Como prometido no post anterior- Os Vissungos de Seu Crispim do Ausente -, aí vai o depoimento completo de Seu Crispim ao Museu da Pessoa. Nele, a África está presente passada por sua mãe, que tinha um nome inesquecível: Prazer dos Reis. Com ela e seus familiares do Baú, ele aprendeu não só o “dialeto”, como os Vissungos e outras tradições. A “cultura”, que ele queria repassar e preservar.
Há, entretanto, um outro enfoque para a questão. Logo depois da publicação do depoimento, Lilian Oliveira, que anunciou a morte de Seu Crispim na matéria anterior, enviou um comentário sobre a entrevista que levou um dos fundadores do Museu da Pessoa, Mauro Malin, a decidir ouvi-la. Diretora do Museu do Diamante, de volta a Minas depois de se formar em História pela USP, Lilian, que foi comadre de Seu Crispim, vê no depoimento, ao mesmo tempo, a beleza e as mazelas que ele sem querer revela.
Como escreveu Mauro Malin, “A historiadora Lilian Oliveira tinha uma preocupação sobre a história do Seu Crispim, a de que sua condição como guardião da memória de um povo e de uma época não fosse por demais romanceada a ponto de encobrir a condição social em que ele vivia e a lógica da exclusão social da qual sua história era, também, uma conseqüência, como ela revelou nesta entrevista”. Malin se refere (e vale ouvir a análise contida nos dois áudios) ao direito às denúncias que Lilian faz sobre a falta de alternativas: “tanto preconceito protegido pela ausência de políticas públicas reais (….); o direito de viver em família e não ver seu filho ser escravo em carvoeiro e mineradoras”…
Abaixo, a entrevista de Seu Crispim. Sugiro que, após lê-la, os dois pequenos depoimentos de Lilian Oliveira, contidos na matéria “Preservação bela e amarga“, sejam devidamente ouvidos. TP.
Entrevista: ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO
P/1 – Senhor Crispim, o senhor poderia dizer seu nome, o local de nascimento e a data, por favor.
R – O nome é Antônio Crispim Veríssimo. Nascido dia 25 de outubro de 1943. Tá bom?
P/1 – E o senhor nasceu?
R – Dia 25 de outubro de 1943
P/1 – Mas o senhor nasceu em Ausente?
R – Nascido em Ausente. Nasci aqui em Ausente.
P/1 – Aqui nesta mesma casa?
R – Não. Não é nesta, não. Eu nasci numa outra casa lá em baixo. Depois nós fizemos uma outra pequena ali. Mas há certos anos nós problemou. É que eu fui. A vida agora também é mais difícil. Eu fui mudando pra qui. E a de lá também era pequena. Quatro cômodos. Eu tava querendo fazer uma de seis cômodos. Mas quanto é que eu vou gastar com essa casa aqui? Nesse poço sem água. Eu passo ela pra baixo. Porque nós buscava água na mina lá adiante. Na cabeça, né? Aí eu vi aqui, a localidade, a água vinha, ela vinha até em riba da casa aqui, ó! E a caixa tá ali. Aí eu vim construir aqui.
P/1 – E os pais do senhor? A mãe e o pai?
R – Já é falecido.
P/1 – Qual eram os nomes deles?
R – O nome de meu pai: Francisco Sérgio Veríssimo.
P/1 – E da sua mãe?
R – Prazer dos Reis.
P/1 – Com o quê eles trabalhavam?
R – Ah, eles trabalhavam de trabalhador rural. Mexiam com lavoura, essas coisas.
P/1 – Como que era essa lavoura? Onde que era?
