreja Metodista retirar um pacote de documentos que eles haviam deixado lá para nós. O tio deles abriu o pacote, considerou o material subversivo e chamou o DEOPS, na época comandado pelo infame delegado Sérgio Fleury. Os sobrinhos não sabiam que o tio deles era informante do DEOPS. Durante uma das sessões de torturas por que passei, enquanto eu negava ser comunista e membro de uma organização clandestina, uma dos torturadores me disse: “Você quer que acreditemos em você ou naquele pastor que afirma que você é comunista?”. Naquele momento não consegui saber o nome do tal pastor. Ouvi essa mesma pergunta várias vezes depois e não tenho dúvidas de que a delação foi uma das causas para a intensificação das torturas que sofri.

Foi somente há cerca de seis anos que descobri que não era um, mas dois pastores que me haviam denunciado. As denúncias foram feitas por escrito nas margens de uma cópia do “Unidade”, um jornal artesanal da juventude metodista que eu editava e que era bastante crítico da liderança conservadora da Igreja.

As denúncias dos irmãos Sucasas foram enviadas ao escritório do Serviço Nacional de Informações – SNI em São Paulo. Esse documento consta do conjunto de documentos a meu respeito que estão hoje no Arquivo do Estado de São Paulo. E há cerca de três anos descobri que ambos eram informantes do DEOPS. Um estudante que estava trabalhando em sua dissertação de mestrado teve acesso ao diário do bispo Sucasas e nele encontrou dois registros, feitos em 2008. No primeiro, o bispo narra que ele e seu irmão foram ao DEOPS e se colocaram à disposição para colaborar com a repressão. No segundo registro, feito alguns dias depois, ele descreve a segunda visita que ele e seu irmão fazem ao DEOPS para retirar suas respectivas carteiras de informantes.

É interessante registrar que eles não sabiam do meu envolvimento com a Ação Popular. Fica claro nas anotações que fizeram nas margens do jornal que a delação praticada por eles estava relacionada aos conflitos internos na igreja entre os setores progressistas, principalmente a juventude, e os setores conservadores. Em outras palavras, usaram a delação aos órgãos de repressão da ditadura como um meio de repressão contra a juventude da Igreja Metodista.

Fantasma das torturas

Não sei dizer exatamente o que sinto hoje sobre eles. Com eu já afirmei publicamente em outras ocasiões, durante muito tempo, no meu período de exílio, fui perseguido pelo fantasma das torturas. Depois de muito esforço consegui perdoar os torturadores e também os que me denunciaram. A partir daí os pesadelos desapareceram. Foi um processo terapêutico para mim, uma forma que encontrei de vencê-los. Já disse também que há situações em que o perdão é mais importante para quem perdoa do que para quem é perdoado. Mas isso, em minha opinião, só faz sentido no âmbito subjetivo, nas relações interpessoais. No âmbito político, essas pessoas têm que ser responsabilizadas judicialmente porque seus crimes não foram somente contra os presos políticos individualmente, mas principalmente contra a sociedade brasileira. E a sociedade tem o direito e a obrigação de responsabilizá-los judicialmente.

IHU On-Line – Como o senhor se sentiu ao partir para o exílio com a esposa grávida, sendo obrigado a ficar distante da família, sem conviver com seu filho – hoje o médico Alexandre Padilha, ministro da Saúde? Quais as principais consequências que esse processo gerou para o senhor e sua família?

Anivaldo Padilha – Após conseguir liberdade condicional, permaneci no Brasil vivendo na clandestinidade durante cerca de cinco meses. Nesse período vivi com o auxílio do Conselho Mundial de Igrejas. Isso me possibilitou retomar contatos com meus companheiros da AP, especialmente com minha companheira (não éramos casados) que também estava na clandestinidade. Nesse período ela ficou grávida. Foi um período muito difícil para mim. Eu estava fisicamente muito debilitado e psicologicamente abalado devido às condições precárias da prisão e às torturas que havia sofrido. Não podia conseguir emprego regular, pois as empresas exigiam atestado de antecedentes. Meu pai havia praticamente perdido a visão devido a um derrame, não tinha aposentadoria e vivia sob os cuidados da minha mãe. Eles dependiam totalmente de mim financeiramente.

