A Defensoria Pública e o Direito à Moradia no Contexto dos Megaeventos Esportivos

Adriana Britto*  e Alexandre Fabiano Mendes**

1. INTRODUÇÃO

A  Constituição  Federal  de  1988  prevê  a  assistência  jurídica  integral  e  gratuita  como direito fundamental (art. 5º, inciso LXXIV), e tratou de forma pioneira da Defensoria Pública, considerada  como  instituição  essencial  à  função jurisdicional  do  Estado  (art.  134),  com  a incumbência de prestar a orientação jurídica e a defesa dos necessitados, que pressupõe a defesa  dos  direitos  individuais  e  coletivos  em  sentido  amplo,  a  fim  de  garantir  que  seja prestada a tutela jurisdicional adequada, capaz de permitir o acesso à ordem jurídica justa.

A Lei Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009, que alterou a Lei Complementar nº 80, de 94, trouxe significativos avanços com relação à estrutura da Defensoria Pública e à regulamentação  da  autonomia,  e  também ampliando  significativamente  suas  funções institucionais.

Nesse  contexto,  a  Defensoria  Pública  é  definida  como  instituição permanente  e expressão  do  regime democrático,  comprometida  também com  a  defesa  dos  direitos humanos,  valendo  destacar  os  seguintes dispositivos,  que  tratam  da  definição  legal  da Defensoria Pública e de seus objetivos.

Além  de  incumbir  a  Defensoria  Pública  da  defesa  dos  direitos  humanos  e  da cidadania, a LC 132/2009 normatiza a nova dimensão que se espera da instituição, voltada para a tutela preventiva (a partir da educação em direitos), para a tutela extrajudicial (com a utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos) e também para a tutela coletiva, a  partir  do  que se deve  inserir  a  defesa  intransigente  do  direito  à  moradia adequada combinado com o princípio da função social da posse e da propriedade (CRFB e Estatuto da Cidade).

Com  efeito,  a  falta  de  moradia  adequada  é  um  problema  que  atinge milhares  de brasileiros,  sendo  uma  demanda essencialmente  ligada  ao público  alvo  da  instituição,  aos mais  carentes  desse  país.  Em  muitos casos,  temos assentamentos  informais  e  precários, que  não  são  dotados de  condições  mínimas  de  salubridade  e habitabilidade, o  que demonstra  a ampla  demanda  pela  regularização  fundiária  integral,  capaz  de  garantir aos  moradores  o efetivo  direito  à  cidade,  com  uma  moradia  adequada  e cercada  da  infra-estrutura necessária.

Por  outro  lado,  a  dificuldade  no  acesso  ao  mercado  formal  de  obtenção de propriedade,  faz  com  que  a  maioria das  pessoas  e  comunidades carentes  sofram constantes ameaças pela insegurança da posse de suas casas, quando não chegam a ser vítimas de despejos forçados.

Pretendemos,  portanto,  a  partir  da  contextualização  do  direito  à moradia adequada como direito humano, apresentando os marcos normativos internacionais e internos sobre a matéria,  analisar  as  novas  atribuições institucionais  criadas  ou  explicitadas  pela  LC 132/2009  que  podem  ser aplicadas  com  relação  à  defesa  do direito  à  moradia.

Por  fim, apresentaremos como modelo de atuação especializada a Coordenadoria de Regularização Fundiária  e Segurança  da  Posse  da Defensoria  Publica  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro, tomando como base a experiência dos autores que atuaram no referido órgão por cerca de 2/3 anos (até abril de 2011), acompanhando mais de duzentas comunidades, sendo várias delas  atingidas  por  projetos  relacionados  aos  megaeventos esportivos  que  estão previstos para ocorrer em nossa cidade.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA ADEQUADA COMO DIREITO HUMANO E PARÂMETROS NORMATIVOS

O direito à moradia é essencial à dignidade da pessoa humana, sendo que a falta de moradia adequada impede o exercício de outros direitos como saúde, educação, trabalho e lazer. A propósito, vale destacar a lição da  ilustre defensora pública Eliane Maria Barreiros Aina, que assim aborda a questão na obra “O Direito à Moradia nas Relações Privadas”:

“A moradia é uma necessidade premente do ser humano, pois precisamos de um local para abrigo das intempéries, descanso da labuta diária, acolher a entidade familiar,  guarda  dos  bens,  e  que  confira  sensação  de  segurança, enfim,  que garanta a sobrevivência com dignidade.” (AINA, 2002, p. 67)

O conceito de moradia adequada se desenvolve a partir dos tratados internacionais de direitos  humanos,  sendo  parte integrante  do  direito  a um  padrão  de  vida  adequado.  Isso significa que não se trata de apenas de um espaço físico, sendo imperioso que tal moradia se dê em local com condições dignas, com segurança (sem ameaça de remoção) e cercado de toda a infraestrutura de água, esgoto, transporte, saúde educação etc.

Deve-se iniciar tal análise a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de  1948  (ratificada  pelo  Brasil  em 10.12.1948),  que  representa um  dos  mais  antigos reconhecimentos do direito à moradia adequada, in verbis:

Artigo  XXV:  I)  Todo  o  homem  tem  direito  a  um  padrão  de  vida  capaz  de assegurar  a  si  e  a  sua família  saúde e  bem  estar,  inclusive  alimentação, vestuário,  habitação,  cuidados  médicos  e  os serviços sociais indispensáveis, e direito  à  segurança  em  caso  de  desemprego,  doença,  invalidez,  viuvez, velhice ou  outros  casos  de  perda  de meios  de  subsistência  em  circunstâncias  fora  de seu controle.

Contudo,  à  época  ainda  não  havia  uma  preocupação  específica  com  o detalhamento do que constituiria uma “moradia adequada”, limitando-se  a declaração  em  estabelecer  o direito  humano  à  moradia.  A  mesma característica  pode  ser  encontrada  no  Pacto Internacional  de  Direitos Sociais,  Econômicos  e  Culturais  (ratificado pelo  Brasil  em 24.04.1992 – Decreto Federal n. 591, de 06 de julho de 1992):

Artigo 11 (1): “ Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda  pessoa  a  nível  de  vida adequado para  si  próprio  e  sua  família,  inclusive  à alimentação,  vestimenta  e  moradia  adequadas, assim  como  a  uma melhoria contínua  de  suas  condições  de  vida.  Os  Estados  Partes  tomarão medidas apropriadas  para  assegurar  a consecução  desse  direito,  reconhecendo,  nesse sentido,  a importância  essencial  da  cooperação  internacional fundada  no  livre consentimento.

Na década de 90, foi realizado um valioso esforço com relação à especificação do que estaria abrangido no conceito de moradia adequada.

Nesse  sentido,  foi  editado  o  comentário  geral  no  4  do  Comitê  das Nações Unidas  de Direitos  Econômicos, Sociais  e  Culturais,  que  se  tornou  o principal  instrumento  de interpretação do direito à moradia adequada.

A  partir  do  Pacto  Internacional  de  Direitos  Econômicos,  Sociais  e  Culturais,  os direitos  previstos  no artigo  XXV, da  Declaração  Universal,  passam  a  ter  um tratamento específico.(…)

O artigo 11 deste Pacto contém o principal fundamento do reconhecimento do  direito  à  moradia  como  um direito humano,  do  qual  gera,  para  os Estados-partes signatários, a obrigação legal de promover e proteger esse direito, sendo  este  o  principal  fundamento  par  o  Estado  Brasileiro  ter essa responsabilidade,  uma  vez  que  o  Brasil ratificou  não  somente  esse  Pacto,  mas também o de Direitos Civil e Políticos no ano de 1992. (SAULE JUNIOR, 2004, p. 91)

Segundo  o  Comentário  do  Comitê  das  Nações  Unidas,  o  primeiro elemento fundamental do direito à moradia, é a segurança jurídica da posse, garantida através da seguinte  redação: “todas as pessoas devem possuir um grau de segurança de posse que lhes  garanta  a  proteção  legal  contra despejos  forçados,  expropriação,  deslocamento  e outras ameaças”.

