Roberto Zwetsch é um teólogo apaixonado pelo trabalho pastoral e pela teologia poimênica. Difícil achar os limites entre os dois em seu trabalho, já que está sempre aprofundando o tema. Seja nas celebrações em templos e outros espaços, na sala de aula, em conferências, em eventos acadêmicos ou quando escreve poemas, artigos e livros. Atua como docente de Teologia Prática e Missiologia na Faculdades EST, em São Leopoldo, publicou Missão como com-paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana, em co-edição da Sinodal e do CLAI, sua tese doutoral, já traduzida ao espanhol, e preside a Comunidad de Educación Teológica Ecuménica Latinoamericana y Caribe (CETELA). Após voltar do Fórum Mundial Teologia e Libertação, em Dakar, concedeu a entrevista à ALC.
A entrevista é de Antonio Carlos Ribeiro e publicada pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação – ALC, 28-02-2011. Eis a entrevista.
Qual o significado do Fórum Mundial Teologia e Libertação (FMTL) para as atividades teólogicas (ministerial, assessoria, docência e publicações) nos ambientes eclesial, acadêmico e popular?
Entendo que o significado do FMTL é sempre limitado. Demora até que as discussões feitas num âmbito internacional cheguem aos ambientes em que seus participantes estão cotidianamente envolvidos. Mas o que me parece importante é o fato deste fórum ter sido uma espécie de caixa de ressonância dos desafios que emergem da vida cotidiana, das lutas de mulheres e homens por sua dignidade, por seus desejos mais caros, enfim, por sua libertação de tudo o que oprime, desqualifica e destrói. Um dos argumentos que mais apareceu nos debates durante o seminário dos dois últimos dias do FMTL foi de que uma teologia verdadeira deve partir não dos dogmas ou das Escrituras como texto sagrado, mas da vida mesma, ali onde as pessoas sofrem, lutam, crêem, clamam, sonham e forjam suas utopias de um mundo novo possível, onde se possa experimentar o que os aymarada Bolívia chamam de bem viver. Chamou a nossa atenção a dificuldade que sentimos para incluir no nosso debate a teologia muçulmana, pois mesmo convidados, não tivemos a possibilidade de ouvir representantes dessa religião tão importante no mundo atual, sobretudo no norte da África e Oriente Médio.
Que regiões do mundo estiveram representadas no FMTL?
A África evidentemente, mas com participação que poderia ter sido maior e mais representativa. Depois, boa participação de representantes da América Latina, Europa, América do Norte, Ásia e Austrália. Para viabilizar tal participação foi muito importante o apoio das agências ecumênicas de cooperação internacional, que enviaram alguns representantes, mulheres e homens, além das organizações conhecidas como ASETT, Ameríndia, CETELA, Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE), Instituto de Teologia e Política de Münster, Programa de Povos Indígenas do Conselho Mundial de Igrejas, Federação Luterana Mundial, Rede de Cristãos da Espanha e da Itália, entre outras.
Qual a representatividade ecumênica das delegações enviadas por igrejas ou instâncias eclesiais?
O FMTL não é um fórum de igrejas e organizações ecumênicas, antes se compõe de pessoas, associações e organizações acadêmicas e de pastoral popular, contando com o decidido apoio de agências internacionais de cooperação, sobretudo da Europa. Ele está organizado ecumenicamente com um Conselho Permanente formado por representantes de oito instituições que deram seu apoio desde o primeiro Fórum, e mais um Comitê Internacional Consultivo integrado por representantes de instituições ou organizações que dão sua adesão ao redor do mundo. O FMTL conta com uma secretaria permanente que funciona na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, e pode ser acessado pelo sítio na internet .
Como foi a participação de grupos nos debates e que ênfases mais lhe despertaram a atenção?