R – Na lavoura plantando mandioca, plantando cana, milho, feijão. A época que eles viviam fazia isso. Agora, quando tava em época da seca, que não tinha esse serviço de roça, meu pai ia pro garimpo. Entendeu? Aí ele ia pro garimpo. Garimpava, tirava a sucata dele, apurava, tirava o ourozinho, o diamante. Era assim. O ramo dele era esse. O ramo dele era esse. Não tinha outra coisa a fazer, não. Não tinha indústria nenhuma, não. Sabe disso? De nada. Isso é que o povo mais velho e tudo, encontrou essa dificuldade. Que vocês é novo. Não havia salário, não. Viu? Nada de ter um salário, não. O pessoal, quando dava na época, passava a época de roça, o pessoal ia pras fazendas, trabalhar nas fazendas. Nos fazendeiros, trabalhando. Limpando planta. Aquela coisa. “Troperando”. Tinha até pessoa da mata aqui, tocando lote de burro. Transportando as coisas pra Diamantina. “Alembro” quando rasgava saco de feijão. “Alembro” muito disso! Hoje, você sabe quem melhorou o nosso Estado, o Brasil? Getúlio Vargas. Você sabe, Getúlio foi um homem muito bom, gente. Eu era garoto quando ele morreu. Se ele tivesse vivo tava com 105 anos agora. Justamente, ele nasceu em 1902. Getúlio Vargas. Eu tenho aí anotação do nascimento dele. Bom, mas acontece que ele assinou o salário. Ele assinou. Ele deixou ele assinado. Mas não sei o quê ele viu que ele, dizem, que ele se suicidou. Ele morreu ainda novo. Porque se ele tivesse aí tava com 105 anos agora. Ele morreu novo, né? Mas aconteceu aí veio o Juscelino. Juscelino decretou o salário. Entendeu? Mas estava assinado. Aí ele decretou. Aí ele foi fazer barraco de três Marias, aquele mundo de barraco. Meus irmãos estavam lá. Construiu Brasília. Foi feita pelo Juscelino. Foi muito ótimo presidente, viu? E aí vem melhorando. Entrou um também que não trabalhou direito, né? Mas é assim mesmo. Mas ele trabalhou bonito,viu? Juscelino foi um homem muito bom. Presidente bom mesmo. Agora nós tamos gostando muito do Lula. O Lula está sendo um presidente bom também, demais da conta. Bom mesmo! O homem tá trabalhando bem mesmo. O administrativo muito bom. Ele não subiu a inflação. Por que a inflação! Nossa Senhora! A inflação acabava com o povo! Se “ôce” tava devendo uma conta de dez conto – não falava real, não – daí há poucos dias tinha que pagar 20. Entendeu? E o comércio entrava pra pessoa assim: é preço do dia. Preço do dia. “Ôce” punha o dinheiro guardado na caixa, quando poucos dias aquele dinheiro desvalorizava. Não adiantava guardar dinheiro dentro de casa, não. “Ocê” tinha que comprar, comprar. Porque quando fosse amanhã você não comprava aquilo mais! Então, é as coisas que a inflação acaba muito com o pessoal, viu? É. Portanto eu gostei muito de Fernando Henrique, foi um bom presidente também. Foi “bão” porque baixou a inflação. Fernando Henrique. Foi “bão”.
P/1 – Dessa época que o pai do senhor garimpava. Como era esse garimpo? Onde ele garimpava? Que rio? Que pedras ele encontrava?
R – Que rio? Nesse rio que tem aqui, ó. Ele trabalhava aqui. Outra vez outro colega chamava pra ele trabalhar lá pro Baú. Trabalhou na Raiz, um lugar que chama Raiz, aqui. Lado de cá de Diamantina. É. Não é longe, não. Esse aí é perto. Trabalhou, garimpando. Tomava conta do serviço pra Moisés. Garimpava demais, meu pai. Era garimpeiro. Aquilo é assim: o pessoal tirava aquela cata, e passava o minério na fervura. Lá fazia, o fervedor. Fervedor. Aí então o diamante que sai dessa caia na outra. Na hora cê vai lavar, lavar em peneira. Batia, o diamantinho vinha no meio da forma. É, a maneira de garimpar. Nem isso mais, o Vitinho me chamou mais os meninos, para mostrar como que era o garimpo. “Bão”, tem a maneira de garimpar também que chama baco: pega o minério, põe lá na areia, e agora “ocê” pega água do poço também. A batinha de Baco. O lugar tem pouca água e o diamante cai tudo no aterro do baco. Depois “ocê” rapa o Baco, pega o diamante e ouro. É! Eu vejo que o povo hoje não sabe nada disso mais, né? Acabou, né? Sabe, né?
P/1 – Quando o senhor achava um diamante. O quê o senhor sentia?
R – Ficava satisfeito, ué. Porque se você achou o diamante o dinheiro tá no bolso. É uma coisa que nunca perdeu valor: foi o diamante, né? Ouro e diamante nunca perdeu o valor. Quando o dólar baixa ele também baixa. Entendeu? Como agora, agora não tá bom de preço porque o dólar tá baixo. Mas depois o dólar sobe você põe prá vender. Aí o povo só tinha de viver disso. Porque não tinha outro ramo. É.
P/1 – E por que aqui chama Ausente?