Outro Comentário do Comitê extremamente relevante é o no 07, que trata somente dos despejos forçados, demonstrando a preocupação internacional com essa violação ao direito à moradia.

Nele,  os  compromissos  adotados  no  Comentário  no  04  são  reafirmados,  incluindo recomendação  expressa  aos Estados  signatários  para que tomem  “todas  as  medidas necessárias” para que não haja nenhuma violação ao direito de moradia adequada, em especial através de despejos ilegais, estabelecendo uma série de exigências para que seja observado um devido processo legal pautado nas normas de direitos humanos.1

O Comitê expressamente afirma que “o procedimento utilizado em litígios relativos à moradia não  pode  deixar  os desalijados  na  condição  de  sem-teto, ou  em  situação  de vulnerabilidade  com  relação  aos  direitos  humanos, devendo  os  Estados  signatários providenciar  todas  as  medidas  necessárias  para  ofertar  uma  moradia  alternativa, o reassentamento ou o acesso à terra produtiva” (livre tradução do item 16).

Oportuno  observar  que,  apesar  de  estarmos  vinculados  à  aplicação  dos referidos tratados  internacionais,  que define  parâmetros  que  devem  ser adotados  pelo  executivo, judiciário  e  legislativo,  muitas  vezes  tais parâmetros são  completamente  ignorados,  o  que impõe  a  necessidade  não só  de  divulgação  de  toda  essa  proteção  ao direito à  moradia adequada, mas também de haver uma reforma legislativa que possa incluir expressamente tais diretrizes na legislação interna.2

Além  dos  tratados  internacionais  de  direitos  humanos,  temos  um  grande sistema  de proteção  do  direito  à moradia,  a  começar  pela  Constituição Federal  de  1988  que  o incorporou  textutalmente,  consagrando-o  como direito  fundamental,  particularmente  no  rol dos Direitos Sociais do art. 6º, sendo seu componente principal o princípio da dignidade da pessoa  humana, disciplinado  no  art.1º,  III, já que,  como mencionamos, o  direito  à moradia está atrelado a parâmetros mínimos de uma vida com dignidade.

Também  na  Constituição  Federal  encontramos  um  capítulo  próprio  sobre a  política urbana, que privilegia  a função  social  da  cidade  e  da propriedade,  determinando que a política  de  desenvolvimento  tem  por objetivo  o pleno  desenvolvimento  das  funções  sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 182), corroborando o que já consta elencado no rol dos direitos fundamentais do art. 5º, inciso XXIII, que é  a função social da propriedade.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que se destina a regulamentar os artigos 182  e  183  da  Constituição Federal,  também  subordina  a propriedade  ao  cumprimento  de sua função social, e cita expressamente o direito à moradia em seu artigo 2º.

Apesar  de  ser  estabelecido  na  própria  Carta  Magna  a  vinculação  da  propriedade  ao atendimento  de  sua  função social,  observamos  ainda  uma  grande  resistência  do  Poder   5 Judiciário  no  reconhecimento  dos  direitos  dos possuidores,  negando  efetividade  aos comandos constitucionais.

Com  isso,  fica  prejudica  a  segurança  da  posse,  tão  preconizada  nos marcos internacionais  já  mencionados,  e  que também  pode  ser  defendida a  partir  do reconhecimento da função social da posse e da propriedade, conforme disposto no próprio art. 1.228, §1º do Código Civil, limitando os direitos do proprietário que não cumpre a função social e protegendo os direitos do possuidor que a exerce com fim social.

Sobre  a  função  social  da posse,  com  muita  propriedade  se  manifestou  a defensora pública  Ana Rita Vieira Albuquerque,  na  obra  “Da  Função  Social da  Posse  –  e sua conseqüência frente à situação proprietária”, conforme se transcreve abaixo:

A função social da posse representa uma alteração do paradigma do conceito da  posse,  maximizando-o,  para  visualizar,  ao  lado  dos elementos  internos, que  são  a  apreensão  física  da  coisa  e  a  vontade,  um  outro  elemento  que compõe esta vontade, qual seja,  a sua utilização econômica,  e um elemento externo – a consciência social, tal como proposta na doutrina de Salleilles. A composição de todos esses elementos torna clara a função social da posse e a  necessidade  de  proteção  da  posse  pela  posse  em  si  mesma,  como  direito indeclinável  do  possuidor,  ainda  que  diante  da  situação  proprietária. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 208)

Portanto,  é  possível  identificar  uma  série  de  avanços  legislativos  e políticos  com relação  ao  direito  à  moradia  e à  segurança  da  posse,  que devem  pautar  a  atuação  da Defensoria Pública, promovendo a proteção integral dos direitos humanos.

Importante  salientar  que  os  parâmetros  normativos  acima  indicados  devem fundamentar  todo  o  trabalho  da Defensoria  Pública  com  relação  à  defesa  da  moradia adequada, não servindo apenas para a defesa judicial, mas também e, primordialmente, na educação em direitos e na mediação de conflitos em face do poder público e de particulares.

3.  PANORAMA  DAS  ATRIBUIÇÕES  INSTITUCIONAIS  DE  ACORDO  COM  A  LC 132/2009 E DEFESA DO DIREITO À MORADIA

Importante  fazermos  um  panorama  das  atribuições  institucionais  a  partir  da  nova redação ou inclusão de incisos ao art. 4º da Lei Complementar nº 80/94 (Art. 4º São funções institucionais  da  Defensoria  Pública,  dentre  outras:  …),  no  que  diz  respeito  às  atribuições que podem se correlacionar com a defesa do direito à moradia.

I  –  prestar  orientação  jurídica  e  exercer  a  defesa  dos  necessitados,  em todos os graus

Trata-se  da  função  básica  da  instituição,  que  corresponde  à  assistência  jurídica integral prevista na Constituição Federal, o que significa não só o ajuizamento de ações e o acesso  ao  judiciário  (assistência  judiciária)  mas  pressupõe também  o  aconselhamento,  a obtenção  de  informações,  enfim,  a  orientação  acerca  dos  direitos,  o  que  tem  um cunho preventivo ao conflito, tanto individual quanto coletivo.

No  aspecto  coletivo  da  orientação  jurídica  é  possível  desenvolver  de  forma  mais efetiva a educação em direitos, função ressaltada pelo novo inciso III do artigo em comento, o que será objeto de comentários abaixo.

II – Promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à  composição  entre  as pessoas  em  conflitos  de  interesse,  por  meio  de mediação,  conciliação,  arbitragem  e  demais técnicas  de  composição  e administração de conflitos.

A  busca  de  solução  extrajudicial  aos  conflitos  já  constava  na  redação original  da  LC 80/94, mas foi enfatizada pela nova Lei Complementar, que cuidou de citar nominalmente as formas  alternativas  de  resolução  de conflitos, sem  prejuízo  de  outras  técnicas  de composição de conflitos.

Vale  lembrar  que  o  conceito  de  acesso  à  justiça  não  se  confunde  com acesso  ao judiciário,  que  muitas  vezes acaba  sendo  obstáculo  para  se alcançar  a  justiça,  razão  pela qual tem se priorizado as soluções alternativas que garantam a solução do conflito de forma mais célere, representando a almejada pacificação social.