Ao mesmo tempo, o cerco da repressão contra a AP e as organizações de esquerda em geral se intensificava e estava claro que se fosse preso novamente eu seria morto, pois essa tinha sido a ameaça que sofri por parte do capitão Homero, um dos torturadores, quando saí da prisão. Durante esse período de clandestinidade, agentes do DEOPS foram à casa dos meus pais por duas vezes para me prender. No final de abril de 1971, fui convencido de que não havia mais possibilidades de eu permanecer no Brasil.

Dívida

Só eu sei a angústia que senti ao ter que deixar minha companheira, grávida de três meses, sabendo que ela também corria riscos de ser presa, torturada e talvez assassinada juntamente com nosso filho que ainda estava por nascer. Meu filho nasceu enquanto eu estava no exílio! Esse é um dos traumas profundos que ainda me perseguem, pois só pude conhecê-lo, abraçá-lo e conversar com ele quando ele estava com oito anos, quando vim ao Brasil logo após a assinatura da Lei de Anistia para, então, formalmente reconhecer a sua paternidade e fazer seu registro de nascimento. Só pude conviver com ele, em uma relação de pai/filho, depois de regressar ao país definitivamente em outubro de 1983.

Eu disse em várias ocasiões que essa é uma dívida que a ditadura tem para comigo e com todos nós e que nunca poderá ser paga. A dívida só não é maior porque minha companheira (por quem tenho o maior respeito e admiração) e minha mãe tiveram sempre o cuidado de explicar para ele os motivos por eu não estar no Brasil. Ele cresceu sabendo que eu estava distante, mas não ausente. Durante esse período, apesar de todas as dificuldades de comunicação e os necessários cuidados com a segurança, houve trocas de mensagens entre nós, algumas por fitas cassetes e desenhos, outras por fotos. E o mais salutar disso foram as trocas de comunicação entre o Alexandre e os meus dois filhos (Celso e Paulo) que nasceram no exterior. A amizade entre eles é muito grande e há claramente um clima de admiração mútua entre eles.

IHU On-Line – De que maneira o senhor relaciona a ditadura militar com os mais de três séculos de escravidão?

Anivaldo Padilha – Creio que há vários pontos que estabelecem uma íntima relação entre a ditadura e o nosso passado escravagista. Poderia mencionar vários, mas vou citar somente dois. Um é o profundo preconceito social e racial que ainda prevalece entre setores importantes e poderosos da elite brasileira. Alguém disse (não lembro quem, neste momento) que a nossa elite saltou de uma sociedade escravagista para a modernidade sem passar pela Revolução Francesa, ou seja, não sofreu o impacto dos valores republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade; esses preconceitos têm se traduzido, em vários momentos da nossa história, em verdadeiro ódio de classe. Basta ver como esse ódio e esses preconceitos são (re) produzidos em alguns meios de comunicação atualmente; é uma elite que nunca se educou pelos valores humanistas de verdade e por isso é incapaz de conviver com a democracia e usa de todos os meios para criminalizar qualquer movimento social que possa representar uma ameaça, mesmo que remota, aos seus interesses; uma decorrência natural dessa mentalidade é tratar qualquer questão social como caso de polícia, seja em questões ligadas ao mundo do trabalho, moradia ou até saúde pública, como temos visto na cidade de São Paulo ultimamente com a violência policial contra usuários de crack; essa elite sabe exatamente o que a escravidão representou e por isso sempre tratou de mistificá-la nos livros escolares. A abolição da escravatura no país é apresentada como um ato de benignidade de uma representante da nobreza e com isso trata de apagar a memória dos horrores que a escravidão representou para uma parcela enorme da população brasileira no passado e suas consequências para seus descendentes. Eu diria que essas são as raízes ideológico-culturais da enorme desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira.

O outro é o também profundo desrespeito à dignidade humana que se traduz na perpetuação da violência das nossas polícias contra os pobres e o uso sistemático dos diferentes métodos de tortura. Antes era usada contra os escravos que se atreviam a transgredir a ordem estabelecida pelo sistema escravagista e, posteriormente, foi aprimorada para uso contra dissidentes políticos, como aconteceu durante a ditadura civil/militar. Hoje, continua a ser usada contra prisioneiros nas delegacias e prisões.