Após a abertura oficial, no dia 5 de fevereiro, tivemos um painel sobre a África e os desafios da teologia hoje. No domingo, fizemos uma visita à bela ilha de Gorée, com uma população de 1,5 mil pessoas, que basicamente vivem do turismo e do artesanato. Na ilha conhecemos uma das tantas Casas de Escravos, de onde partiram – para uma viagem sem volta – milhões de seres humanos capturados em suas aldeias no interior da África e que eram traficados como mercadoria para servirem de escravos nas fazendas das Américas e do Caribe. Foi uma das experiências mais candentes ver onde essas pessoas – homens, mulheres e crianças – ficavam à espera do próximo navio negreiro que as conduziriam ao inferno da escravidão. E isto durou mais de 300 anos, com a complacência de todas as igrejas cristãs! Naquela mesma casa estiveram o papa João Paulo II, os ex-presidentes Lula e Nelson Mandela, e outros importantes líderes mundiais, assumindo compromissos na luta contra o racismo e todas as formas de escravidão.
Nos dois dias seguintes, o FMTL reuniu-se como organismo para organizar 11 oficinas sobre temas atuais que desafiam as comunidades eclesiais e as academias teológicas: Sabedoria dos povos indígenas; Religiões e paz; Islamismo e cristianismo; Feminismo, gênero e libertação; Religiões, migração e libertação; Cura e saúde na África; Crise do capitalismo e direitos sociais globais; Teologia e ecologia; Teologia, negritude e libertação; Crise civilizatória e experiência religiosa; Comunidades Eclesiais de Base e Teologia da Libertação.
Nos dois últimos dias realizamos um Seminário a partir de grupos de discussão formados em torno das quatro línguas oficiais faladas no evento: espanhol, português, inglês e francês. Os grupos foram instigados a debater como os desafios das mudanças globais contemporâneas afetam as comunidades e as religiões e que respostas a teologia pode proporcionar, desde o ponto de vista das vítimas do sistema global, dos mais pobres e vulneráveis. Houve um grande entrosamento e muita participação nos oito grupos formados, por vezes um tenso debate com posições divergentes, o que se confirmou no grande plenário do último dia, que propôs não apenas a continuidade do processo do FMTL, como também o fortalecimento das redes de comunicação e articulação que emergem em todos os continentes, e que articulam ações de transformação de mentalidade e da própria realidade local e nacional, a partir do nível comunitário eclesial e para além dele.
Você identificou elementos novos no diálogo teológico com setores discriminados: os pobres, as mulheres, as populações negras e indígenas, e os grupos marginalizados dos centros urbanos?
Sim, como o desafio africano de uma solidariedade que parte do cotidiano, do encontro em torno de uma mesa comum, que serve não apenas para as pessoas se alimentarem, mas também para compartilharem recursos, desejos, sonhos e visões. O desafio inter-religioso, do encontro de diferentes que conversam e celebram juntos a partir de distintas experiências espirituais foi outro aspecto que chamou a atenção, tanto por sua urgência – estamos apenas no começo de um longo processo – como pelo despreparo que ainda manifestamos nesse campo. Por fim, a necessária crítica ao capitalismo mundial dominado pelo setor financeiro dos bancos e que, na hora da falência, apela aos Estados e cobra a dívida dos povos e, dentre eles, dos mais pobres, como a elevação especulativa dos preços dos alimentos vem demonstrando, sobretudo na África e no Oriente Médio, fato que tem sido apontado como um dos motivos das recentes revoltas populares no mundo árabe.
Que papel os meios eletrônicos assumem hoje para o mundo teológico da periferia (comunicação – rádio, jornal, sítio web, revistas teológicas digitais, comunidades nas redes sociais), além das já conhecidas pastorais, educação teológica e assessorias?
No campo da teologia ainda é tímida a utilização dos meios eletrônicos de modo mais consistente. É um dos desafios urgentes para o futuro imediato, tanto nos seminários e faculdades de teologia como nas comunidades eclesiais. E nesse sentido, o campo da comunicação continuará a ser uma necessidade prioritária, se pensamos no complexo mundo da informação que está despontando neste novo século.
