Verena Glass
Com altas taxas de produtividade, a agricultura familiar responde por mais da metade do volume de alimentos colocados na mesa do brasileiro. No entanto, dificuldades de acesso a crédito e concentração fundiária impedem pleno desenvolvimento do setor
Com uma haste de grama no canto da boca, Francisco da Silva pigarreia, ajeita o boné vermelho desbotado e estufa o peito. Rápida como uma cobra, a mão dá um bote no ar. Maldito carapanã, diz ele em referência a um mosquito da região. O homem abre um sorriso e percorre o matagal a sua frente com um gesto amplo de braço: “Aqui tem de tudo. Arroz, feijão de corda e arranque, milho, batata, batata doce, mandioca, banana, cacau, cupuaçu, laranja, limão, teca, pinhão manso, cedro, cumaru, mogno. Temos o nosso mantimento”.
O matagal no único hectare de roça de Francisco é exemplar de um “ideal” costumeiramente aplicado à conceituação de agricultura familiar sustentável: uma pluricultura consorciada orgânica, capaz de garantir o sustento da família e de produzir um pequeno excedente para comercialização. Outros quatro alqueires do Sitio Novo de Francisco ainda mantém, em grande parte, a exuberante vegetação nativa do interior do Pará.
Maranhense de Grajaú, Francisco e a esposa Rosimara migraram para o estado em 1981. Passaram um tempo em Jacundá. Há oito anos, deixaram para trás a vida de empregados e se embrenharam pela zona rural. Acabaram tendo acesso a um pedaço de terra no assentamento do Tuerê, o maior da América Latina e um dos mais desolados e abandonados projetos do governo, localizado no município de Novo Repartimento. Logo se tornaram agricultores familiares.
PRODUÇÃO E DESEMPENHO
Uma radiografia da agricultura familiar elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2009, a partir do Censo Agropecuário de 2006 e de levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), exibe dados interessantes sobre o setor. Comparado ao chamado agronegócio, ela domina as estatísticas em número de estabelecimentos rurais e em geração de empregos. Do total de cerca de 5 milhões de estabelecimentos existentes no País, 4,3 milhões são de agricultura familiar (84%) e 807 mil (16%) são de agricultura não familiar ou patronal. Os pequenos ocupam 12,3 milhões de pessoas (74%), e os grandes, 4,2 milhões (26%).
De acordo com os pesquisadores Mauro Eduardo Del Grossi e Vicente Marques, respectivamente do MDA e do Instituto Nacional de Colonização Agrária (Incra), a agricultura familiar se consolidou na última década como maior responsável pela garantia da segurança alimentar do país, principalmente em relação a produtos de consumo no mercado interno.
Segundo os pesquisadores, a eficiência produtiva e econômica da agricultura familiar é, nos resultados finais, superior ao do agronegócio. “Não obstante ocuparem apenas 24% da área [agrícola brasileira], os estabelecimentos familiares respondem por 38% do valor bruto da produção e por 34% das receitas no campo. (…) Enquanto a agricultura familiar gera R$ 677/ha, a não familiar gera apenas R$ 358/ha. Também na ocupação da mão de obra, a agricultura familiar é mais intensiva: ocupa mais de 15 pessoas por 100 ha, enquanto que a não familiar ocupa menos de duas pessoas por 100 ha”.
Os autores, que também participaram da publicação O Censo Agropecuário 2006 e a Agricultura Familiar, lançada pelo MDA, apontam que, além das culturas alimentares, a agricultura familiar também vem se destacando na produção de outros bens. O documento afirma que “os estabelecimentos familiares têm importante participação nas receitas totais geradas pela venda de húmus (64%), de produtos não agrícolas como artesanato e tecelagem (57%), de produtos da agroindústria (49%), da prestação de serviços (47%) e do comércio de animais (43%)”.