Dessa forma, a composição de conflitos passa a ser mais ágil e eficaz, desafogando o Judiciário,  e  se  mostrando  em plena  consonância  com  uma das  tendências  modernas  do processo civil, que consiste na valorização e na busca de meios alternativos de solução de conflitos (WATANABE, 1988, p. 132).3

Importante  destacar  a  eficácia  dos  acordos  firmados  pelo  defensor público,  pela possibilidade  de  ensejarem  uma execução  judicial  em  caso de  descumprimento,  uma  vez que o art. 585, inciso II, do Código de Processo Civil enumera dentre os títulos executivos extrajudiciais o “instrumento de transação referendado pela Defensoria Pública”.

Relevante  salientar  que  o  novo  §4º  do  art.  4º,  que  menciona  que  “o instrumento de transação, mediação  ou conciliação referendado pelo Defensor Público valerá como título executivo extrajudicial, inclusive quando celebrado com a pessoa jurídica de direito público” , o que mostra a relevância de se priorizar a celebração de tais acordos.

A  propósito,  verifica-se  que  a  defesa  do  direito  à  moradia  pode  ser  feita, ou  melhor, deve ser feita, em primeiro lugar, na esfera de mediação e conciliação de conflitos, máxime em se tratando de conflitos coletivos, que são tão comuns, infelizmente.

Note-se que muitas vezes o poder público é o principal violador dos marcos legais de direito  interno  e  internacional acima  enumerados,  abusando  do poder  de  polícia  com  a retirada sumária de pessoas de suas moradias, e demolição das mesmas, sem garantia do devido  processo  legal;  e  também ficando  omisso  quando  ocorrem despejos  forçados  que deixam dezenas de famílias na condição de “sem-teto”, sem apresentar qualquer auxílio ou alternativa habitacional.

Com isso, mostra-se indispensável que a Defensoria Pública busque canais de diálogo entre  as  comunidades envolvidas,  o  poder  público  e  outras instituições  e  entidades,  na busca de soluções democráticas e participativas que garantam a proteção da dignidade das famílias envolvidas.

III  –  promover  a  difusão  e  a  conscientização  dos  direitos  humanos,  da cidadania e do ordenamento jurídico

A  inovação  da  LC  132  de  2009  se  mostra  em  tal  inciso,  destacando  o papel  da Defensoria  Pública  na  educação em  direitos.  Mais  do  que  a orientação  jurídica  de  cada caso,  respondendo  às  indagações  do  assistido que procurou  o  órgão  de  atuação,  temos aqui  nítida  a  missão  de difundir e  conscientizar  a  população  acerca  dos direitos  humanos, da  cidadania  e do  ordenamento  jurídico,  o  que  demanda  uma  atuação  pró-ativa e preventiva, permitindo o acesso à informação.

Sobre a relevância do direito à informação, oportuno trazermos o comentário de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, que o apresenta como primeiro elemento ao tratar do princípio da acessibilidade, relacionado ao acesso à justiça. Em suas palavras:

Esse  dado,  o  direito  à  informação,  como  elemento  para  garantir  o  acesso  à justiça em países em desenvolvimento como o nosso, é tão importante como o  de  ter  um  advogado,  um  defensor,  que  esteja  à disposição daqueles necessitados  que,  conhecedores  de  seus  direitos,  querem  exercê-los.

Trata-se de pessoas que não têm condições sequer de ser partes – os „não partes? são pessoas absolutamente marginalizadas da sociedade, porque não sabem nem mesmo os direitos de que dispõem ou de como exercê-los; constituem o grande contingente de nosso país. (CARNEIRO, 1999, p. 58)

Já com relação à vinculação da Defensoria Pública com a promoção da cidadania, cabe mencionarmos  a observação de  Diogo De Figueiredo Moreira Neto, que destaca que dentre  as  instituições  de  provedoria  de justiça,  a  Defensoria Pública  mereceria  destaque para a realização da plenitude da cidadania, diante de nosso contexto social de exclusão:

Sem  Defensoria  Pública,  parcela  substancial,  quiçá  majoritária  da  sociedade, estaria  condenada  à  mais execrável  sorte  de  marginalização,  além  das  que  já sofrem,  a  econômica  e  a  social:  a  marginalização  política. Condenados,  os necessitados, a serem cidadãos de segunda classe, perpetra-se o mais hediondo dos  atentados  aos direitos,  liberdades  e  garantias  constitucionais, impossibilitando que na sociedade brasileira se realize o Estado de Direito – pela ilegalidade  sem  sanção;  se  afirme  o  Estado  Democrático  –  pela  cidadania  sem ação;  e se caminhe para o Estado de Justiça  – pela imoralidade sem  oposição. (MOREIRA NETO, 1995, p. 25)

Uma  vez  reconhecido  o  direito  à  moradia  como  direito  humano,  revela-se  a necessidade  de  difundir  tal conceito bem  como  disseminar  os aspectos  que  envolvem  o direito à moradia adequada, sendo importante considerar que tal direito é essencial para o exercício  da  cidadania  e  de tantos  outros  direitos  também  fundamentais,  pois  sem uma moradia adequada é muito difícil ter acesso à saúde, à educação etc.

Nesse sentido cabe destacar a campanha nacional “Cidadania  começa  em casa. Defensores  Públicos  pelo  direito  à moradia”,  lançada  pela  ANADEP (Associação Nacional de Defensores Públicos)  no dia 19 de maio de 2010 (Dia Nacional da Defensoria Pública), que se efetivou com a realização de atendimentos em sistema de mutirão em todo o país, informando o cidadão sobre diversos temas relacionados à moradia, e também com a  edição  de uma  cartilha, em  parceria  com  o  Ministério  das  Cidades,  pela Secretaria Nacional de Programas Urbanos.

IV  –  prestar  atendimento  interdisciplinar,  por  meio  de  órgãos  ou  de servidores de suas Carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições

A atribuição em análise em muito se aplica com relação à defesa do direito à moradia, pois cada vez se mostra mais útil e necessária a atuação interdisciplinar em prol da máxima eficiência da atuação da Defensoria Pública, o que se aplica tanto em relação aos conflitos fundiários como também no processo de regularização fundiária.

Com efeito, o apoio técnico de engenheiros e arquitetos é relevante para que se possa implementar  a  regularização fundiária  de  forma  autônoma  pela instituição,  o  que pressupõe a elaboração de plantas individuais ou coletivas; também se mostra relevante a atuação de profissionais relacionados à área de engenharia e arquitetura para atuação nos conflitos fundiários, podendo analisar as condições dos imóveis ocupados, as condições de habitabilidade, segurança,  o  possível  risco  e  formas  de  sua neutralização    etc,  ou  mesmo auxiliar  as  comunidades  com  relação a obras  e  melhorias  que  desejem  fazer  em  seus imóveis.

Além  disso,  vislumbra-se  a  possibilidade  de  atuação  de  tais  profissionais como assistentes  técnicos  nos processos judiciais  em  que  a  perícia  judicial é  necessária,   9 garantindo  subsídios  à  defesa  das  partes  assistidas  pela Defensoria,  que,  assim, alcançariam  a  almejada  paridade  de  armas  da  relação  processual,  e  o  atendimento aos princípios da isonomia e do acesso à justiça.

Também se revela importante para garantir a maior eficácia da atuação institucional, a disponibilização  de  assistentes sociais,  profissionais habilitados  a  lidar  com  as  pessoas socialmente  vulneráveis,  devendo-se atentar  que  muitas vezes  o  atendimento  envolve pessoas que vivem em moradias totalmente inadequadas insalubres, ou mesmo moradores de rua e “sem teto”, sendo  fundamental o trabalho de tais profissionais para realização de cadastramento das famílias e identificação das demandas.

