Como será a Prainha do Canto Verde em 2070? Reflexões sobre uma aula de campo

Prainha do Canto Verde - novembro de 2009. Foto: TP.

A Resex da Prainha do Canto Verde, Ceará, está sendo alvo da ganância de um especulador imobiliário cearense, que vem usando de todos os artifícios para se apossar de metade de suas terras. Desde que tal ameaça foi constatada, este Blog se orgulha de integrar a lista de seus defensores e dos pescadores artesanais que nela vivem. O texto abaixo é de uma companheira nesta luta. TP.

Raquel Maria Rigotto*

A aula de campo na Prainha do Canto Verde desta vez foi bem diferente.

Todo ano os alunos do Mestrado em Saúde Pública da UFC vão a este canto de Beberibe ao final da disciplina Produção, Ambiente e Saúde. Depois de ver tantos conflitos socioambientais gerados a partir de novos processos produtivos ou obras de infra-estrutura que vêm trazer o chamado “desenvolvimento” ao Ceará, depois de aprender a examinar seus impactos ambientais e prováveis repercussões sobre a saúde humana, os mestrandos merecem ver uma comunidade–exemplo vivo de que “um outro mundo é possível”. Mas, desta vez, não foi tão simples assim.

Éramos 28 pessoas, e começamos a conhecer o território pelo estaleiro-escola, onde jovens que fizeram o curso de marceneiro constroem catamarãs para amenizar o trabalho do pescador, sem trocar o vento pelo petróleo, e ainda oferecendo um passeio ao turista. Fazem também móveis para os moradores, diversificando o projeto de desenvolvimento local entre agricultura de vazante, turismo comunitário e social, pesca artesanal, marcenaria e artesanato. Depois a escola, construída no protagonismo da comunidade, o telecentro, o refeitório comunitário e as instalações para a arte-educação. Daí para a praia, só beleza e paz; a bodega, vendendo trabalhos de várias comunidades do nordeste e distribuindo solidariedade.

No dia seguinte é que os alunos souberam que foi um grupo de mulheres quem puxou a luta pela terra, há cerca de 30 anos. Em junho de 2009, seus filhos e filhas é que prepararam a festa para comemorar a vitória: terra e mar, reserva extrativista! Aquela certeza boa de que, nos mais de 560 km do litoral cearense, ficaram garantidos cerca de 600 hectares para a gente mostrar aos netos as raízes do povo e a cultura do litoral do estado, sem hotéis enormes ou condomínios para deturpar o modo de vida tradicional. Contaram o segredo de acabar com a mortalidade infantil: conversar com cada mãe e caminhar com ela para o aleitamento no peito. E mais a Rede Tucum de turismo comunitário, a escola dos povos do mar, o livro escolar com a história deles mesmos, os seminários de planejamento e os cursos de liderança, a juventude no projeto Geramundo, e tanta coisa mais.

Mas havia uma inusitada e incomum tensão no ar ali. “Vamos agora falar sobre o conflito”, disse o Presidente do Conselho Deliberativo da Resex – um pescador que tem muito a nos ensinar. E ele descreve com fluidez um emaranhado jurídico criado para subtrair 315 hectares da área da comunidade. Criado por quem?Por um empresário do ensino privado fundamental e médio no Ceará. Sua família fica com a metade das terras, as outras 300 famílias com a outra metade. Das terras que protegeram da especulação e da degradação por décadas.

Além da terra, ele está subtraindo da comunidade a paz. Como o vírus do sarampo que os colonizadores e bandeirantes disseminavam e dizimavam nossos ancestrais indígenas, este empresário hoje semeia o dissenso e cultiva a discórdia entre os moradores, no seio mesmo das famílias (de acordo com a Carta de Otawa, a paz é um pré-requisito para a saúde). Produz e circula informações enganosas, promete e fascina (poucos, felizmente!) com posto de saúde – direito do cidadão e dever do Estado, desde a Constituição Federal de 1988, exatamente para ninguém ter que trocar necessidade por dignidade; e outras lantejoulas.

Em sua patológica ânsia de expansão, não poderia o sistema do capital, de que nos fala Milton Santos, respeitar sequer uma área tão pequenina de nosso extenso litoral, deixando-a livre de eólicas, grandes hotéis, prostitutas e desigualdades?

Ou será que é exatamente por isso que Prainha do Canto Verde incomoda a estes senhores? Não é provocante demais, na perspectiva deles, uma comunidade tradicional de pescadores que afirma e demonstra a possibilidade e o direito de viver (bem!) de forma diferente?

Os alunos tiveram a oportunidade de refletir sobre este modelo de desenvolvimento, e de se perguntar: será que este problema é só da Prainha? O que cada um de nós tem a ver com isto? Em que podemos contribuir para que uma experiência tão inovadora e educativa seja preservada? Que lições trazemos de lá para promover saúde nas comunidades em que atuamos? É o que vamos discutir com os mestrandos na próxima aula.

Saímos de lá indignados com a ganância e a perversidade, mas consolados pela forte impressão de que a organização comunitária tem lastro para superar mais este desafio, e certamente vai sair dele mais fortalecida. O sentimento é de gratidão com a Comunidade Prainha do Canto Verde, por ser esta Escola que há tantos anos nos recebe, com tão belas aulas! Que a turma do Mestrado em Saúde Pública da UFC em 2011 (e 2012, 2020, 2070, 2112…) possa também viver este privilégio!

* Médica, Professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Núcleo Tramas/UFC.

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