“VAI MELHORAR”
Voltemos ao interior do Pará. A cerca de cinqüenta quilômetros do sítio de Francisco, acessível por um picadão de terra esburacado, cheio de traiçoeiros sumidouros e mato, se “esconde” a família de Nivaldo Alves de Araújo. Tocantinense nascido na comunidade de Centro dos Borges, Nivaldo abandonou um lote por lá porque “a terra precisava de trato, não tinha recurso e não tava dando mais”.
Na porta de sua casa de madeira crua entrecortada de frestas, Nivaldo recebe os raros visitantes com gentileza e satisfação. Sua emoção é tanta, que as palavras se atropelam e as mãos se atrapalham com cumprimentar, puxar e oferecer banquinho e água.
Dono de 15 hectares de muito mato, pouco pasto e alguma agricultura, Nivaldo é um entusiasta, apesar do completo desolamento em que a família continua mergulhada após cinco anos de trabalho duro no Turuê. “Plantar eu planto. Feijão, arroz, milho, mandioca. Mas vou desistindo porque não tem jeito de vender. Às vezes ponho um tanto de arroz no burro, ando dez quilômetros até a estrada vicinal, tem que esperar passar algum transporte, e, na hora de vender, o dinheiro compra uma lata de óleo”, lamenta. Questionado sobre a renda da propriedade, pensa um pouco e confidencia: “são mais ou menos R$ 200 por ano. Mas vai melhorar. Aqui é bom, é gostoso”. E seu sorriso volta a iluminar a penumbra do barraco.
Entretida com suas panelas na cozinha improvisada, Maria Aparecida é a antítese do marido. Não é bem assim, contesta do seu canto, sobrancelhas franzidas. A casinha não tem água corrente nem luz. Às vezes não tem dinheiro nem para o querosene da lamparina e todos vão deitar com o por do sol. Mas o pior é a solidão. E o medo. “Lá no Tocantins a gente tinha vizinhos, era uma alegria. E tinha um rádio, TV, uma geladeira. Aqui não tem nada. E a escola das meninas fica tão longe, morro de medo, elas andando nesse mato. Já teve estupro aqui no Tuerê, tem gente ruim. Se eu pudesse, eu ia mimbora”,diz, tentando espantar os carapanãs.
BALANÇO DAS RECEITAS
A história de Nivaldo ilustra outra estatística do IBGE, menos otimista: segundo a análise do Censo elaborada pelo MDA, “apenas 3 milhões (69%) dos produtores familiares declararam ter obtido alguma receita no seu estabelecimento durante o ano de 2006; ou seja, quase 1/3 da agricultura familiar declarou não ter obtido receita naquele ano”.
Para o pesquisador e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Bernardo Mançano, a Agricultura Familiar é responsável pela produção de cerca de 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros. De acordo com ele, em algumas regiões o setor também bate o agronegócio na produção de commodities, como café, arroz e milho. O problema é que também neste modelo produtivo ocorre uma concentração dos recursos e dos meios de produção e comercialização, avalia Mançano. “Atualmente, temos uma realidade na qual cerca de 10% dos agricultores familiares se responsabiliza por 80% da produção do setor. 84% recebem apenas 15% dos recursos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), 80% gera renda por vezes insuficiente para a manutenção da família, e 20% não gera renda alguma”.
Nos últimos oito anos, o governo federal buscou criar e fortalecer uma série de mecanismos de apoio à agricultura familiar, a exemplo dos consecutivos aumentos dos recursos do Pronaf, do seguro safra para mitigar perdas com fenômenos climáticos, de instrumentos de preço mínimo e de compra direta. Nessa última categoria, o destaque é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos com isenção de licitação até o limite de R$ 4,5 mil ao ano por agricultor familiar. Além disso, há a nova lei da merenda escolar de 2009, pela qual um mínimo de 30% da merenda dos municípios deve ser comprada diretamente de agricultores familiares, sem licitação, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
As políticas públicas também têm levado mais em consideração as diferenças regionais, afirma o diretor do Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural da Secretária da Agricultura Familiar do MDA, Argileu Martins da Silva. De acordo com ele, a assistência técnica cresceu expressivamente. Nas regiões Norte e Nordeste foram criadas políticas de preço mínimo para produtos regionais, como castanha do Pará e borracha. Há também uma linha do Pronaf específica para o semi-árido, além das ações coordenadas de desenvolvimento integrado através do programa Território da Cidadania. No Nordeste, metade dos 2,4 mil estabelecimentos têm acesso a tais iniciativas.