V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e  o  contraditório  em  favor  das  pessoas  naturais  e  jurídicas,  em  processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias

Aqui se trata de promover a defesa do contraditório e da ampla defesa nos processos administrativos  e  judiciais,  em todas  as  instâncias,  o  que  revela que  a  atuação  da Defensoria  extrapola  a  defesa  dos  direitos  subjetivos das partes  envolvidas  no  processo, alcançando a defesa de valores e princípios constitucionais.

No  caso  da  defesa  do  direito  à  moradia  adequada,  indispensável  tal atuação, considerando  que  nos  conflitos coletivos  envolvem  muitas  vezes centenas  de  famílias  e decorrem de atuação estatal que extrapola o poder de polícia,  p.ex., violando os princípios acima  indicados,  e  tornando necessário  o  ajuizamento  de  ação  para  garantir a  plena observância de tais garantias fundamentais do cidadão.

Por  outro  lado,  não  é  menos  verdade  que  muitas  vezes  encontramos  um poder judiciário  afastado  da  realidade social,  ignorando  o  princípio  da função  social  da propriedade,  com  o  deferimento  de  liminares  sem observar  os requisitos  autorizadores  da medida, permitindo reintegração de posse em casos de posse velha ou de total ausência de cumprimento da função social da posse pelo proprietário, em repetidos casos de abandono de imóveis  etc,  o  que dificulta  a  resolução  do  conflito  possessório  de  forma pacífica, democrática e garantidora dos direitos à moradia e à segurança da posse.

Em todo caso, é imperioso que os defensores públicos preconizem o direito à moradia adequada,  questionando  o descumprimento  dos  parâmetros  internacionais  de  direitos humanos em todas as instâncias e utilizando-se de todos os recursos cabíveis, até mesmo em razão da necessidade de esgotamento das instâncias recursais para permitir denúncias internacionais.

VI  –  representar  aos  sistemas  internacionais  de  proteção  dos  direitos humanos, postulando perante seus órgãos

A  inovação  da  LC  132/2009  nesse  aspecto  se  mostra  condizente  com  os novos contornos  dados  à  instituição, com  a  incumbência  expressa  de promover  os  direitos humanos  (art.  1º),  e  tendo  como  um  de  seus objetivos  a prevalência  e  efetividade  dos direitos  humanos  (art.  3º),  o que  se  aplica  ao  direito  à    moradia  adequada, amplamente reconhecido como direito humano pelos documentos internacionais.

Assim,  além  de  preconizar  defesa  do  direito  à  moradia,  em  todas  as instâncias, esgotando-se  os  recursos possíveis,  verifica-se  a  possibilidade da  Defensoria  Pública apresentar  denúncia  internacional  a  Corte Interamericana  de  Direitos  Humanos,  já  que  o Brasil  reconheceu  a competência  de  tal  Corte  e  se  submete  a  tal sistema  de  proteção  de direitos humanos.

A propósito, vale relembrar o art. XI da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, que estabelece que “toda pessoa tem o direito à preservação de sua saúde  por  meio  de  medidas  sanitárias  e  sociais relacionadas  à  alimentação,  vestuário, habitação e cuidados médicos, na extensão permita pelos recursos públicos e comunitários”.

Ademais,  a  Convenção  Interamericana  de  Direitos  Humanos  (1969/1992)  é  aplicável na promoção dos direitos à moradia conforme o seu artigo XXI, que claramente subordina a propriedade ao interesse social, havendo também muitos outros documentos internacionais que trazem em seu bojo a proteção ao direito à moradia: Convenção Internacional sobre a Eliminação de  todas  as  Formas  de  Discriminação  Racial  (1965),  Convenção Internacional sobre  a  Eliminação  de  todas  as  Formas  de  Discriminação da Mulher  (1979),  Convenção sobre  os Direitos  da  Criança  (1989), Convenção dos  Trabalhadores  Migrantes  (1990), Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (1989), entre outras.

VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar  a  adequada  tutela  dos  direitos  difusos,  coletivos  ou  individuais homogêneos  quando  o  resultado  da  demanda  puder  beneficiar  grupo  de pessoas hipossuficientes

A  legitimidade  ativa  da  Defensoria  Pública  para  a  propositura  de  ações coletivas  já vinha  sendo  reconhecida  em sede  doutrinária  e  jurisprudencial,  e  poderia  ser  extraída  do próprio  texto  constitucional, todavia,  hoje  se mostra  inquestionável  diante  do  arcabouço   11 legislativo vigente  que  afirma  tal  legitimidade  de  forma  expressa, espancando qualquer dúvida porventura ainda existente.

Nesse sentido, temos a Lei n. 11.448/07, que incluiu a Instituição no rol de legitimados para o exercício da ação civil pública do artigo 5º. da Lei n. 7.347/85.

“Art. 5o  Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;

(…)”

Com a edição da Lei Complementar nº 132, assegurou-se mais uma vez a legitimidade da  Defensoria  Pública  para  a tutela  coletiva  mediante  todas as  espécies  de  ações,  sendo certo que a suposta restrição da atribuição à hipótese em que “o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes” corresponde  ao  consectário lógico  da atuação institucional.

Vale esclarecer que a tutela coletiva pode  até  alcançar  não hipossuficientes, seja em razão  da  impossibilidade  de delimitação  dos  titulares  dos interesses  em  jogo  (interesses difusos), seja em razão da inexistência de uma homogeneidade do grupo quanto à carência econômica  (interesses  coletivos stricto  sensu);  o  que  não descaracteriza  a  legitimidade  de atuação pois se estará promovendo a uma parcela dos destinatários da referida tutela, que é o público alvo da defensoria, a tutela jurisdicional adequada.4

Note-se  que,  quando  falamos  em  tutela  coletiva  do  direito  social  e fundamental  à moradia, essencialmente estamos diante de hipossuficientes, ou seja, pessoas que não tem acesso  à  moradia  adequada,  daí  a  maior importância  de  se  destacar  tal  atuação  da Defensoria Pública, que assume uma dimensão política e social muito significativas. Vale  observar  que, embora  o  exercício  da  tutela  coletiva  pela  Defensoria  Pública venha se aprimorando e se tornando cada vez mais freqüente, especialmente em relação ao direito do consumidor, notamos uma atuação ainda tímida com relação ao direito à moradia.

Tal  fenômeno,  a  toda  evidência,  não  decorre  da  escassez  da  ocorrência de  conflitos fundiários  coletivos, urbanos ou  rurais,  em  todo  país,  muito pelo  contrário!  Também  não  é de  se  desprezar  a  imensa  demanda  por implementação  dos  instrumentos  previstos  na Constituição Federal e no Estatuto das Cidades com relação aos assentamentos irregulares, a fim de possibilitar a todos a regularização fundiária plena e o acesso à moradia adequada.

Note-se  que,  em  sede  de  tutela  coletiva  do  direito  à  moradia,  evidencia-se  de  forma cristalina o caráter preventivo, uma vez que a regularização fundiária de uma comunidade, por  exemplo,  confere  maior  segurança  à posse  exercida  pelas  famílias,  afastando-se  a ameaça de remoções e evitando-se conflitos individuais e coletivos decorrentes da posse.

Oportuno  trazermos  a  análise  apresentada  por  MASCARENHAS  (1995,  p.  70)  que distingue  a  atuação  da Defensoria Pública em duas categorias, as “tradicionais” e as “não  tradicionais”, sendo que estas seriam aquela vinculadas aos Núcleos de Terras e Habitação, Defesa do Consumidor e Defesa da Cidadania, ocupando um espaço institucional novo, por traduzir “importante  modificação  da  filosofia  no  que  diz  respeito  à  sociedade,  aos conflitos que a permeiam e às formas de encaminhamento da composição desses conflitos”.

