O filósofo Renato Janine Ribeiro analisa as práticas cotidianas de corrupção que caracterizam a tradição individualista do brasileiro e defende a necessidade de reforçar a dimensão coletiva
Mozahir Salomão Bruck*
Uma longa conversa pelo telefone com o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da USP, a respeito da ética no cotidiano, trouxe-lhe à memória um episódio importante da vida brasileira: o pronunciamento, na tribuna, de um senador indignado que, ao protestar contra a lentidão na apuração de uma chacina de presos no Rio de Janeiro, por fim, desabafava: “No Brasil, chega-se ao ponto de os honestos terem vergonha de serem honestos”. O crime a que se referia o tribuno ficou conhecido como a Chacina do Satélite. O ano era 1914 e o senador Rui Barbosa. A chacina foi cometida contra marinheiros presos a bordo do navio Satélite, ancorado no Rio, então capital federal, no início do século passado. A autoria do crime foi apurada e assumida a partir de depoimentos dos assassinos confessos, mas, mesmo assim, já passados quatro anos, o crime começava a cair no esquecimento e na impunidade.
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”, bradou o senador baiano, nascido em Salvador. O pronunciamento de Rui Barbosa entrou para a história há quase um século por sintetizar um triste sentimento presente em boa parte da sociedade brasileira – o de que ser correto não vale a pena em meio ao desrespeito geral a regras e normas, leis e preceitos.
A vergonha e o desalento em relação à honestidade e correção, no entanto, estão presentes não apenas em momentos históricos de indignação, como o citado anteriormente. Podem ser percebidos o tempo todo em nosso cotidiano: o desrespeito a quaisquer filas, seja a da padaria ou a do pedágio; ser atendido primeiro que aqueles que fizeram sua solicitação antes; jogar papel, latinha ou qualquer objeto na rua; beneficiar-se de contatos pessoais e obter privilégios na relação com o Estado; burlar prazos e exigências, seguidos pela maioria; esquivar-se de multas e outras punições, valendo-se de artifícios diversos.
São práticas cotidianas de corrupção pequenas, mas que não deixam de sê-lo e que colocam em xeque o respeito comum e a noção básica de coletividade. Comportamentos e posturas que têm deixado clara a necessidade de uma reflexão urgente sobre o sentido de bem comum e de vida comunitária. É a sensação, nos dias de hoje, de que a opção pela virtude e a honra torna as pessoas risíveis e de que o comportamento correto, na verdade, seguiria em direção oposta, ou seja, válida é a busca irrestrita da vantagem pessoal, que, afinal, se sobreporia ao bem comum. Jogar o palitinho de picolé na rua corrompe o meio ambiente. Furar a fila é corromper o mais antigo e justo concurso público do mundo. Daí que idosos ou outras pessoas que nela não podem permanecer, por algum tipo de dificuldade ou deficiência, merecem mesmo tratamento diferenciado. É a noção de equidade: tratar de modo diferente o que é diferente, mas por questão de justiça e para que, ao final, estejamos mais próximos da igualdade. Mais iguais.
Para o filósofo paulista, a sensação descrita por Rui Barbosa está há muito presente na história e na cultura brasileira, “até mais do que em outros países”, assinala. Abordando com cuidado o tema, que considera “bastante controverso”, Janine afirma que observa a questão a partir de dois pontos: a educação e a vida coletiva. Sobre a educação, “no sentido mais forte do termo”, o filósofo entende que é imprescindível que as pessoas saibam da importância de ser educado, ser atencioso e respeitoso na relação com o outro. “Esse tipo de educação não são apenas formas’’, salienta. ‘‘Quando a pessoa incorpora esse tipo de comportamento, ela está afirmando, pelas suas ações, que respeita os seus semelhantes. Isso é um ponto crucial, não apenas em relação à educação, mas em função de que daí nasce uma relação de comunidade bem melhor que a que teríamos antes.”
Senso do coletivo
Outro ponto destacado por Janine diz respeito ao modo como vivemos em comunidade. É importante, diz ele, que as pessoas sintam que agir direito é imprescindível e que vale a pena. “Quando vivemos numa sociedade em que é tão comum o sucesso do mal-educado, do criminoso, isso nos causa uma sensação de que não precisamos agir bem e que é o certo ser assim, pois senão seremos passados para trás.” Segundo Janine, sabemos que esse é um grande problema no Brasil e que para superá-lo seria necessário que se construísse algo novo em termos de experiência de vida social.
O filósofo da USP salienta que, primeiramente, é necessário que se desenvolva um senso forte do coletivo, pois “isso também é uma coisa que está faltando muito entre nós”. Segundo Janine, na sociedade, o que é coletivo ficou muito empobrecido e por isso não temos muita noção do que é o bem comum. “Nossa sociedade, explica, se fraturou em bens e interesses particulares. Alguém lutar pelo bem comum está muito difícil. Aliás, está muito difícil até as pessoas entenderem o que seja o bem comum. É algo que terá que ser construído, ou seja, como nós vamos ter uma preocupação e empenho de nos voltarmos para as coisas coletivas e entendermos que o espaço coletivo também pode ser um espaço de realização.”.
Renato Janine não esconde ser um pouco cético em relação à possibilidade de que essas mudanças se deem. Para ele, a valorização da vida individual consolidou-se a tal ponto que os alunos e mesmo outras pessoas a quem, eventualmente, vai falar sobre ética confundem ética como uma vantagem pessoal que podem conquistar, e é exatamente o contrário. “Mostrar que pode haver uma realização coletiva não é fácil, mas é algo que precisa ser concretizado”, destaca.
Para o filósofo e escritor, é urgente que sejam criadas condições para uma vida ética e coletiva e, para que isso seja construído, a pessoa precisa se sentir realizada no espaço coletivo, por isso é preciso que esse espaço coletivo seja bom para todos. A questão que se coloca é se nós podemos ter uma vida ética sem a coletividade. “E, nesse caso, nossa sociedade vai caminhar cada vez para a individualidade e, assim, teremos que definir um novo tipo de ética”, conclui.
*Mozahir Salomão Bruck é professor e pesquisador da PUC Minas.
Enviada por José Carlos.
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