Côrtes: Ativistas negros gaúchos propuseram o 20 de Novembro

Foto: ANA PAULA APRATO/JC. O advogado Antônio Carlos Côrtes é reconhecido como liderança do movimento negro no RS.

Guilherme Kolling e Cláudio Isaías

O advogado Antônio Carlos Côrtes é reconhecido como liderança do movimento negro no Rio Grande do Sul. Foi um dos fundadores do Grupo Palmares, em 1971, que propôs a instituição do 20 de Novembro – data da morte de Zumbi dos Palmares em 1695 – como Dia da Consciência Negra. Até então, comemorava-se o 13 de Maio de 1888, Abolição da Escravatura. “A heroína era a Princesa Isabel. Mas a Lei Áurea era vazia. Excluíram a mão de obra do escravo e o abandonaram a sua própria sorte.”
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Côrtes ressalta a importância de se reconhecer referências positivas do negro e aponta que iniciativas como a criação de cotas raciais nas universidades ainda estão engatinhando. “Faltam políticas públicas para a democracia racial no País.” 

Jornal do Comércio – Quando começou sua militância?
Antônio Carlos Côrtes –
Fundamos o Grupo Palmares, em 1971: Vilmar Nunes, que era um servidor público e estudante de Administração; Ilmo Silva, estudante de Economia; o professor Oliveira da Silveira; e eu, que era estudante de Direito. Quatro jovens…

JC – Um grupo de amigos?
Côrtes –
Começou numa conversa de amigos, a gente se reunia na Rua da Praia para bater papo. E surgiu o Grupo Palmares. Teve mais gente que participou, como Dirnei Alves Ribeiro, petroleiro; Silvio Almeida, que está na Rádio Guaíba; Luiz Paulo Assis dos Santos, inspetor da extinta Caixa Estadual; e o Jorge Antônio dos Santos, que era o mais aguerrido para dizer não ao 13 de Maio.

JC – Como evoluíram as discussões do grupo?
Côrtes –
Eu era rato de biblioteca. Um dia estava na Biblioteca Pública do Estado e descobri o livro do Edson Carneiro chamado Quilombo dos Palmares, fazia uma alusão a Zumbi. Oliveira da Silveira sistematizou mais estudos a respeito… O nome dele era Francisco dos Santos, chamado de Zumbi, e junto com Ganga Zumba formou o Quilombo dos Palmares. Reunimos esse material, mas não conseguíamos obter a data de nascimento de Zumbi. Aí, descobrimos que a morte foi em 20 de novembro. Então, passamos a utilizar o 20 de Novembro como referência.

JC – Houve conversas informais e depois pesquisas…
Côrtes –
Fizemos um estudo e, a partir dali, vimos que precisávamos reescrever a história do Brasil. Amadurecemos essa ideia em conversas. A primeira reunião foi na rua Tomaz Flores, onde morava o professor José Maria, sogro do Oliveira da Silveira. A segunda reunião foi na casa dos meus pais, na Rua dos Andradas, 849. Isso foi em maio de 1971. Até ali, fazíamos as reuniões na Rua da Praia.

JC – E a crítica ao 13 de Maio? Havia mesmo comemorações?
Côrtes –
Sim. As escolas faziam festejos no 13 de Maio e as crianças negras sofriam chacota: “Vocês foram escravos, vocês isso, aquilo.” E havia escolas que organizavam um teatro em que as crianças negras faziam papel de escravos, com louros à Princesa Isabel.

JC – Não havia o herói negro?
Côrtes –
Não. A heroína era a Princesa Isabel. Eu, estudante de Direito, comecei a bater na tecla: a Lei Áurea era vazia, compunha-se apenas de dois artigos: 1º) revoga-se a escravidão no Brasil; 2º) revoga-se as disposições em contrário. Não tinha sequer justificativa. Excluíram a mão de obra do escravo e o abandonaram a sua própria sorte.

JC – O Grupo Palmares pensou a questão do orgulho negro.
Côrtes –
O Grupo Palmares buscou heróis negros como José do Patrocínio e Luiz Gama. Fazíamos pesquisas. E saiu uma matéria no Jornal do Brasil sobre isso. Fizeram até uma ligação da gente com o grupo VAR-Palmares. Fomos chamados a depor na Polícia Federal para informar o que a gente estava fazendo. Nos ouviram e viram que éramos uns guris inocentes. O grupo nem existia formalmente, até pelos problemas políticos da época. Mas, no fundo, éramos subversivos sim, porque queríamos reescrever a história do Brasil.