Insta consignar a eficácia política decorrente de tal atuação da Defensoria Pública, que pressupõe uma aproximação com os movimentos sociais, dando um novo horizonte para a Instituição, revelando uma função social ainda maior:

(…) articulando-se como os movimentos sociais e dispensando aos conflitos coletivos tratamento  consentâneo  com essa  realidade,  as  Defensorias  Públicas  “não-tradicionais”  evitam  a  dispersão  de  conflitos  de  grupo  em conflitos individuais. Conseqüentemente,  produzem  uma  maior  visibilidade  dos  fatos  econômica  e socialmente relevantes  e impedem  a  vulgarização  e  revelam  a  dimensão  política desses  conflitos. (…)  Dessa forma,  a Defensoria  Pública participa  do  movimento  de ampliação  do  Acesso  à  Justiça,  atua  como  vetor  da  expansão do sentimento de cidadania e se engaja no esforço de construção de uma sociedade mais democrática. (MASCARENHAS, 1995, p.81)

X  –  promover  a  mais  ampla  defesa  dos  direitos  fundamentais  dos necessitados,  abrangendo  seus  direitos  individuais,  coletivos,  sociais, econômicos,  culturais  e  ambientais,  sendo  admissíveis  todas  as  espécies  de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela

Aqui temos o destaque à defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, onde se encaixa  perfeita  e necessariamente  a  defesa  do  direito  à  moradia, também  considerado como  direito  social,  sendo  importante abordarmos com  um  pouco  mais  de  atenção  a questão da justiciabilidade dos direitos sociais e seus parâmetros.

A  Emenda  Constitucional  n.  26/2000  erigiu  o  direito  à  moradia  à categoria  de  direito social,  cujo  núcleo essencial  é  considerado  direito fundamental  até  mesmo  para  as  mais restritivas  correntes constitucionalistas, sendo  certo  que,  como  já  vimos  anteriormente, a moradia é considerada direito fundamental em diversos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

O  Poder  Judiciário,  como  parte  da  estrutura  do  Estado  Brasileiro,  deve estar  atento aos compromissos assumidos pelo Brasil no cenário internacional, bem como aos direitos e garantias fundamentais consolidados em nossa Constituição.

As  normas  constitucionais  que  determinam  a  proteção,  dentre  outros direitos,  da dignidade  da  pessoa  humana  e da  moradia  devem  ser concretizadas  no  plano  real  pelo Poder Público, cuja liberdade de conformação está limitada pela necessidade de efetivação dos direitos básicos do cidadão.

Assim, tem-se que  a  discricionariedade  na  atuação  da  Administração  é balizada  pela consecução, ao menos, do núcleo essencial dos direitos fundamentais constitucionalmente elencados.  A  liberdade  de  conformação do Administrador  é  relativa,  ela  somente  se apresenta  quando  atendidas as  necessidades  básicas  do  cidadão,  o  que significa  que  o Poder  Público não  é  livre  para  investir,  por  exemplo,  em  publicidade  e/ou  subvenções a escolas de  samba  ou  times  de  futebol  quando  não  são  satisfatórios  os investimentos  em moradia, saúde e educação.

Em  outra  esteira,  é  inadmissível  que  o  Poder  Judiciário  continue  a interpretar  a Constituição da República como um mero protocolo de intenções, quando a força normativa da Constituição é amplamente reconhecida pela doutrina pátria e alienígena.

O  professor  Luis  Roberto  Barroso,  comentando  sobre  a  efetividade  das  normas constitucionais, leciona que, verbis:

“Embora  resulte  de  um  impulso  político,  que  deflagra  o  poder  constituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico, é  um  sistema  de  normas.  As  normas constitucionais,  como  espécie do  gênero normas  jurídicas,  conservam  os  atributos  essenciais  destas, dentre  os  quais  a imperatividade.  De regra,  como  qualquer  outra  norma,  elas  contêm um mandamento,  uma  prescrição,  uma  ordem,  com  força jurídica  e  não  apenas moral.

(…)

Disto  resulta  que  o  Direito  Constitucional  ,  tanto  quanto  os  demais  ramos  da ciência  jurídica,  existe para realizar-se.    Vale  dizer:  ele  almeja  à  efetividade.  Efetividade,  já  averbamos  em  outro  estudo, designa  a  atuação da  norma, fazendo prevalecer, no mundo dos fatos, os valores por  ela tutelados. Ela simboliza  a  aproximação,  tão íntima  quanto  possível,  entre  o  dever-ser normativo  e  o  ser  da realidade  social.    Ao  ângulo  subjetivo,  efetiva  é a norma  constitucional  que  enseja  a  concretização  do direito  que  nela  se substancia,  propiciando  o  desfrute  real do  bem  jurídico  assegurado.” (BARROSO, 1990, pp. 282/283)

No  âmbito  do  Supremo  Tribunal  Federal,  o  Min.  Celso  de  Mello  em diversas oportunidades  manifestou  posição sobre  o  assunto.  Podemos  citar  a  seguinte  decisão,  de 18 de setembro de 2008, in verbis:

AI 677274/SP

Salientei,  então,  em  tal  decisão,  que  o  Supremo  Tribunal  Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os  direitos econômicos,  sociais  e  culturais,  que  se  identificam  –  enquanto direitos  de  segunda  geração  (como  o  direito  à educação,  p.  ex.)  –  com  as liberdades  positivas,  reais  ou  concretas  (RTJ  164/158-161,  Rel.  Min.  CELSO DE MELLO).

É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria  Constituição,  por  efeito  de violação  negativa  do  estatuto  constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas  impostas  ao  Poder  Público,  consoante  já  advertiu,  em  tema  de   14 inconstitucionalidade  por omissão,  por mais  de  uma  vez  (RTJ  175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

No  entanto,  não  se  desconhece  que  a  justiciabilidade  dos  direitos  sociais,  isto  é,  a aptidão do Poder Judiciário para impor a implementação de políticas públicas pelos órgãos de governo, é alvo de grandes e aguçadas polêmicas.

Neste contexto, importa analisar a tese defendida por alguns juristas, de que cabe ao Poder  Judiciário  concretizar  as condições  necessárias  para  a participação  de  todos  os indivíduos no debate democrático, sem o que se torna falacioso o argumento “democrático-orçamentário”.

Expoente da teoria sub examen, Cláudio Pereira de Souza Neto assim se posiciona a respeito do tema:

Como  se  sabe,  em  todo  esse  complexo  debate  sobre  a  relação  entre fundamentação  e  normatividade,  uma  das áreas  mais  problemáticas  é justamente  a  dos  direitos  sociais.  Dentre  as  questões  que  ocupam  o  centro do debate contemporâneo,  a  que  tem  suscitado  as  polêmicas  mais  intensas  é exatamente  a  aferição  de  em  que  grau  de intensidade  e  de  abrangência  o Judiciário pode concretizar direitos que demandam prestações positivas do Estado, como é o caso da saúde, da educação, da moradia etc. É freqüente a alegação de que não cabe ao Judiciário realizar a concretização de tais direitos, visto que esta depende de opções de caráter orçamentário, a serem tomadas em cenários  de  escassez  de  recursos.  A  atuação  social  do  Estado  estaria condicionada à “reserva do possível”, razão pela qual a legitimidade para a tomada de decisões nessa seara seria do Executivo e do Legislativo, compostas por autoridades escolhidas pelo voto popular.