IHU On-Line – O que lhe motiva, mesmo depois desta experiência, a assumir a condição de protestante e de líder ecumênico latino-americano?

Anivaldo Padilha – O que me motiva hoje são os mesmos princípios protestantes e ecumênicos que me levaram a me engajar na luta por uma sociedade mais justa e democrática, inicialmente como parte dos movimentos pelas reformas de base no período anterior ao golpe de estado de 1964 e, posteriormente, na luta contra a ditadura. Sou ecumênico porque sou protestante. Devido à minha formação protestante, desde muito jovem compreendi os limites da Igreja institucional e sei que ela é repleta de contradições, para dizer o mínimo. A história do cristianismo nos mostra que foram poucos os momentos em que ele – o cristianismo – realmente foi fiel aos princípios do Evangelho e aos valores do Reino de Deus. Na maior parte das vezes, os grupos dominantes na Igreja-instituição se aliaram aos poderes dominantes do mundo na manutenção do status quo. Ao mesmo tempo, sempre houve minorias que procuraram ser fiéis à tradição bíblica profética na qual o movimento de Jesus se insere. E, para mim, o movimento ecumênico é parte dessa tradição. É um movimento que, por sua própria natureza, tende a ser transgressor e a constantemente desafiar as igrejas. É essa natureza do movimento ecumênico que me motiva e dá sentido ao meu envolvimento político e eclesial na luta constante pela defesa, promoção e garantia dos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.

IHU On-Line – Quais são hoje os principais desafios que envolvem a luta contra as violações de direitos humanos no Brasil?

Anivaldo Padilha – Os desafios são muito grandes e multifacetados, pois a garantia e defesa dos direitos humanos envolvem várias frentes de luta que estão relacionadas: econômicos, sociais, culturais e ambientais. Por isso, sem desprezar as outras frentes, vou me concentrar na questão da violência que hoje ocupa grande parte da agenda nacional.

Uma das heranças mais perversas da ditadura, perpetuada e disseminada pelo oligopólio da mídia sensacionalista, é que a defesa dos direitos humanos significa uma ameaça à ordem estabelecida. Na época da ditadura, quem defendia os direitos humanos era identificado na mídia como protetor de “terroristas” e não como defensores da democracia. Hoje, somos acusados de defender bandidos e não como defensores da justiça para todos os cidadãos e cidadãs. Enquanto isso, as ações das polícias militares e de milícias nas periferias das grandes cidades e de pistoleiros a serviço de fazendeiros continuam a assassinar, impunemente, lideranças comunitárias, camponesas e indígenas. Apesar da existência de um número cada vez maior de organizações da sociedade civil que têm na promoção e na garantia de direitos uma de suas prioridades, ainda não conseguimos inverter a balança de poder. E esse desequilíbrio se manifesta em praticamente todas as esferas da sociedade, incluindo aquelas instituições que, por sua natureza, supostamente deveriam ter outra compreensão, como igrejas e universidades. Essa é uma luta ideológica que temos que travar todos os dias. É uma luta desigual como sempre foi (e provavelmente sempre será) porque os instrumentos que possuímos são frágeis e enfrentamos poderosos meios de comunicação que estão a serviço da manutenção do status quo – e aqui me refiro tanto à grande mídia tradicional quanto aos blogs e redes de direita na internet.

Arcabouço jurídico de garantias

Creio que temos tido vários avanços, especialmente no âmbito jurídico-institucional. Conseguimos, no período pós-ditadura, construir um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca). Entretanto, paralelamente a esses avanços mantivemos estruturas e instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no estadual. Por exemplo, nem o governo federal nem aqueles governos estaduais que sabemos ter compromissos com os direitos humanos até agora foram capazes de promover uma reforma profunda no sistema de segurança pública com a formação de uma polícia unificada focada numa política de prevenção, de inteligência e de proteção da sociedade. Ao contrário, a ênfase tem sido na ação das polícias militares. Como sabemos, a PM é uma invenção da ditadura, criada sob a ideologia de segurança nacional para a luta contra o “inimigo interno”. Ela é treinada para matar e não para proteger a sociedade. Uma nova política de segurança e uma nova polícia já representaria um grande avanço em direção à proteção de direitos. Mas sabemos que dificilmente chegaremos lá sem a mobilização da sociedade.

