Dizem que minutos antes de morrer a gente vê um filme com os melhores momentos da vida. Dizem que as imagens, em célere retrospectiva, nos mostram pessoas, lugares, situações, frases, risos, gestos e até silêncios. Dizem que na viagem de regresso pelos caminhos já trilhados, vamos recolhendo os nossos passos. Dizem que desviver assim deixa nossa alma inundada de paz e dizem, ainda, que essa é uma maneira bonita de se despedir da vida.
Dizem. Mas ninguém jamais voltou para confirmar a ocorrência desse adeus, cuja trajetória nos leva de volta ao útero materno. Se for verdade, porém, cabe perguntar quais foram as principais cenas do filme que Armando Dias Soares – o Armando Português – viu no quarto do Hospital Beneficência Portuguesa, em Manaus, pouco antes de morrer, aos 77 anos, na última terça-feira, 10 de abril. Se me dão licença,vou imaginar algumas.
O filme não pode deixar de fora as cenas de tantos carnavais patrocinados por esse mecenas da boemia, que trabalhava duro, de sol a sol, para que os outros pudessem se divertir. É que o Bar do Armando, frequentado pelos boêmios da cidade e por turistas nacionais e estrangeiros, abriga uma das bandas mais tradicionais do carnaval manauara, a Banda Independente da Confraria do Armando, a famosa BICA, que todos os anos coloca alguns políticos na berlinda, com muito humor e senso crítico.
É quase certo que o filme selecionou algumas imagens compartilhadas pela mídia local. O português mais amazonense que já viveu entre nós e que nunca perdeu seu sotaque deve ter se divertido, por exemplo, rebobinando as cenas da sessão da Câmara Municipal, que lhe concedeu, em 1998, o título de Cidadão de Manaus, confirmando oficialmente aquilo que o povo já havia reconhecido e consagrado nas ruas.
Um velho amigo
Eu era garoto, mas lembro bem a extraordinária capacidade de adaptação desse portuga, só comparável a dos cearenses. Generoso, em pouco tempo se tornou figura popular entre sua clientela pobre, para quem vendia fiado, anotando tudo numa caderneta. Perdoou dívidas e matou fome de muita gente. Vivia o cotidiano, as dores e alegrias do bairro. Quando meu irmão Domingos Sávio morreu afogado, aos dois anos de idade, nas águas do Mindu, Armando chorava tão copiosamente que se dona Elisa, minha santa mãe, não fosse um poço de virtudes, até eu desconfiaria da paternidade.
Terezinha é filha de uma caboca do Alto Solimões, dona Emir, com um português, o seu Manoel, ele também dono de um pequeno bar na Rua Alexandre Amorim, ao lado da casa dos padres redentoristas. Mas naquela noite, o bairro inteiro se concentrou foi na taberna do Armando, em redor de um rádio a válvulas, que irradiava o concurso, chiando mais do que o peito acatarrado do velho Santino.
Houve uma explosão de júbilo, a batucada varou a madrugada, parecia a feira de São Severino, tinha homem, mulher e menino, todo mundo celebrando. O bairro estava parindo naquele momento a Banda da Bica, festejando a beleza e a vitória da filha do casamento do rio Tejo com o Solimões. No filme do Armando, Terezinha Morango, a Cinderela do Amazonas, aparece ao lado dos seus sete irmãos, que circulavam pelos becos e ruas de Aparecida: Zé, Getúlio, Antonieta, Marieta, Glória, Das Dores e Manoelzinho.
A marmita do Armando
Geraldão, amigo do peito, me nomeou seu assistente de marmita, função exercida, modéstia à parte, com muita criatividade e competência. Na marmita do almoço, eu juro, a gente não tocava. Só olhava e cheirava. Mas na do jantar, considerando que vinham dois bifões acebolados aromatizados com azeite português, um deles era confiscado por nossa fome. Armando fingia que não via, dividindo o pirão com dois meninos pobres. Muitos anos depois, riu muito quando, de passagem por Manaus, lhe confessei a expropriação. Ele já sabia.
Ele deve ter tomado muito “banho de igarapé” no Mondeguinho ou Corgo das Mós, o afluente que corre por um vale sinuoso da região. Prefiro imaginar que a derradeira cena que o nosso Armando viu foi a de sua longínqua infância – uma lavadeira cantando a Balada do Mondego:
Ele, finalmente, se pôs à caminho numa tarde de abril, navegando num barco à vela para uma viagem sem volta. Fica aqui essa singela homenagem, com o agradecimento pelo bife no azeite de oliva, que certamente ocupará lugar de destaque no filme que vai me tocar ver. Dizem que dessa o Geraldão também não escapa. Dizem.
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