Do “perigo” ao exotismo: faces da mesma moeda

Editorial do Observatório de Favelas

Nesta edição, o Notícias & Análises aborda um tema dos mais candentes na atual conjuntura política, onde a favela passa (novamente) ao centro dos debates sobre o destino da cidade. No foco da discussão, a visibilidade midiática dada a determinadas favelas, contribuindo para que estas sejam “alçadas” às categorias de “comunidades da moda”, ou “badaladas” – termos usados para se referir a estes locais, que se tornaram inclusive destinos turísticos concorridos.

Enquanto alguns territórios viram habitués das pautas dos grandes veículos de comunicação, muitos outros espaços, favelados ou não, continuam invisíveis e severamente impactados pela inadequação ou falta de políticas públicas em diversos campos (e não só o da segurança pública).

De outro lado, voltando às chamadas favelas da moda, há que se considerar que o movimento de suposta redescoberta de tais territórios, assim como suas conseqüências, nada têm de inéditos.

Há tempos é atribuída ao Rio de Janeiro a fama de capital cultural do Brasil. Indiscutivelmente, o “título” deve-se, em muito, às inúmeras contribuições da cultura popular, materializadas primeiramente nos territórios onde ela historicamente se produziu. No Rio, os que prestaram atenção a estes espaços, puderam observar – ao vivo ou através de documentos históricos – a derrubada dos cortiços, o surgimento das favelas e a passagem destas últimas ao “primeiro plano” do imaginário social quando se pensa em moradia popular. Moradia e cultura popular.

Neste sentido, cumpre ainda destacar que o título de “capital cultural” do país conferido ao Rio – celebrado tanto aqui quanto no exterior -, deve-se não exclusivamente à cultura popular, mas, sobretudo, aos diálogos travados entre culturas produzidas em diferentes cantos desta cidade (incluindo, é claro, suas favelas: espaços que sempre desempenharam papeis decisivos naquilo que de mais notoriamente rico e original se criou em termos de cultura urbana no país).

Contudo, mesmo quando há reconhecimento da importância das favelas para a produção cultural no Brasil, tal dimensão não é acompanhada pela efetivação de direitos fundamentais de seus moradores. As “dobradinhas”, operadas por sujeitos provenientes de diferentes territórios, no campo da cultura, nunca significaram que os espaços populares tivessem deixado de sofrer com a repressão ou a inabilidade que sempre marcaram as ações estatais destinadas a eles.

Para piorar, os encontros entre estes atores sociais de origens distintas, jamais entraram para a história como trocas efetuadas entre sujeitos com igual prestígio e importância sociais. Em outras palavras, e no que diz respeito às favelas, elas tradicionalmente foram representadas como territórios “outros”, como avessos da cidade: “descobertos”, “desbravados”, em suma, retratados por indivíduos não oriundos delas.

Como já se afirmou, os encontros nos termos descritos acima não são novidade. Desde o início do século passado, por exemplo, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars visitou o Brasil sete vezes. Em uma destas, foi ao morro da Favella – a primeira favela do país – contrariando conselhos de pessoas próximas para que lá não pisasse, pois se tratava de um local perigoso. Segundo sua própria descrição, feita para a audiência de uma rádio francesa, a favela era um lugar onde se estaria “em plena selvageria” e cujos habitantes “não desciam para a cidade quase nunca, salvo para o carnaval”.

Muito antes da expressão “comunidades da moda”, Cendrars já incorporava esta atitude de “desbravador” e narrador da favela, tão presente hoje no gesto de curiosidade que impulsiona a ida ao mundo pretensamente “exótico” destes espaços. Curiosidade de quem talvez busque um “grande outro” que, na verdade, não existe.

Hoje, quase 100 anos após a primeira vinda do poeta estrangeiro ao Brasil, nossa cidade vive um momento bastante particular, no qual algumas favelas, antes interpretadas como locais da violência e do perigo, tornam-se “badaladas”.

O problema disso talvez não seja nem o público e nem a fama que estes territórios passam a atrair. Afinal, o contato entre os diferentes também tem provocado situações interessantíssimas para pensar e produzir novas interpretações sobre fenômenos urbanos. Ir do “perigoso” ao “exótico” é problemático, justamente, porque estes dois lados da mesma moeda são igualmente incapazes de fazer ruir os estereótipos através dos quais as favelas sempre foram representadas.

http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?id_content=1099

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