IHU On-Line – Como se sente tendo sido vítima de sofrimento do regime militar, num período sombrio da nossa história, das lutas pela construção de um Brasil mais justo e democrático?

Anivaldo Padilha – Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que não se calou diante da tirania. No fundo, me considero não um privilegiado, mas um dos sobreviventes dos anos de chumbo que percebe na memória da passagem pelo vale das sombras da morte, como diria o salmista, a força para olhar o futuro com esperança e reconhecer que tudo valeu a pena.

IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do trabalho que vem sendo feito pela Comissão Nacional da Verdade? Considera-a um avanço ou pensa que ela já nasce limitada? Possibilitará romper a impunidade que se impôs sobre os anos de chumbo com a Lei da Anistia?

Anivaldo Padilha – Eu preferia uma Comissão Nacional da Verdade – CNV mais robusta, com prazo mais longo para executar seu trabalho, com orçamento próprio e com autoridade para recomendar ao Ministério Público o indiciamento dos agentes do Estado que cometeram crimes de violação dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, sabia que um CNV no Brasil só seria constituída por meio de negociações políticas que levassem a uma decisão consensual – e foi o que ocorreu. Ela não poderá propor indiciamentos; outro limite é o prazo com que ela trabalha, pois terá que apresentar seu relatório final até maio de 2014. E terá que dar conta de várias frentes de investigação. Para poder cumprir com essa tarefa monumental, a CNV tem estabelecido relações com centros de pesquisa e com organizações da sociedade civil que já têm pesquisas acumuladas sobre a ditadura. Alguns estados e municípios também estão criando suas comissões da verdade como um meio de colaborar com a CNV. Essas parcerias e iniciativas que se desenvolvem como uma forma de suprir o que parece ser um limite da CNV pode muito bem se transformar em um de seus aspectos muito positivos, que é a participação de setores da sociedade e a de ampliação do seu impacto.

Entranhas dos porões da ditadura

Já sabemos muito sobre o que aconteceu durante a ditadura e sobre o papel que muitas instituições e setores da sociedade desempenharam naquele período. Entretanto, há ainda muito a se descobrir e também muito a se comprovar. Creio que ao expor publicamente as entranhas dos porões da ditadura e mostrar como a repressão se estruturou, qual a sua linha de comando, como atuou, quem apoiou e quem foram seus agentes, dificilmente a CNVdeixará de causar um impacto positivo. Por exemplo, creio que seu relatório contribuirá para fortalecer a necessidade de o Brasil intensificar a discussão sobre a necessidade de se remover os resquícios autoritários tanto ideológicos quanto institucionais que herdamos da ditadura, aquilo que Ulisses Guimarães chamou de entulho autoritário. Um desses entulhos é a interpretação da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal – STF, interpretação que dá continuidade à tradição brasileira de impunidade e de acordo entre as elites.

Minha esperança é que, além de produzir um relatório robusto e inquestionável sobre os crimes cometidos durante a ditadura, a CNV produza na sociedade o sentimento de que seu trabalho não se refere somente ao passado, mas, acima de tudo, aponta para o futuro a fim de que aquele passado nunca mais se repita.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Anivaldo Padilha – Sim, gostaria de dar uma informação e de fazer um convite, quase um apelo. Quero informar que aCNV decidiu investigar o papel das igrejas durante a ditadura. Um grupo de trabalho já foi constituído. Ele é formado por pesquisadores que já têm trabalho acumulado nesse campo. Tenho a honra de compartilhar a sua coordenação com o Paulo Sérgio Pinheiro, membro efetivo da CNV. Pretendemos nos concentrar em quatro áreas:

1) o papel das igrejas na preparação do golpe;

2) papel que desempenharam na legitimação e consolidação da ditadura;

3) a colaboração de setores das igrejas com a repressão; e

4) resistência de setores das igrejas à ditadura e repressão sofrida por grupos dissidentes internos.

Como sei que grande parte dos leitores desta publicação estão no mundo acadêmico e ou têm relações com o campo religioso, aproveito para solicitar a colaboração no sentido de me enviar informações que possam contribuir para o trabalho do GT. Desde já agradeço e disponibilizo meu email aqui: [email protected].

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516008-a-historia-de-um-sobrevivente-dos-anos-de-chumbo-entrevista-com-anivaldo-padilha

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