CARÊNCIAS NO NORTE
Apesar desses esforços, nenhum dos programas federais chegou a Francisco e Nivaldo, no Pará. A região Norte, aliás, é a que, historicamente, menos acessou o Pronaf desde a sua criação, na safra 1995/96, como aponta o informativo Seagri de abril de 2011. Pelas informações do próprio MDA, entre 1995 e 1999, o Norte fez 1% dos contratos do Pronaf, acessando 2% dos recursos disponibilizados pelo programa. No mesmo período, o Nordeste fez 19% dos contratos, acessando 13% dos recursos, e o Sul celebrou 68% dos contratos, com 65% dos recursos. Entre 2007 e 2010, o número de contratos no Norte subiu para 6%, com 9% dos recursos disponíveis. O Nordeste fez 34% dos contratos neste período, acessando 17% dos recursos. E Sul fez 39% do total de contratos, acessando 46% dos recursos.
A QUESTÃO DA TERRA
Paulo Rogério Gonçalves, agrônomo e assessor da ONG Alternativas para a Pequena Agricultura no Tocantins (Apato), é enfático ao afirmar que o problema está no modelo de desenvolvimento do campo brasileiro. O profissional, que trabalha há mais de vinte anos com pequenos agricultores em todo o estado, aponta a concentração fundiária e a falta de reforma agrária no Brasil como nós a serem desatados. Segue-se a esquizofrenia dos chamados projetos de desenvolvimento: “Nos últimos anos, o governo assentou oito mil famílias no Tocantins, sendo que 70% dos projetos voltavam-se para a regularização e recuperação de lotes já existentes”. De acordo com ele, existem cerca de dez mil famílias expulsas da terra pela construção de hidrelétricas no estado, “como Lajeado, Peixe Angical e Estreito”.
Na crítica à estrutura fundiária, Gonçalves é respaldado por pesquisadores como Bernardo Mançano, da Unesp, e Brancolina Ferreira, diretora da Coordenação de Desenvolvimento Rural do Ipea. Voltemos aos números do Censo Agropecuário. Em termos de área, a agricultura familiar ocupa apenas 80,3 milhões de hectares (24%), enquanto o agronegócio domina 249,7 milhões de hectares (76%). Recordemos: dos cerca de 5 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil, 4,3 milhões (84%) são familiares e 807 mil (16%), grandes propriedades. “É difícil para a agricultura familiar gerar renda, se não tem terra”, pondera Mançano.
Para Brancolina Ferreira, a concentração fundiária se reflete no crescente “aperto” das famílias de pequenos agricultores em minifúndios incapazes de prover seu sustento e produzir excedentes para a comercialização e geração de renda. No estudo Reforma Agrária e Concentração Fundiária, coordenado por ela, os pesquisadores do Ipea constatam que estabelecimentos menores de dez hectares constituem cerca de 50% do total, mas abarcam cerca de 2% da área recenseada pelo IBGE em 2006. E mais: de acordo com o Censo, 12% dos estabelecimentos de agricultura familiar possuem menos de 1 ha de área. “Acho tão esquisito o governo alardear novos planos para acabar com a miséria e dizer que não tem metas para a reforma agrária em 2011. O governo diz que o foco das ações no campo este ano será apoiar assentados e acampados. Apoiar os acampados, a meu ver, é fazer a reforma agrária”.