R – Ora, essa pergunta é o seguinte: quem me faz essa pergunta aqui. Eu achei um senhor mais velho, mais velho. Falava que foi o homem, ele representou aqui. Entendeu? Ele não é daqui, não. “Entonce”, diz que eles falaram que eles ficou ausente da terra dele, ausentado da terra dele. Antão, esse homem morou aqui. Diz que morou aqui em o tal homem. Antão, é os primeiros habitantes que teve. Ficou o nome de Ausente. Tanto que aqui o nome da fazenda: Fazenda do Ausente. Entendeu? É o nome do terreno todo aqui – é falado, não sei se é verdade – 400 alqueires de terra. É 400 a fazenda, ao total. Antão ficou em nome: Fazenda do Ausente. Aqui toda terra aqui, pra passar um documento é na Fazenda do Ausente. Fazenda do Ausente. Assim que eu achei. A história foi essa. É. Porque aqui não tinha muitos habitantes, não. Essa comunidade aqui é mais nova. Entendeu? A comunidade mais velha, de morar aqui, é a Baú. Entendeu? O Baú é mais velho do que o Ausente. Entendeu? Porque o Baú, a geração anterior do Baú, é que mais formou Ausente. A maioria dos habitantes daqui é de lá do Baú. Veio pra qui. Entendeu? Minha mãe não é daqui, não. Minha mãe não é nascida aqui. Minha mãe é nascida no Baú. Minha mãe. Entendeu? Ela é nascida é lá. Aí, meu pai era viúvo, casou com ela e trouxe ela pra qui. Meu pai também não é daqui. Meu pai é de Milho Verde, nasceu dentro de Milho Verde, foi criado lá. Mas casou com uma moça, aí não sei o quê ele arrumou lá, essa mulher morreu. Depois ele casou com a minha mãe. Ficou morando até mal dele morrer. Aqui. Mas meu pai também não é daqui, não. Dizer que ele é original daqui de dentro de Ausente, não é. Não. E a origem do meu pai vem tudo do Serro. O avô dele é do Serro, o Doutor Veríssimo. É lá do Serro. Ele era advogado, ele não é doutor de saúde, não. É doutor de lei. Tanto que o nome dele, Doutor Veríssimo. E a mãe do meu pai é daqui do Cunha. Ouviu falar no Cunha? “Ocê” já passou por lá? Porque lá é. Ponta do Cunha é. Minha avó é nascida lá. É isso aí. Eu sei a história toda.
P/1 – E qual a história do Baú?
R – O Baú, dizendo o que os velhos falavam. Que foi um dos velhos que plantou. Um plantou a roça, diz que a roça ficou muito bonita, aí um falou com o outro assim: “ih, mas essa roça tá um baú!” Aí ele ficou apoiado com o nome Baú. Diz que é o origem da roça. Assim é falado. E aí tem muitas coisas que o povo titã da cabeça, fala, e aquele nome fica. Né? É isso aí. Agora lá o Baú, é que é isso. O Baú foi formado pelo escravo. O Baú, a habitação do Baú formada pelos escravos. Porque eles vinham da África, e então se sofria muito nas senzalas do sinhô. Aí eles fugiam e barravam lá. Eles fugiam dessas áreas. E ficavam no Baú. Portanto o pessoal todo do Baú, eles é origem da África. Eles é africano. Não é pessoal brasileiro, não. É africano, viu? Ah, tinha um tal Serafim, não conheci, esse daí não cheguei a ver, não. Vi foi o filho dele. O filho dele chamava Firmiano. Mas o Serafim pai não conheci. Ficou em nome de Serafim Cambambe. Ele veio da África. Serafim Camdambe. Então por que é que puseram Serafim Cambambe Porque dizem que ele gostava muito de feijão. Entendeu? Gostava demais de feijão, comia feijão. Aí ele foi apelidado de Serafim Camdambe. O nome dele não é Serafim Cambambe, é Serafim da Costa. Tanto é que a família lá, toda lá, assina por Costa. Agora há pouco chegou um neto dele aqui. O neto dele até é meu compadre, chama Roque. Aí eu fui distribui com ele, como é que é? Tudo direitinho. Fizemos um encontro lá em Belo Horizonte, lá. Aí eu representando o Ausente e Baú. Aí vai dois representantes no encontro. Aí foi fazer pra mim a pergunta aqui do Ausente. Eu expliquei. Aí tá o representante lá do Baú: “oh, Crispim, quero saber qual era os primeiros habitantes do Baú”. Falei: “O primeiro habitante meu bisavô Francisco dos Santos, e Maria Mutuca. Serafim e João de Virgínia. Aí fui dando os dados tudo assim, é, eu falei, eu sei tudo. E havia Maria Mutuca. Havia Maria Mutuca. Uma das primeiras moradoras do Baú. Entendeu? É.
