Ele critica os projetos de irrigação que beneficiam a agroindústria e diz que a alternativa seria a agricultura familiar e a democratização da água acumulada em cerca de 70 mil açudes do Nordeste setentrional.
Dom Luís Flávio Cappio participa das comemorações dos cinco anos da declaração ecumênica em defesa da água como direito humano e bem público, assinada em 2005 pelas conferências nacionais dos bispos do Brasil e da Suíça e pela Federação das Igrejas Protestantes Suíças.
Swissinfo.ch conversou com ele em Berna, onde participou nesta quinta-feira de um debate sobre a transposição do Velho Chico. A seguir, as principais afirmações que ele fez na entrevista, cuja íntegra pode ser ouvida nos áudios na coluna à direita.
swissinfo.ch: Por que o senhor é contra a transposição do Rio São Francisco?
Dom Luís Cappio: Em primeiro lugar, essa obra é inconstitucional. Pela Constituição de 1988, todos os recursos aplicados em projetos hídricos devem priorizar o abastecimento das comunidades. E o projeto não faz isso.
Água não nos falta. O que nós precisamos é de parceria do governo federal com as prefeituras para que a água acumulada nos açudes seja distribuída nas muitas comunidades do Nordeste.
E o projeto de transposição, em vez de democratizar a água, visa a segurança hídrica desta água do Rio São Francisco nos açudes e perenizar os rios para os projetos agroindustriais. Por isso, nós somos contrários ao projeto.
swissinfo.ch: Qual seria a alternativa?
D.L.C.: A grande alternativa o próprio governo já possui. A Agência Nacional de Águas (ANA) tem como prioridade, através do Atlas do Nordeste, democratizar a água acumulada nos 70 mil açudes do Nordeste setentrional, levá-la às comunidades. Este é o projeto alternativo que nós assinamos embaixo, mas infelizmente o governo brasileiro, graças ao lobby das grandes empresas transacionais e das empreiteiras construtoras da obra, optou pelo projeto de transposição.
swissinfo.ch: O governo argumenta que as obras da transposição vão gerar 5 mil empregos e que o projeto vai beneficiar 12 milhões de pessoas no semiárido. A alternativa apresentada pela ANA teria o mesmo efeito?
D.L.C.: Aí nós devemos saber qual é a prioridade dos investimentos públicos. A prioridade é o abastecimento hídrico das comunidades. Esta região é muito seca, o povo precisa de água para beber, para seu uso, para a produção familiar dos alimentos. Essa é a prioridade para os recursos aplicados em projetos hídricos e não o projeto de transposição que visa a aplicação na agroindústria.
swissinfo.ch: Faria sentido combinar os dois projetos?
Desde que se priorizasse o abastecimento hídrico das comunidades… E para isso o projeto alternativo é suficiente.
swissinfo.ch: Como o senhor avalia os projetos de irrigação?
D.L.C.: Eu os avalio a partir do que está acontecendo no eixo Juazeiro e Petrolina, na região do Rio São Francisco, que é especializado em irrigação para a produção principalmente de frutas para a exportação e uvas para a indústria do vinho.
As técnicas usadas são das mais avançadas do mundo. E o produto econômico é também muito interessante. Mas sob o ponto de vista social e ecológico, as conclusões são bem diferentes. As grandes produções de frutas para a exportação utilizam uma mão de obra sazonal semiescrava, a maioria desses trabalhadores sem nenhum direito social, não protegidos pelas leis trabalhistas.
E a água vem do rio e depois volta totalmente envenenada pela quantidade imensa de agrotóxicos utilizados na produção dessas frutas. Nesse sentido, eu posso prever o que será a agroindústria depois das águas do projeto de transposição. Com certeza, a lógica será a mesma.
swissinfo.ch: Quais seriam as alternativas social e ecologicamente sustentáveis para criar empregos e manter a população na região?
