O Armando da Bica

José Ribamar Bessa Freire – Diário do Amazonas

Dizem que minutos antes de morrer a gente vê um filme com os melhores momentos da vida. Dizem que as imagens, em célere retrospectiva, nos mostram pessoas, lugares, situações, frases, risos, gestos e até silêncios. Dizem que na viagem de regresso pelos caminhos já trilhados, vamos recolhendo os nossos passos. Dizem que desviver assim deixa nossa alma inundada de paz e dizem, ainda, que essa é uma maneira bonita de se despedir da vida.

Dizem. Mas ninguém jamais voltou para confirmar a ocorrência desse adeus, cuja trajetória nos leva de volta ao útero materno. Se for verdade, porém, cabe perguntar quais foram as principais cenas do filme que Armando Dias Soares – o Armando Português – viu no quarto do Hospital Beneficência Portuguesa, em Manaus, pouco antes de morrer, aos 77 anos, na última terça-feira, 10 de abril. Se me dão licença,vou imaginar algumas.

Aposto que ele reviu os seus amores, suas três mulheres: dona Lourdes – esposa e fiel companheira, e as filhas – Ana Cláudia e Ana Lúcia. E, é claro, contemplou a si próprio, de jaleco azul, madrugada adentro, servindo aos clientes cerveja, caipirinha, petiscos, bolinho de bacalhau e sanduíche de pernil, no bar que se tornou uma referência tão importante para Manaus quanto seu vizinho da Praça São Sebastião, o Teatro Amazonas.

O filme não pode deixar de fora as cenas de tantos carnavais patrocinados por esse mecenas da boemia, que trabalhava duro, de sol a sol, para que os outros pudessem se divertir. É que o Bar do Armando, frequentado pelos boêmios da cidade e por turistas nacionais e estrangeiros, abriga uma das bandas mais tradicionais do carnaval manauara, a Banda Independente da Confraria do Armando, a famosa BICA, que todos os anos coloca alguns políticos na berlinda, com muito humor e senso crítico.

A Banda da Bica não saiu em 2012 em respeito à saúde já abalada de seu mentor, atacado por traiçoeira leucemia, mas em sua última edição, no ano anterior, explorou o tema “No reinado do Belão, todo mundo mete a mão”, satirizando o deputado Belarmino Lins, então presidente da Assembleia Legislativa, envolvido no escândalo da obra do governo federal, paga e não executada pela empreiteira de sua família.

É quase certo que o filme selecionou algumas imagens compartilhadas pela mídia local. O português mais amazonense que já viveu entre nós e que nunca perdeu seu sotaque deve ter se divertido, por exemplo, rebobinando as cenas da sessão da Câmara Municipal, que lhe concedeu, em 1998, o título de Cidadão de Manaus, confirmando oficialmente aquilo que o povo já havia reconhecido e consagrado nas ruas.

As outras lembranças permanecem, no entanto, embaralhadas, dando razão a Nelson Rodrigues, que nos ensina: “A morte de um velho amigo é uma catástrofe na memória. Todas as nossas relações com o passado ficam alteradas”.

Um velho amigo

Preciso ajuntar os cacos da memória para revelar as imagens do Armando recém-chegado de Portugal, em 1953. Foi aí que eu o conheci. Ele tinha, então, 17 anos. Encontrou Manaus submersa em água, numa das maiores enchentes de sua história. Com ajuda do tio, dono da Casa Dias, arrendou a taberna da dona Bati, na esquina da Rua Xavier de Mendonça com o Beco da Bosta, no bairro de Aparecida. Era lá que a turma do dominó e da cachaça se reunia.

Eu era garoto, mas lembro bem a extraordinária capacidade de adaptação desse portuga, só comparável a dos cearenses. Generoso, em pouco tempo se tornou figura popular entre sua clientela pobre, para quem vendia fiado, anotando tudo numa caderneta. Perdoou dívidas e matou fome de muita gente. Vivia o cotidiano, as dores e alegrias do bairro. Quando meu irmão Domingos Sávio morreu afogado, aos dois anos de idade, nas águas do Mindu, Armando chorava tão copiosamente que se dona Elisa, minha santa mãe, não fosse um poço de virtudes, até eu desconfiaria da paternidade.

Pouca gente sabe, mas foi lá, na taberna da dona Bati arrendada pelo Armando, que nasceu, em data marcada, a Banda da Bica, ou pelo menos o espírito que anos mais tarde a animaria. Aconteceu no dia 22 de junho de 1957. Naquela noite, uma menina pobre do bairro, Terezinha Morango, participava no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ), do concurso de Miss Brasil, representando o Amazonas.