Contudo,  adotando-se,  como  critério  para  a  definição  da  fundamentalidade material dos direitos sociais, a noção de “condições para a cooperação na deliberação  democrática”,  o  argumento  “democrático-orçamentário” fica superado.  Quando  o  Judiciário  concretiza  tais  condições,  a  despeito  da vontade  da  maioria,  não  está usurpando  a  soberania  popular,  mas garantindo seu pleno exercício. Se há ou não recursos para fazê-lo,  esta é outra questão. O que importa, sob o prisma da legitimidade, é observar que a  objeção  democrático-orçamentária  à atribuição  de  fundamentalidade  aos direitos sociais incide em uma falácia, ao vincular duas questões distintas: uma é a da fundamentalidade material, que decorre do conteúdo da norma; outra  é  dos  meios  necessários  para  concretizá-la.

Uma  norma  não  pode, evidentemente,  deixar  de  ser  considerada materialmente  fundamental  por apresentar maiores dificuldades de concretização”. (SOUZA NETO , 2006. p. 245 e 246) .

Outra  teoria  já  consolidada  no  cenário  jurídico  brasileiro  é  a  que  alude  ao  chamado “mínimo existencial”,  que se traduziria  no  núcleo  essencial  dos  direitos  sociais,  ou  seja, naquela  parcela  vital  do  direito  sem  a qual  resta totalmente  esvaziado  o  seu  conteúdo.

O jurista Ricardo Lobo Torres, explica o conceito, in verbis:

Os  mínimos  sociais,  expressão  escolhida  pela  Lei  no  8742/93,  ou  mínimo  social (social minimum), da preferência de John Rawls, entre outros, ou mínimo existencial, como  dizem  a  doutrina e  a jurisprudência americanas,  integram também  o  conceito de cidadania. Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto da intervenção do Estado que ainda exige prestações estatais positivas. (TORRES, 2001, p. 286)

Este  núcleo  intangível  do  direito,  consubstanciador  de  condições mínimas de existência  digna,  define  a  esfera  de fundamentalidade  e,  por conseguinte,  serve  de parâmetro para a atuação judicial positiva tendente a compelir o Administrador à efetivação dos direitos sociais.

O  próprio  jurista  anteriormente  citado,  abordando  o  problema  específico  da  moradia, considera  obrigatória  a prestação  do  Estado  quando  se  trata  de  indigentes  e  sem  teto,  in verbis:

E o direito à moradia, é fundamental ou social? No que concerne aos indigentes e às pessoas sem teto a moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial  e  tornando  obrigatória  a  prestação  do  Estado.  Já  as moradias populares  ou  de  classe  média  se  tornam  direitos  sociais,  dependentes  das políticas  públicas  e  das opções  orçamentárias.  (grifamos)  (TORRES,  2001,  p. 289)

Note-se  que  a  judicialização  dos  direitos  sociais,  conforme  parâmetros acima expostos,  permite  que  se  dê visibilidade  a  pessoas  excluídas  da sociedade,  a  partir  de demandas que muitas vezes são ignoradas, obrigando o judiciário a assumir sua parcela de responsabilidade na resolução do conflito, que pressupõe o compromisso de encontrar uma solução que proteja o direito fundamental à moradia.

4.  EXEMPLO  CONCRETO:  ATUAÇÃO  DA  COORDENADORIA  DE REGULARIZAÇÃO  FUNDIÁRIA  E  SEGURANÇA  DA  POSSE  DA  DEFENSORIA PÚBLICA  DO  ESTADO  DO  RIO  DE  JANEIRO  NA  MEDIAÇÃO  E MONITORAMENTO DE CONFLITOS POSSESSÓRIOS

Vimos até aqui o contexto no qual se insere o direito à moradia adequada, dentro do conceito  de  direito  humano fundamental,  integrado  a  uma  grande  rede  normativa internacional e também no âmbito interno; também analisamos várias dimensões em que se pode preconizar o direito à moradia, a partir da análise das novas atribuições institucionais trazida pela Lei Complementar nº 132/2009.

Entendemos  ser  válido  trazer  o  exemplo  prático  da  Defensoria  Pública do Estado  do Rio  de  Janeiro  que,  desde julho  de  2008,  criou  a Coordenadoria  de  Regularização Fundiária  e  Segurança  da  Posse 5, reunindo  os  já existentes  Núcleo  de  Loteamentos  e Núcleo  de  Terras  e Habitação,  que  são  considerados  núcleos  especializados para  a promoção do direito à moradia adequada em âmbito coletivo no Rio de Janeiro.

O  objetivo  geral  da  implementação  da  Coordenadoria  foi  permitir  a ampliação,  a especialização  e  o aprimoramento da  atuação  da  Defensoria Pública  do  Estado  do  Rio  de Janeiro no atendimento jurídico, amplo e gratuito, aos assentamentos precários, incluindo as habitações  subnormais, e  loteamentos  irregulares  ou clandestinos  existentes  no  Estado  do Rio de Janeiro, organizando o trabalho do Núcleo de Terras e Habitação na defesa jurídica da  posse  de  seus  assistidos,  em  casos  de  despejos  coletivos,  reintegração  ou  qualquer outro  tipo de  conflito  que  envolva  a  posse  e  a  moradia  de  pessoas  abrangidas  por  seu âmbito de atuação.

Nesse  âmbito,  intensificou-se  o  trabalho  de  monitoramento  e  mediação  dos  conflitos possessórios, com ênfase no cumprimento das diretrizes nacionais e internacionais relativas aos chamados “despejos forçados”, sendo realizado quando, sob qualquer fundamento (ordem  judicial,  exercício  do  poder  de  polícia,  violência  direta  de proprietários,  ação  de grupos  armados  etc.),  o  direito  à  segurança  da  posse  de  uma  coletividade  e  os direitos humanos correlatos (vida, saúde, integridade física) podem ser atingidos.

A atuação em comento se fundamenta nos marcos constitucionais e legais existentes, em  especial  no  reconhecimento da  eficácia  positiva  e  negativa  do  direito  à  moradia (art.6o, CF),  da  função  social  da  propriedade  e  da  posse (art. 5o,  inciso  XXII),  dos  princípios  e objetivos constitucionais da política urbana (art.182, CF) e dos princípios, objetivos, direitos e instrumentos jurídicos do Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001) e do Código Civil.

Podemos sistematizar, assim, as seguintes premissas:

a) o caráter justiciável do direito à moradia (oponível ao Estado e Município) em sua dimensão fundamental, em especial no que tange aos “sem teto”;

b) o reconhecimento normativo da teoria social da posse e a relativização do caráter absoluto da propriedade;

c) o princípio do desenvolvimento pleno da função  social  da  cidade;

d)  o  primado  da  regularização  fundiária  e  da  proteção  integral  à posse.

Note-se que  tais  conflitos  tiveram  um  aumento  considerável  a  partir  do  ano  de  2010, tendo  em  vista  o  início das  intervenções  urbanísticas  decorrentes  direta  ou  indiretamente dos megaeventos esportivos que estão previstos para ocorrer nan cidade do Rio de Janeiro nos  próximos  anos:  Copa  do  Mundo  (2014)  e Jogos Olímpicos  (2016), que  vem  causando despejos  forçados,  em  total  desprezo  ao  direito  à  moradia  e  a  outros  direitos humanos correlatos  de  centenas  de  famílias,  que  vem  tendo,  outrossim,  seu  direito  à  cidade sonegado, diuturnamente, pelo poder público municipal.