JC – E a repercussão?
Côrtes –
Começaram a pipocar manifestações em todo o Brasil dando apoio a essa ideia do Grupo Palmares. A comunicação era mais difícil, mas foi um grande feito, tanto que hoje o Dia da Consciência Negra (20 de Novembro) é reconhecido em todo o Brasil… Fazíamos reuniões no Clube Náutico Marcílio Dias, na Praia de Belas, era uma das sociedades negras de Porto Alegre. Numa das reuniões apareceu o historiador Décio Freitas. Ele se incorporou com algumas colaborações ao grupo. Depois fez publicações sobre Zumbi…

JC – As reuniões eram para discutir história e cultura?
Côrtes –
A gente chamava de “rodas de conversas.” Pegávamos poemas que diziam respeito à comunidade negra e recitávamos. Na verdade, toda e qualquer obra que se referisse ao negro. Fizemos reuniões também no Floresta Aurora. Eram 10 a 12 pessoas. Nas reuniões maiores, chegava a 50, 60 pessoas. Depois nasceu o MNU (Movimento Negro Unificado), que sistematizou o 20 de Novembro com base no que a gente tinha pesquisado, botou no papel, com Abdias Nascimento e outros. E a data 20 de Novembro foi implantada.

JC – Virou lei.
Côrtes –
Independentemente disso, começaram manifestações no 20 de Novembro. E o 13 de Maio não teve mais sequer o registro da imprensa. Para reconhecer o negro, passou-se a comemorar o 20 de Novembro, uma data escolhida por nós, não foi uma data imposta. O Grupo Palmares existiu até o final da década de 1970, porque o que a gente queria estava realizado. A causa foi assumida, surgiu o MNU…

JC – O Dia da Consciência Negra é feriado em várias cidades do País. E aqui no Estado?
Côrtes
– É uma data para discutir sobre o negro no Brasil. Mas no Rio Grande do Sul, somos 15% da população – mesmo percentual dos Estados Unidos. Só que eles fazem tanto barulho que dá impressão que são mais, conseguiram colocar um presidente da República (Ba-rack Obama). Aqui, não temos proporcionalidade na representação. Nunca se criticou tanto a política de cotas como no Rio Grande do Sul. São contrários a uma política afirmativa, um esboço muito pequeno de compensação por tudo o que foi feito contra o negro. O que se fez depois da abolição da escravatura? Buscaram imigrantes e deram terras a eles. O negro ficou jogado na rua da amargura. Era excelente escravo e passou a ser mau cidadão.

JC – O movimento negro gaúcho é bem atuante.
Côrtes –
Procuramos alternativas de afirmação histórica. Muito antes da lei (de 2004) que obriga o ensino da história do negro no Brasil, eu já tinha buscado na Secretaria Estadual de Educação ações nesse sentido. Mas essa lei não saiu do papel. Tem que preparar os professores para estudar a participação do negro no País, história da África.

JC – Falta reconhecer o negro na Revolução Farroupilha?
Côrtes –
Sem dúvidas. Qual é o herói negro que a Revolução Farroupilha reverencia? Se formos analisar o que está pintado no teto do Palácio Piratini, vamos ver o índio, o alemão, o italiano… Não tem o negro. E o hino rio-grandense diz “Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo.” Mas por ter sido escravo não quer dizer que não se tenha virtude. O hino rio-grandense precisa que algum deputado faça um projeto de lei para alterá-lo.

JC – E o caso de Cerro dos Porongos, em 1844,  final da guerra?
Côrtes –
Historiadores sérios não têm a menor dúvida do massacre. Os lanceiros negros foram desarmados e literalmente assassinados. O professor Moacyr Flores bate forte nessa tecla. Mesmo que os tradicionalistas digam que não.

JC – Movimentos querem homenagear os lanceiros com um monumento em Porongos.
Côrtes –
Precisamos de referenciais! Foi feito um verdadeiro genocídio com o negro brasileiro.

JC – Oliveira da Silveira foi devidamente reconheido?
Côrtes –
É um baluarte da cultura negra. Tem reconhecimento no Rio Grande do Sul e em nível nacional. Pena que muito mais depois de sua morte. Não teve, por exemplo, livro publicado por nenhuma grande editora. Os livros dele foram publicados porque ele se patrocinou com seu salário de professor.

JC – O Rio Grande do Sul teve o primeiro governador negro.
Côrtes –
Alceu Collares (PDT) foi governador do Estado (de 1991 a 1994) pelo seu talento, competência. Hoje temos o senador Paulo Paim (PT). E não podemos esquecer o Carlos Santos, presidente da Assembleia Legislativa que construiu a atual sede. E surgiram todos na política graças à organização sindical. Carlos Santos era do movimento dos metalúrgicos de Rio Grande, Pelotas. Collares, dos Correios e Telégrafos. E o Paim foi sindicalista.