P/1 – E tem alguma história que o pai do senhor conta da comunidade do Baú? Como é que era? O quê eles faziam?
R – Pai? Pai não contava. Meu pai, não. Ele não contava porque ele não era de lá. Não, meu pai, não. Ele não contava nada de lá. Pai era um homem engraçado que nem pra conversar no dialeto ele não conversava. Não, nem o dialeto. Pai não conversava no dialeto, não. O dialeto é pra só lá do Baú. É só o povo do Baú. Mesmo. Meu pai não conversava. Nunca vi meu pai falar uma palavra do dialeto. Entendeu?
P/1 – Que dialeto é esse?
R – O dialeto é cultura. É cultura, entendeu? Ele é cultura mesmo, o dialeto. Dialeto, por exemplo, nós então: você minha andê, essa moça minha andê, esse moço também meu Andê… O quê eu falei procê?. Isso que é dialeto. Não, Andê, e se nós trabalhar junto num setor só? Igual tá vocês, veja, vocês trabalham num setor só, vocês é Andê e parceiro. Parceiro. Por que vocês é parceiro? Porque trabalham num setor só. Antão, companheiro de serviço é parceiro, viu? Eles falam: Andê. E a casa, como é que chamam? A é que é a história que vocês vieram saber de mim aqui, e tudo mais. Anjó, casa chama anjó. E cavalo? Entendeu? Você tá à cavalo. Eu tô de à pé. Lá no Milho Verde, e “ocê” tá à cavalo, eu já bebi uma pinga, eu não agüento mais vir em casa à pé. Ah, bom. Eu vou falae então: “´Ocê´ pode arruma um goro par eu ir pro meu anjó?” “Ocê” entende a língua dos outros. Arruma um goro par eu ir pro meu anjó. Pega seu cavalo na estaca, passa a perna nele, vem embora. Pronto. Mas aqui, não, sabe? Mas aqui quem falou com ela? Arruma um goró pra eu ir pro meu anjó! E isso aqui, como é que chama? Bom, isso aqui é um boné, né? Não é lugar de chapéu. Entendeu? Por que o chapéu chama quipum Aí, é, feijão: pipoquê, arroz: maçan; passarinho: canjirauê. Cachaça: oranganja. Cachaça, chita. Galinha: araçangue Boi, ongombe. Carne de boi chama chita de ongombe. A carne de porco: chita de omburo. E o toicinho? Oréra de Omburo E a estrada? Ogira. Ah, entendeu? Isso, do lado do meu pai não trouxe essa língua. Isso tá pra o lado da minha mãe. Porque eles já são um outro lado. Eu sei isso aí. E a coisa é mesmo assim. Não é tirar a cabeça, não. Falar o que tá escrito. Entendeu? Está escrita essa palavra,existiu. É, tanto que chama dialeto. Não é, moça nova? Kaimina. Mulher velha? Macuca.
P/1 – Com quem o senhor aprendeu?
R – Eu aprendi. Vê uma menina nova lá, Kaimina. Menino? Criancinha. Kalingue É Kalingue. E o frio, como é que chama o frio? Igual tá agora esses dias. Bambí. Frio chama é Bambí. Isso é dialeto. É. Isso é dialeto africano. Isso é língua africana. É. Aprendi muitas coisas. Eu aprendi.
P/1 – E a mãe do senhor falava o tempo inteiro?
R – A minha mãe não falava. Quem falava assim mesmo, explicava, era o irmão dela. Os irmãos dela falavam. Mas a minha mãe mesmo, não. Mas os irmãos dela falavam essa língua. Falavam tudo, tudo.
P/1 – E era lá no Baú? Todo mundo falava? Quem morava no Baú?
R – Entendia a língua. Mas hoje acabou. Lá hoje não tem quem entende língua, não. Porque lá não tá tendo veio mais não. Baú não tem veio mais, não. Gente mais velha lá? Você não acha quem tenha mais de 60 anos lá, não. Baú não tem. Gente de 50, 50 e poucos, mas acabou. Os veio igual, acabou tudo. Tem não.