DISPONIBILIDADE DE RECURSOS
Por outro lado, avalia Brancolina, há uma enorme disparidade entre os recursos destinados à agricultura familiar e ao agronegócio. De acordo com dados dos bancos públicos, principais operadores das linhas de crédito agrícola, os grandes empreendimentos receberam R$ 65 bilhões na safra 2008/09, R$ 92,5 bilhões na safra 2009/10 e R$ 100 bilhões na safra 1010/11. Para os pequenos agricultores foram destinados R$ 13 bilhões na safra 2008/09, R$ 15 bilhões na safra 2009/10 e R$ 16 bilhões na safra 2010/11 (o último valor deve ser mantido no plano-safra 2011/12, a ser anunciado em julho próximo).
A supervalorização do agronegócio pelas políticas públicas, explica a pesquisadora, não impacta apenas a estrutura fundiária, mas também os sistemas produtivos e o conjunto dos recursos naturais (com desmatamentos, contaminações por agrotóxicos, comprometimento de lavouras familiares por organismos geneticamente modificados etc).
Em outras palavras, explica João Pedro Stedile, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “a concentração da propriedade da terra, da água, dos bens e da produção é parte da lógica natural de desenvolvimento do capitalismo. Quanto mais mercadores e lucro se gerar na agricultura, maior concentração econômica e social, e então maior exclusão e maior o êxodo rural”. Para o dirigente, “estamos sofrendo esse processo histórico de concentração da terra e da produção. Por isso apenas 1% dos grandes proprietários controla 46% de todas as terras. Por isso apenas 50 empresas agroindustriais, a maioria estrangeiras, controlam praticamente todo comercio de commodities e as exportações. A reforma agrária é incompatível com esse modelo de concentração. Por isso está brecada”.
CADEIAS PRODUTIVAS
Outro problema do setor, apontado por Paulo Rogério Gonçalves, o agrônomo do Tocantins, é a crescente dependência da agricultura familiar da cadeia produtiva do agronegócio. No Rio Grande do Sul, explica Marcelo Leal, coordenador do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), os sistemas de integração, nos quais os pequenos produzem para os grandes empreendimentos agropecuários (fumo para a indústria tabagista, aves e suínos para os frigoríficos, leite para os grandes laticínios, soja para as grandes cooperativas e usinas de agroenergia etc) têm levado a uma repetição do modelo monocultor. De acordo com ele, isso acarreta uso intensivo de insumos, defensivos químicos e sementes transgênicas na agricultura familiar. A necessidade de adaptar-se ao ritmo dominante e a insuficiência de recursos têm gerado um endividamento grande aos pequenos produtores.
Em maio último, as dívidas foram uma das principais pautas da jornada de lutas do MPA. “No Sul, justamente em função desses contratos de integração, os agricultores gastam muito com insumos, maquinários, etc. Já o preço pago aos produtores é risível. No fumo, por exemplo, a coisa é brutal: deveríamos receber R$ 100 por arroba, já que o custo de produção é de R$ 70. Mas as famílias estão recebendo algo em torno de R$ 20. O leite deveria pagar R$ 0,88, mas os pequenos estão recebendo R$ 0,50. O preço mínimo do governo não acompanha a inflação, e de qualquer jeito ele não tem condições de regular os pagamentos porque tudo está nas mãos das empresas”.
Questionado sobre a importância da agricultura familiar e sobre o que seria necessário, em termos de políticas públicas, para garantir e fortalecer o desenvolvimento do setor, o economista e dirigente do MST, João Pedro Stedile, é categórico: “Ela é fundamental; para democratizar o País, redistribuir renda, e combater a pobreza no meio rural. O governo tem que deixar o agronegócio para o mercado, como eles tanto defendem e mudar a política de crédito rural. E claro, é preciso ter uma nova visão de reforma agrária, que garanta acesso à terra a todos que queiram trabalhar na agricultura”.
http://www.asabrasil.org.br/portal/informacoes.asp?cod_clipping=1333