JC – O Brasil vai demorar a escolher um presidente negro?
Côrtes –
Um país machista como o nosso elegeu uma mulher (Dilma Rousseff, PT). Então, está na hora de elegermos um presidente negro. Joaquim Barbosa (ministro do Supremo Tribunal Federal) teria uma boa votação. O próprio senador Paim teria.

JC – O que o senhor acha do setor negro dos partidos?
Côrtes –
Isso tudo prova como o negro é discriminado, mesmo dentro dos partidos políticos. O negro deve estar integrado a todos os setores do partido. E sou contra criar o Partido do Negro.

JC – No Congresso, são 43 deputados federais negros num universo de 513. E de 81 senadores, são dois negros.
Côrtes –
É um retrato de como o negro é visto no País. Na televisão, só se encontra loira de olhos azuis ou os brancos morenos. Com o próprio Machado de Assis, maior escritor brasileiro de todos os tempos, tivemos há pouco tempo um ator branco para representá-lo. Não se encontra negros. Tem as exceções que confirmam a regra.

JC – A União de Negros pela Igualdade está pedindo à presidente mais participação de negros no governo federal.
Côrtes –
Mais importante que a visibilidade são as políticas públicas, por exemplo, com relação à anemia falciforme, a diabetes. A questão das habitações, porque os negros habitam a periferia das grandes cidades. A Restinga de hoje é a Ilhota de ontem. E a Ilhota, onde nasceu Lupicínio Rodrigues, era praticamente 100% de negros. O que fizeram? Tiraram eles dali e jogaram a 30 quilômetros da cidade: na Restinga, que não tinha nada.

JC – Dá para comparar esse processo com o que aconteceu com o sambódromo?
Côrtes –
O que fizeram com o Carnaval de Porto Alegre (deslocado do Centro para o Porto Seco) é mais um exemplo. Aliás, o Carnaval de Porto Alegre é um dos melhores do País, porque fala de histórias próprias, para nossa gente. Mas as políticas em termos de apoio são maiores para CTGs (Centro de Tradições Gaúchas) do que para escolas de samba. Que são os “quilombos” de hoje. Temos em cada escola de samba um quilombo onde praticamos a nossa cultura.

JC – E as cotas para negros nas universidades?
Côrtes –
Quem verifica os locais que oferecem vagas de emprego vê uma maioria negra nas filas. As opções quase inexistem… Eu me formei em Direito na Ufrgs. Lembro que ao ser chamado para pegar o diploma, fui quase aplaudido de pé. Por quê? O povo que ali estava pensou: “Com todas as barreiras que criamos, esse negro conseguiu passar”. Quase um mea culpa. Hoje, se for observar as faculdades, os negros são minoria.  Assim como nos setores representativos da sociedade. E o sujeito pode até entrar pelas cotas, mas não sai por ela. Está comprovado estatisticamente que os negros que entram pelas cotas têm o melhor desempenho na universidade.

JC – O que falta para se atingir uma plena democracia racial?
Côrtes –
Faltam políticas públicas, como as cotas. Antes, se dizia que éramos minoria: “Não vamos construir política para minorias, tem que pensar na maioria”. É bom que apareça que somos maioria (o último Censo apontou 91 milhões de brancos e 97 milhões de negros e pardos). Somos minoria econômica. Mas, com dificuldades, negros já formam uma classe média. Então, falta educação. O negro ainda não atingiu a sua segunda abolição, porque não foi totalmente integrado. Falta cidadania plena, respeito aos direitos, igualdade de condições. A democracia brasileira é capenga, porque ainda não estabeleceu uma política séria de inclusão.

Perfil

Antônio Carlos Côrtes, 62 anos, nasceu em Porto Alegre. Foi bolsista no Colégio das Dores, onde varria as salas de aula para que seu irmão também pudesse estudar sem pagar a mensalidade. Formou-se em Direito pela Ufrgs em 1976. É advogado criminalista. Foi funcionário do Banrisul por 26 anos, secretário-geral da Junta Comercial do Estado, assessor da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, professor na Academia de Polícia, radialista e apresentador de televisão em diversas emissoras. Militante do movimento negro, é cofundador do Grupo de Pesquisas Palmares – nos anos 1970, a entidade lançou a ideia de reconhecer a memória do negro no País no dia 20 de novembro, ressaltando a figura de Zumbi dos Palmares. Foi presidente da Sociedade Floresta Aurora e do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Rio Grande do Sul (Codene). Integrou os conselhos municipal e estadual da Cultura. Em 1993, foi reconhecido com o Troféu Zumbi da Associação Satélite Prontidão e Sociedade Floresta Aurora, e, em 2001, com o Troféu Carlos Santos, da Câmara Municipal de Porto Alegre.

http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=79147

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