Terezinha é filha de uma caboca do Alto Solimões, dona Emir, com um português, o seu Manoel, ele também dono de um pequeno bar na Rua Alexandre Amorim, ao lado da casa dos padres redentoristas. Mas naquela noite, o bairro inteiro se concentrou foi na taberna do Armando, em redor de um rádio a válvulas, que irradiava o concurso, chiando mais do que o peito acatarrado do velho Santino.

O resultado saiu depois da meia-noite, anunciado pela voz rouca do Armando, que com a orelha encostada no aparelho reproduzia cada detalhe, com seu sotaque de Coimbra, inventando quando não entendia o que o locutor dizia. Foi aí que soubemos que a mulher mais bela do bairro era a mais bela do Brasil, pois havia derrotado a mineira Dorotéia, com quem disputara o primeiro lugar.

Houve uma explosão de júbilo, a batucada varou a madrugada, parecia a feira de São Severino, tinha homem, mulher e menino, todo mundo celebrando. O bairro estava parindo naquele momento a Banda da Bica, festejando a beleza e a vitória da filha do casamento do rio Tejo com o Solimões. No filme do Armando, Terezinha Morango, a Cinderela do Amazonas, aparece ao lado dos seus sete irmãos, que circulavam pelos becos e ruas de Aparecida: Zé, Getúlio, Antonieta, Marieta, Glória, Das Dores e Manoelzinho.

Houve repeteco um mês depois, no dia 19 de julho, quando Terezinha disputou em Long Beach, na Califórnia, o título de Miss Universo. Tirou o segundo lugar, perdendo para a peruana Gladys Zender. (Essas peruanas sempre se apoderando dos troféus do Amazonas!). O bairro voltou a fazer um carnaval, comemorando o título de vice mais bela do mundo com a alegria típica de vascaíno. É impossível que as imagens daquela festa tenham ficado de fora do filme que o Armando via enquanto desvivia.

A marmita do Armando

No ano seguinte, a precursora da Banda da BICA saiu uma vez mais pelas ruas do bairro para celebrar a Copa do Mundo conquistada na Suécia, com a taberna do Armando fornecendo o apoio logístico. Foi num domingo, 29 de junho de 1958, desta vez de manhã, em razão dos fusos horários. Foi nesse dia que Armando, que era solteiro e não cozinhava, contratou Geraldão, hoje meu cunhado, para ir buscar, diariamente, lá na Rua Luiz Antony, a marmita que sua tia Arminda preparava.

Geraldão, amigo do peito, me nomeou seu assistente de marmita, função exercida, modéstia à parte, com muita criatividade e competência. Na marmita do almoço, eu juro, a gente não tocava. Só olhava e cheirava. Mas na do jantar, considerando que vinham dois bifões acebolados aromatizados com azeite português, um deles era confiscado por nossa fome. Armando fingia que não via, dividindo o pirão com dois meninos pobres. Muitos anos depois, riu muito quando, de passagem por Manaus, lhe confessei a expropriação. Ele já sabia.

As últimas imagens do filme que o Armando assistiu devem ter sido de sua santa terrinha, próxima à Coimbra, arborizada com choupais e cortada pelo Rio Mondego, onde ele, moleque, pescava trutas, savelhas, lampreias e outros peixes, e coletava ovos em ninhos de andorinhas, milhafres-pretos, alfaiates e outras aves.

Ele deve ter tomado muito “banho de igarapé” no Mondeguinho ou Corgo das Mós, o afluente que corre por um vale sinuoso da região. Prefiro imaginar que a derradeira cena que o nosso Armando viu foi a de sua longínqua infância – uma lavadeira cantando a Balada do Mondego:

Ai oh água do Mondego,
Ai águas do Mondeguinho,
Num dos teus barcos à vela
Seguirei o meu caminho.
Ai oh água do Mondego,
Ai águas do Mondeguinho,
Deixa-me beber-te as águas
Que me vou pôr a caminho”.

Ele, finalmente, se pôs à caminho numa tarde de abril, navegando num barco à vela para uma viagem sem volta. Fica aqui essa singela homenagem, com o agradecimento pelo bife no azeite de oliva, que certamente ocupará lugar de destaque no filme que vai me tocar ver. Dizem que dessa o Geraldão também não escapa. Dizem.

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