D.L.C.: É a agricultura familiar que coloca a mesa do povo brasileiro e especialmente do semiárido. Não é da agricultura extensiva para a exportação que o povo se alimenta. Pelos projetos alternativos de abastecimento hídrico se garante o consumo de água, como também o abastecimento hídrico da produção familiar de alimentos que são consumidos. Essa é a grande alternativa e não a aplicação de recursos maciços para a agroindústria de exportação.
swissinfo.ch: O senhor fez duas greves de fome, mas as obras continuam. A batalha está perdida?
D.L.C.: Não, as greves de fome foram um grito lançado diante da postura surdo muda do governo diante do clamor da sociedade civil que é contrária ao projeto de transposição. Nós dizíamos: ‘Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho’. Quem sabe, um grito dessa natureza pudesse despertar para a insanidade que consiste o projeto de transposição.
E esse grito deu conhecimento a nível nacional e internacional deste projeto insano. É por isso que nós estamos aqui: para mostrar para o mundo o absurdo em que consiste este projeto. E o nosso grito através dos jejuns também teve o mérito de fortalecer os movimentos sociais, que se uniram no sentido de combater esses projetos que vêm contra os interesses da população.
swissinfo.ch: A Justiça brasileira não teria condições de barrar o projeto?
D.L.C.: Existem duas ações no Supremo Tribunal Federal contrárias ao projeto: uma falando da inconstitucionalidade e a outra porque o projeto invade territórios indígenas. E essas duas ações nunca foram julgadas. Os ministros do Supremo Tribunal Federal são escolhidos pelo presidente da República. A Justiça brasileira infelizmente está atrelada ao Executivo. E nós atribuímos a isso o não julgamento dessas duas ações.
swissinfo.ch: O senhor espera mudanças no projeto da transposição e em outros projetos semelhantes depois do governo Lula, principalmente na questão do diálogo com a sociedade civil?
D.L.C.: O grande objetivo dos grandes projetos governamentais, tipo transposição do Rio São Francisco, é um objetivo corrupto, de angariar fundos para as eleições deste ano. Se o projeto vai adiante ou não, não é importante para o governo brasileiro porque o objetivo já foi alcançado: obter fundos para as eleições de 2010.
Geraldo Hoffmann, swissinfo.ch
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Transposição do Chico
A ideia de transpor águas do Rio São Francisco para o sertão vem do tempo do Império, mas só ganhou status de prioridade no governo Lula, sob responsabilidade do Ministério da Integração Nacional. Prevê a construção de 720 km de canais para levar água a bacias hidrográficas no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
Segundo o projeto, 70% da água captada (o total deverá ser de 26 m3/s) será para irrigação, 30% para uso urbano e insdustrial. O custo estimado das obras, que já estão em andamento, é de R$ 5 bilhões. Segundo o governo, elas geram 5 mil empregos diretos. O projeto gerará 180 mil empregos somente na área rural e beneficiará 12 milhões de pessoas no semiárido, diz o governo.
Os críticos do projeto dizem que isso não passa de propaganda e que a intenção do governo é apenas beneficiar a agroindústria através de projetos de irrigação.
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Dom Cappio
Luís Flávio Cappio nasceu em 4 de outubro de 1946, em Guaratinguetá (SP). De origem italiana, estudou no Rio de Janeiro, foi ordenado padre em 1971 e trabalhou na Pastoral Operária em São Paulo. Desde 1971 vive no sertão nordestino. Em 1992, fez uma peregrinação de 6 mil quilômetros da nascente até a foz do Rio São Francisco. Nos anos de 2005 e 2007, tornou-se conhecido internacionalmente devido a duas greves de fome contra o projeto de transposição do Velho Chico. Em 6 de julho de 1997, foi ordenado bispo da diocese de Barra (BA). Em 2008, obteve o 2008 Prêmio da Paz, concedido pela Pax Christi Internacional, com sede em Bruxelas.
Em 2009, recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant, na cidade de Freiburg (Alemanha).
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