Em que regiões do mundo o FMTL conseguiu fazer avanços efetivos nos últimos anos?
De certa forma, entre as articulações que se expressam no FMTL despontam as da América Latina, Europa e América do Norte, especialmente Canadá. Uma das expectativas para o futuro é integrar mais grupos da África e da Ásia e Oceania.
Como tem se mostrado a teologia do diálogo inter-religioso para as lideranças pastorais e leigas presentes ao evento?
Urgente e difícil, ao mesmo tempo. No FMTL se procura não trabalhar em abstrato, mas a partir de situações concretas de vida. E aí a complexidade das situações cobra seu preço, como ao deixar claro que não há respostas prontas para as relações inter-religiosas e que cada situação merece estudo, abertura de mentes e corações, e uma profunda experiência de compaixão e cuidado para com o diferente.
O que mais lhe tocou na experiência deste FMTL de 2011?
Foi o contato com as mulheres, crianças e homens do Senegal. Senti na pele a dificuldade da comunicação por não falar francês nem uma das línguas nativas como o wolouf. Mesmo assim, foi possível certo entendimento a partir do inglês ou, em certos casos, falando português e espanhol com pessoas que vivem na África de colonização portuguesa. A visita à ilha de Gorée foi impactante. É indescritível imaginar como era possível viver e sobreviver nos porões das Casas de Escravos para depois enfrentar a longa travessia sem volta e que levaria aquela pobre gente ao inferno da escravidão, mantida por mais de 300 anos.
Os africanos têm razão ao reclamar que também se deve dar mais atenção ao holocausto negro do tráfico negreiro, pois, segundo estimativas, 40% das pessoas morriam na travessia e eram simplesmente descartadas, jogadas ao mar. Havia nesses lugares um cubículo especial para homens com menos de 60 kg e que servia para que engordassem de tal modo que tivessem forças para suportar a viagem e chegarem vivos no outro lado do Atlântico. Estas pessoas foram tratadas simplesmente como mercadorias, força de trabalho, e jamais tidas como seres humanos, com dignidade e direitos. Esta dívida ainda pesará por muitos anos sobre a sociedade ocidental e, principalmente, sobre as igrejas cristãs. E, ainda que louváveis, não serão pedidos oficiais de perdão aos africanos que reduzirão a necessidade de novas relações de justiça, direito e cidadania para o povo negro em todos os lugares para onde ele foi levado.
E como fica a teologia latino-americana diante deste espectro mundial, em sua percepção?
A teologia latino-americana e, em particular, a teologia da libertação vivem um momento crucial de reconstrução. Durante o FMTL discutiu-se a necessidade de retomar o projeto histórico da teologia da libertação, só que neste momento a partir de novos desafios propostos pelos movimentos de mulheres, indígenas, negros, jovens e camponeses em muitos lugares. Teologia feita desde o chão da vida e auscultando as dores, os clamores e as esperanças que vêm dos lugares mais inauditos, lugares teológicos em que o Deus de Jesus se manifesta e se oculta, ao mesmo tempo, e a partir dos quais é preciso forjar um mundo novo possível na esperança da fé que luta, canta, celebra, mas jamais se entrega aos poderosos, aos muitos impérios que continuam a dominar os povos e impedem a construção de uma nova história, democrática e em direção a um mundo mais fraterno e justo.
Talvez se devesse enfatizar, novamente, que a teologia da libertação não morreu, pois enquanto houver pobres haverá a necessidade de sua libertação e, portanto, de uma teologia que lhes diga respeito e ajude em sua caminhada. O que não significa, contudo, simplesmente preservar um legado, mas, pelo contrário e em boa tradição dialética, a retomada crítica de sua permanente necessidade de superação diante da realidade em constante transformação. Teologia para outro mundo possível, como foi o título do livro do primeiro Fórum, realizado em Porto Alegre em 2005.
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