Uma  das  diretrizes  da  Coordenadoria,  explicitada  na  Resolução  acima  mencionada bem  como  no  Plano  de Trabalho  anual  (elaborado  democraticamente  a  partir  de  encontro com  as  comunidades  atendidas  e  movimentos sociais  de  defesa  do  direito  à  moradia)  é  o atendimento na própria comunidade, seja em horário noturno, seja em finais de semana, a fim  de  abranger  o  maior  número  de  pessoas  possível,  prestando  orientação  jurídica e debatendo com os moradores sobre suas demandas e possíveis soluções,  em trabalho de educação em direitos e promoção da cidadania.

A  atuação  também  ocorre  no  sentido  de  se  buscar  a  obtenção  das  informações necessárias á defesa jurídica das comunidades junto aos órgãos da administração pública, mediante  expedição  de  ofícios,  agendamento  de  reuniões, e  também  solicitando intervenções  das  Comissões  de  direitos  humanos  de  diversas  entidades, do  Ministério das Cidades, Ministério Público, ONGs etc.

Quando não é alcançada a solução extrajudicialmente, o Núcleo de Terras e Habitação deve  atuar  na  defesa  jurídica dos  assistidos  utilizando  de  todos  os  meios  admitidos  pelo direito, desde ações possessórias e recursos processuais, até ações de obrigação de fazer e de não fazer, ajuizadas contra o Poder Público, com objetivo de obrigá-lo a apresentar os projetos detalhados das intervenções urbanísticas pretendidas,  de impedir a demolição dos imóveis da comunidade, de postular a retirada de entulhos, de garantir o acesso à moradia, dentre outros, tudo deliberado previamente com a comunidade afetada, muitas vezes sendo necessária a utilização do plantão noturno para se garantir o acesso à justiça das mesmas.

Caso  não  se  consiga  evitar  o  despejo  coletivo,  outra  atuação  indispensável  para garantir a ampla defesa do direito à moradia e a de outros direitos humanos correlatos é o comparecimento  no  local  onde  se  realizará  a  diligência para  tentar  mediar  e  pacificar  o conflito, e também evitar a violação dos direitos humanos dos moradores, buscando diálogo com os responsáveis pelo despejo e denunciando, se for o caso, as violações ocorridas às entidades e organismos responsáveis a fim de apurar os fatos e evitar novas violações.

Nesse  contexto,  uma  estratégia  que  também  foi  utilizada  (pelo  menos  até  abril  de 2011, mês em que os autores deixaram de atuar no referido núcleo especializado) foi a  de elaborar  relatórios  descrevendo  os  procedimentos  de despejo  forçado  quando  o procedimento de desocupação era marcado pela violência e pela violação de uma série de direitos, em especial aqueles relacionados à vida e a integridade física dos assistidos. Além de  apontar  as  eventuais ilegalidades  e  danos  causados  aos  assistidos,  eram  propostas medidas urgentes a serem tomadas e enviamos para diversas instituições e entidades com interesse na matéria.

Cabe  ressaltar que  a  Coordenadoria  participou,  nos  anos  de  2009  e  2010,  do  Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários e Urbanos, no âmbito do  Conselho  Nacional  de  Justiça,  onde foram  levadas  as  experiências  e  as  recomendações para casos de despejos forçados da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

A  partir  do  trabalho  de  Monitoramento  e  Mediação  de  Conflitos  Possessórios, consegue-se promover a cidadania, garantindo à população o acesso à informação sobre o direito à moradia e correlatos, o que permite que as mesmas possam exercer a cidadania de forma mais ampla; ademais, mostra-se extremamente positiva a defesa do direito à moradia e outros direitos humanos correlatos pela atuação preventiva in loco, significando diminuição das  violações a  tais  direitos  com  relação  às  pessoas  envolvidas  em  conflitos  fundiários  e garantindo-lhes o acesso à justiça.

Por fim, podemos citar os seguintes benefícios institucionais:

a)  Criação de um mecanismo institucional para efetivação dos princípios,  diretrizes e  direitos  relativos  à  moradia  adequada  e  à  segurança  da  posse,  em  especial para cumprimento das resoluções da Comissão das Nações Unidas (resoluções 04 e 07) subscritas pelo Brasil;

b)  Pacificação dos conflitos urbanos com atuações não só no Poder Judiciário, mas também in loco, ampliando o leque de ações da Defensoria Pública e criando um mecanismo de fiscalização das ordens judiciais e do exercício do poder de polícia que  interfiram  no  direito  à  moradia  e  à  segurança  da  posse,  intensificados drasticamente com a aproximação dos megaeventos esportivos na cidade do Rio de Janeiro;

c)  Presença  da  Defensoria  Pública  em  audiências públicas,  reuniões  de  discussão acadêmica e no Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários  e  Urbanos,  no  âmbito  do  Conselho  Nacional  de  Justiça, com  o objetivo de fomentar a proteção possessória a pacificação dos conflitos urbanos.

d)  Utilização  dos  instrumentos  de  tutela  coletiva  no  âmbito  administrativo  (os procedimentos  de  instrução)  e  no âmbito  judicial  (nas  ações  civis  públicas), fortalecendo  a  legitimidade  processual  da  Defensoria  Pública  para atuação  nos conflitos dessa natureza.

5. CONCLUSÃO

A Lei Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009 ampliou significativamente suas funções  institucionais  da Defensoria  Pública,  reconhecendo  o  valor  da  instituição  como instrumento  de  efetivação  dos  direitos  humanos  e da  cidadania,  dentre  outros  valores igualmente relevantes.

Evidencia-se, portanto, a nova dimensão que se espera da Defensoria Pública, voltada para a tutela preventiva (a partir da educação em direitos), para a tutela extrajudicial (com a utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos) e também para a tutela coletiva, com  o  objetivo  de  garantir  a  primazia  da  dignidade  da  pessoa  humana,  a redução das desigualdades e a prevalência dos direitos humanos.

Dentro  de  tal  contexto,  inclui-se  necessariamente  defesa  intransigente  do  direito  à moradia  adequada,  que  se insere  no  conceito  de  direito  humano  fundamental,  integrado  a uma  grande  rede  normativa  internacional  e também  no  âmbito  interno.

Tais  parâmetros normativos devem fundamentar todo o trabalho da Defensoria Pública com relação à defesa da moradia  adequada,  não  servindo  apenas  para  a  defesa  judicial,  mas  também  e, primordialmente,  na  educação em direitos  e  na  mediação  de  conflitos  em  face  do  poder público e de particulares.

A fim de exercer a defesa da moradia,  temos uma ampla gama de ferramentas e de possibilidades  de  atuação,  o  que foi  destacado  na  análise  das  novas  atribuições institucionais  trazidas  pela  Lei  Complementar  nº  132/2009,  a começar  pela  orientação jurídica e pela busca de soluções extrajudiciais.

Com  efeito,  principalmente  em  se  tratando  de  conflitos  coletivos,  mostra-se indispensável  que  a  Defensoria Pública  busque  canais  de  diálogo  entre  as  comunidades envolvidas,  o  poder  público  e  outras  instituições  e entidades,  na  busca  de  soluções democráticas  e  participativas  que  garantam  a  proteção  da  dignidade  das famílias envolvidas.

Ainda  em  caráter  eminentemente  preventivo,  revela-se  a  necessidade  de  difundir  o conceito  do  direito  à moradia  adequada  como  direito  humano,  bem  como  disseminar  os aspectos  que  envolvem  tal  direito,  essencial para  o  exercício  da  cidadania  e  de  tantos outros  direitos  também  fundamentais,  pois  sem  uma  moradia adequada  é  muito  difícil  ter acesso à saúde, à educação etc.

A atuação interdisciplinar também em muito se aplica com relação à defesa do direito à moradia, em prol da máxima eficiência da atuação da Defensoria Pública, o que se aplica tanto  em  relação  aos  conflitos  fundiários  como  também no  processo  de  regularização fundiária.