P/1 – E os filhos do senhor. Eles sabem um pouco do dialeto?
R – O Geraldo tá aprendendo, o dialeto. O Geraldo tá aprendendo. Os outros por enquanto não deu pra aprender. O pessoal fala: não deixa os meninos sem aprender. Eu ensino. Depende de querer aprender. Mas não tá aprendendo.
P/1 – Tem alguma história, assim, tinha festa lá no Baú?
R – Tinha! Festa. A festa mais é assim: festa de, por exemplo, agora, festança do Rosário, tinha o ensaio, né? O ensaio de dança. Aí quem quisesse o catopê na casa dele, então falava pro patrão da dança: “sábado vai ser lá em casa!”. Sábado. Aí o gajeiro tudo sabia. Sábado é na casa lá por exemplo. De Devenir. Pronto. Aí ia ensaiar lá pra dançar. Ensaiar, né? Pra quando for o dia da festa não dar mancada. E tinha também, assim, aniversário. Isso tinha. Fazia quitanda, biscoito, broa. Isso tinha muito. O pessoal desuniu. Não tá aquela união igual era. Não tá sendo, não.
P/1 – E o quê é o Catopê?
R – O Catopê é uma dança de Nossa Senhora do Rosário. Porque só o Catopê tirou ela da margem. Porque o caboclo não tirou, marujada não tirou. Era só acompanhou o Catopê. Entendeu? É o Catopê. Por isso é que toda festa, aqui na nossa região todinha, eles quer que tenha o Catopê. o Rosário.
P/1 – Tem algum significado, esse nome, Catopê?
R – Não, significado eu não encontrei. Não falaram pra mim, não. Mas eu não sei onde é que eles aprendeu isso tudo. Porque assim Nossa Senhora do Rosário apresentou e ele soube cantar música pra ela, o mistério dela. O mistério de Nossa Senhora do Rosário.
P/1 – E essas músicas, o catopé, elas são todas no dialeto?
R – Sai algumas no dialeto. Não todas, não. Mas tem umas que cai no dialeto. Tem sim.
P/1 – E do que elas falam? Essas músicas.
R – Ah, de muita língua que falam. No dialeto cai. Isso aí num sei. Mas é muita coisa, né? É muita.
P/1 – São muitas cantigas diferentes?
R – É, sim, sim. Isso tem.
P/1 – E os vissungos os vissungos de cantar, quando as pessoas morrem. Carregam.
R – Ah, na reza, menina. Hoje o povo não tão usando mais. O pessoal novo hoje não tão sabendo fazer um velório. Não tão sabendo mais não. Eu achei, achei e sei tudo. Todas as rezas também. Mas só que hoje morre. O pessoal não tão querendo fazer aquilo. E também tá com problema de saúde, leva pra cidade. Lá morre, vem de carro não tem o que fazer. Como disse eu disse, o vissungo é de a pé. Um litro de pinga na garupa. O copozinho ali. “Ah, minha Nossa Senhora”! Toma um gole e aí vamos embora. Ah, isso aí, o Vissungo, tá acabado também. Tá acabado. Baú não tem ninguém mais tira Vissungo. No Ausente, aqui, preservam ainda o Vissungo. Fazer quarto, velório, eu ainda faço. Veio tirar. Terminou o ofício agora tira as excelências. Da noite. Aí vai até o dia amanhecer, rezando. Quando põe no caixão, fala: que fala caixão, cobertor de Deus, (cantarola), como está no céu, (cantarola). Isso é um bom momento, isso eu aprendi tudo. É, essas coisas eu aprendi. E fazia velório. Eu faço velório a noite inteira, sem repetir uma reza. Ainda faço ainda.
P/1 – E as pessoas chamam o senhor pra rezar quando alguém morre?
R – Vou, de vez em quando eu faço quarto. Isso eu faço. E é cultura. Tá acabando essa cultura. Já veio muita gente aqui me perguntar sobre vissungo. Dialeto, tudo. Não, o que eu sei. Aprendi. Original, né? Que a gente achou na comunidade. A gente ainda tá aí pra explicar. É isso.
P/1 – E como era antigamente essas rezas? Assim, o enterro que hoje tá acabando, como era antes?
R – O enterro?
P/1 – É, o velório?
R – Ah. Na hora do enterro. Mas isso aí é depois já passou de, ele levou pra estrada a fora.
P/1 – É, isso, desde que a pessoa morre. Como é que era?
