Zulu Araújo, de Brasília (DF)
Confesso que fiquei numa grande dúvida sobre o tema que deveria abordar neste artigo. De um lado um fato histórico, carregado de simbolismo e preconceito – a celebração dos 150 anos da Caixa Econômica Federal; e de outro, um fato simbólico também carregado de história e preconceito – a eleição da Miss Angola como Miss Universo. Na dúvida resolvi abordar os dois temas, pois embora não pareça os dois fatos estão umbilicalmente ligados e expressam a um só tempo o atraso e o avanço na luta contra a discriminação racial, no Brasil e no mundo.
Enquanto a Caixa Econômica Federal reproduzia, ipsis litteris, o lugar comum do racismo brasileiro, que é o exercício permanente de “branqueamento” de tudo aquilo que lhe pareça positivo e virtuoso, a organização do Concurso da Miss Universo dava um passo importante na quebra do paradigma de que para alguém ser belo ou bela tem que ser branco (a), loiro (a) e de olhos azuis, conforme afirmou o ator global Rodrigo Lombardi, recentemente, num programa de televisão. Mas, o que mais me chamou a atenção no episódio da Caixa foi a displicência, ou melhor, a “naturalidade” com que um erro de tamanha gravidade (transformar o escritor Machado de Assis, notoriamente mulato, em branco) passou desapercebido dos seus dirigentes. Afinal, não era uma celebração qualquer, era uma peça que celebrava 150 anos de uma instituição das mais importantes do país, que representa ou tenta representar a cara do Brasil, que afirma em suas peças publicitárias que sua atuação é pautada nos princípios da responsabilidade social e pelo respeito à diversidade.
Então, como explicar um erro tão grosseiro e tão afrontoso quanto este? Onde estava o diretor de marketing que não percebeu? Quem aprova a peça afinal, a agência de publicidade ou a Caixa? Estas são algumas perguntas que precisam ser respondidas, para que possamos entender melhor o que aconteceu. Mas, não posso deixar de pensar que por mais explicações que dêem, a verdade nua e crua é que fatos como estes ocorrem pura e simplesmente por conta desse racismo encardido e dissimulado que vive nas entranhas da nossa sociedade. E, enquanto esse câncer não for definitivamente erradicado em nosso país, continuará causando estragos e constrangimentos como o que a Caixa e os seus dirigentes estão passando no momento.
Mas, apesar da dor que nos invade, quando vemos e vivemos acontecimentos como estes, não podemos negar a importância educativa e reparadora na reação indignada com que vários setores da sociedade brasileira explicitaram sua contrariedade. E aí, vale a pena parabenizar a direção da Caixa pela atitude corajosa de retirar o comercial do ar e pedir desculpas públicas aos brasileiros e informar que fará uma nova publicidade corrigindo o erro grotesco. A ação da SEPPIR, por meio da sua Ouvidoria que instou a retirada do comercial do ar e aos inúmeros cidadãos que protestaram publicamente.
Outro momento primoroso desta polêmica foi o artigo da escritora Ana Maria Gonçalves, publicado pela Revista Fórum. Ela nos presenteia com uma aula de história e cidadania, ao aproveitar o episódio para desmistificar o papel da Caixa, no processo de combate a escravidão e indicar ao menos o caminho de origem deste tipo de comportamento que vige até os dias hoje no Brasil. Vale a pena ler o trecho a seguir escrito por ela: “Então, o que a Caixa Econômica Federal fez, em 1872, ao oficializar a “poupança dos escravos”, foi permitir e reafirmar que o controle do dono sobre o escravo, com a tutela do Estado, fosse exercido inclusive sobre algo que, de comum acordo entre dono e escravo poderia ficar, anteriormente, sob a responsabilidade do escravo”. É de doer, mas é verdade.
Por outro lado, a vitória de uma mulher negra, de origem africana, num concurso de beleza internacional, com padrões claramente europeus, pode não ter muito significado no plano das políticas públicas de promoção da igualdade racial, mas não deixa de ser um sintoma de que um lento processo de mudança cultural, no caminho da diversidade está em curso no mundo. E isto, não deixa de ser alentador. Para o Brasil e particularmente para a minha Bahia, não chegou a ser uma “brastemp”, a escolha feita, até porque esbarramos em nosso dia a dia, tanto no Pelourinho (nos ensaios do Olodum), quanto no Curuzu (nos ensaios do Ilê Aiyê), com mulheres tão belas quanto a nossa miss angolana, mas, volto a repetir, é um sinal dos tempos.
Enfim, dois momentos e dois comportamentos tão distintos mas com resultados tão semelhantes.
Axé!
Toca a zabumba que a terra é nossa!
Zulu Araújo é arquiteto, produtor cultural e militante do movimento negro brasileiro. Foi Diretor e Presidente da Fundação Cultural Palmares (2003/2011).