Com  relação  à  defesa  em  processos  judiciais  e  administrativos,  é  imperioso  que  os defensores  públicos preconizem  o  direito  à  moradia  adequada,  questionando  o descumprimento dos parâmetros internacionais de direitos humanos em todas as instâncias e  utilizando-se  de  todos  os  recursos  cabíveis,  até  mesmo  em  razão  da necessidade  de esgotamento das instâncias recursais para permitir denuncias internacionais.

Além  disso,  verifica-se  a  possibilidade  da  Defensoria  Pública  apresentar  denúncia internacional  à  Corte Interamericana  de  Direitos  Humanos,  já  que  o  Brasil  reconheceu  a competência de tal Corte e se submete a tal sistema de proteção de direitos humanos.

Grande é a relevância do exercício da tutela coletiva do direito à moradia, cujo caráter preventivo  também  é marcante,  podendo  evitar  a  lesão  a  direitos  individuais  e  coletivos.

Assim, é urgente que as defensorias públicas de todo o país possam se organizar, de modo a  garantir  a  tutela  coletiva do  direto  à  moradia,  de  preferência  com  a  criação  de  núcleos especializados em regularização fundiária e conflitos fundiários.

Por fim, temos a defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, onde se encaixa perfeita e necessariamente a defesa do direito à moradia, também considerado como direito social, sendo reconhecer a justiciabilidade dos direitos sociais utilizando como parâmetro o mínimo  existencial.  Este  núcleo  intangível  do  direito,  consubstanciador  de condições mínimas de existência digna, define a esfera de fundamentalidade e, por conseguinte, serve de  parâmetro para  a  atuação  judicial  positiva  tendente  a  compelir  o  Administrador  à efetivação dos direitos sociais.

No  último  capítulo,  apresentamos  o  exemplo  prático  da  atuação que  foi  desenvolvida pela  Coordenadoria  de Regularização  Fundiária  e  Segurança  da  Posse  da  Defensoria Pública  do  Estado  do  Rio  de  Janeiro,  com  relação ao  Núcleo  de  Terras  e  Habitação, esperando que o mesmo sirva de modelo e de inspiração para outras Defensorias Públicas de todo o país, especialmente aquelas cujos estados sediarão os jogos da Copa do Mundo de 2014, tornando urgente o atendimento da demanda premente que se anuncia.

O monitoramento e a mediação dos conflitos fundiários coletivos devem ser  realizados pelo Núcleo de Terras e Habitação da DP/RJ de forma sistemática e constante, afinando-se com a postura pró-ativa que se espera da Defensoria Pública, buscando uma aproximação com  os  destinatários  do  serviço  e  com  os  movimentos  sociais,  a  fim  de prestar  um atendimento  eficiente  e flexível  às  necessidades  locais,  além  de  promover  a  prevenção  do conflito e da violação de direitos humanos e a busca se solução extrajudicial ao caso.

Ademais,  a  direta  aproximação  com  os  destinatários  do  serviço  e  com  a  rede  de entidades  da  sociedade  civil  e movimentos  sociais  que  preconizam  o  direito  à  moradia permite  que  a  instituição  possa  desempenhar  de  forma mais  democrática  e  eficiente  seu papel de transformação social, trabalhando pela diminuição das desigualdades sociais que pesam sobre os mais vulneráveis da nossa sociedade.

*  Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

** Advogado, Ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

NOTAS

1.  O  Comentário  enfatiza  a  importância  do  devido  processo  legal  em casos  de  despejo legal,  principalmente  pelo  número  de  direitos fundamentais  envolvidos.  O  Comitê expressamente afirma que considera que o procedimento adequado aos litígios relativos à moradia envolve: a) uma oportunidade de consulta para ouvir todos os envolvidos; b) prévia  e adequada  intimação para  todas  as  pessoas,  informando  a  data agendada para o despejo; c) informação  sobre  o  despejo  proposto e, quando cabível, sobre a futura  utilização  da  terra;  d)  especialmente  onde há  grupos  de  pessoas  envolvidas,  a presença de autoridades governamentais ou de seus representantes para presenciar o desalijo; e) a identificação de todos que executarão o despejo; f) os despejos não poderão  ocorrer  à  noite,  ou  com  o  tempo  desfavorável,  a  não  ser que  todos concordem; g) previsão auxílio médico para os doentes; h) previsão de auxílio para os necessitados, sob responsabilidade das autoridades judiciárias.

2.  Nesse sentido, vale destacar a “Carta do Rio”, documento final do Seminário “Análise das 100 Regras de Brasília por Instituições do Sistema de Justiça do Brasil, Argentina, Uruguai,  Paraguai  e  Chile:  o  acesso  à  justiça de  pessoas  ou  grupos  em  condição  de vulnerabilidade”, realizado na cidade do Rio de janeiro, nos dias 9, 10 e 11 de dezembro de  2009.  Tal documento  traz  a  seguinte  recomendação,  ou  melhor,  compromisso das instituições  do  sistema  de  justiça  que  participaram  do  referido seminário,  a  partir  da mesa  de  debate  sobre  moradia: “Considerando  a necessidade  de  capacitação  e sensibilização dos operadores no sentido de que tenham um papel proativo nos conflitos de moradia em todas as suas etapas e que também disponham de um protocolo a seguir nos casos de deslocamentos de pessoas de suas moradias, evitando-os e efetivando a reparação moral e material. (…) 4. Nos propomos a provocar os poderes legislativos para incluir as Diretrizes do Comitê das Nações Unidas (Observação Geral nº 7) na legislação interna, de modo a compatibilizar os instrumentos.”

3.  O  autor  destaca  também  que  esses  meios  alternativos  não  precisam ser  organizados pelo  Poder  Judiciário,  podendo  estar  a  cargo  de entidades  públicas  como  Ministério Público,  OAB,  Defensoria  Pública  etc, ou  até  entidades  privadas,  como  associações civis, sindicatos etc.

4.  Note-se que tal afirmação não pretende afastar a possibilidade de atuação da Defensoria Pública  em  prol  de  pessoas  não  hipossuficientes economicamente,  já  que,  além  das atribuições típicas que apresentam tal vinculação,  a instituição também é incumbida de atribuições atípicas,  que não dependem de se avaliar  tal critério, como, por exemplo, a atuação como curador especial, a atuação em estabelecimentos policiais, penitenciários e de  internação  de  adolescentes,  a  defesa  dos  grupos  sociais  vulneráveis Art.  4º,  XVI, XVII, XI da LC 132/2009, o que já era possível antes da referida lei.  Tal atuação atípica não  deixa  de  encontrar  amparo constitucional,  seja  em  razão  da  largueza  que  pode assumir  a  expressão “necessitados”,  seja  em  homenagem  a  outros  princípios constitucionais, como  o do  acesso  à justiça,  o  da  dignidade  da  pessoa humana  e  o da ampla defesa, dentre outros.  Vale destacar que tal classificação entre categorias típicas e  atípicas  foi  originalmente  idealizada  por  HUMBERTO PEÑA  DE  MORAES  e  JOSÉ FONTENELLE  TEIXEIRA  DA  SILVA,  que acabou  sendo  adotada  por  outros  autores  ( Assistência  Judiciária:  sua gênese  sua  história  e  a  função  protetiva  do  Estado,  2ª  ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Líber Júris, 1984, p. 156)

5.  A  Coordenadoria  foi  criada  através  da  Resolução  DPGE  no  453  pelo  então  Defensor Público  Geral  do  Estado  Dr.  .  José  Raimundo  Batista  Moreira,  tendo  sido  a  Dra.  Maria Lúcia de Pontes a primeira coordenadora nomeada.

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