R – Pois é, morreu, aí reza essa reza. Na hora da saída da porta: “Bendito, louvado seja, bendito, (cantarola). Olha o santíssimo sacramento. Os anjos, todos os anjos, louvam a Deus para sempre amém” (cantarola). Mas aí a dona só de reza é isso. Os homens ta lá calado. Mas acabou de rezar. E fala: “Vai com Deus e Nossa Senhora, e com mais ninguém”. Entendeu? Agora já os homens tiram o vissungo. E eles faz assim: (cantarola) “Bendito é louvado, e que para sempre seja louvado” Tinha vezes que ia passar por uma turma que às vezes tem gente no garimpo, carregador tá pouco. Como é que grita por ajudante. Como é que chama? Na língua. Como é que convida ele pra ajudar? Não tem que chamar nome de ninguém. (cantarola) “A minha perna me dói, o meu braço me dói, ah, […] minha cabeça me dói, ah, meu corpo todo me dói, pai, mamãe quer cadê”. Quer ter companhia pra ajudar? Quem tava na roça escutou essa música larga a roça já. “Tá pesado, vamos ajudar ele”. Paravam a roça, o garimpo lá, e junta a turma. Isso é, convidando um companheiro pra ajudar a levar. É, essa música tudo aprendi. É, isso a gente aprendeu. É coisa. E é da cultura. Quando chega aqui o morto: “Mundo virou, mundo virou quero ver”. Quando acabou aquilo, chega lá e desamarra o caixão, pega e fala assim: (cantarola) Depois, pra chegar no cemitério: (cantarola) “Caxinguelê, vai embora com Deus, com, vai embora com Deus”. Aí quando chega na porta da igreja, o pessoal todo na porta da igreja. Quando for para enterrar tem a outra que canta na hora do enterro: (cantarola) “Lá no céu tem uma santa, Santa Maria mãe de Deus, rogai a Deus por ele lá no céu quando chegar”. Até fazer o enterro. Hoje não tão fazendo. Eu tirei na mão do moço, tirei, porque o povo novo não sabe. Veio até um pessoal lá do Serro, acompanhar o enterro, e eu tirei pra o povo saber como era a cultura. Porque o povo não ta sabendo mais como é que é a cultura mais. Não, é da obrigação. Então: lá no céu tem uma santa, Santa Maria mãe de Deus. Rogar a Deus por ele lá no céu quando chegar. Na hora do enterro. Porque fica perguntando: na hora do enterro com é que faz? Ah, o povo não ta sabendo, mas eu sei isso aí. Eu sei, sei tudo, Agora, e quando, por exemplo, o rio ta cheio. Por exemplo, eu moro aqui, Arlita mora ali, numa primeira casa. Bom, morre uma pessoa da banda de cá e o rio ta cheio. Não posso passar pra falar com ela! Como é que eu aviso? Na língua? É tipo dialeto, mesmo. Como é que você comunica a pessoa, comunicando que morreu uma pessoa. Como é que faz? Isso é que o povo não tão sabendo mais. Entendeu? Você chega, por exemplo, em fronte aquela casa, e grita assim: (cantarola) “Tingo, tingó…” O pessoal da banda de lá. Opa, morreu! “Tingó, tingo… E tá vivo, ocê ta chamando o outro e avisando que a morte. Mas, o rio tá cheio. Tá, isso tudo era cultura, coisa que a gente aprendeu. É. Eu aprendi muita coisa. Aprendi.
P/1 – Seu Crispim, conta um pouco pra gente como foi que o senhor aprendeu os vissungos, os cantos.
R – Eu aprendi foi com o velho, que eu achei. É, Firmiano da Costa, Gazinho, Manué de Pechede, Bastião de Lia. É, mais o pessoal do Baú. Que aqui o pessoal não sabe vissungo, não. Tanto que quando morria gente aqui, antigo tempo, mandavam bater no Baú lá, falar com o pessoal de lá. João Veríssimo dos Santos, o apelido era João Cuco, porque ele era baixinho. Talvez você teve na pousada da neta dele. Jacira, o nome da pessoal. A Jacira é minha prima segunda. Ela é neta do João Cuco. Aí o que acontece? Ei menina esse homem tirava um vissungo! Era ele, Firmiano, Bastião de Lia, mais Manuel Prechede. Eram mestres no vissungo. E o vissungo é isso. Você tem que saber tirar ele. Um tira, o outro responde. Um tira e o outro responde. E o meu tio sabia tirar e o compadre dele, respondia. Firmiano. Era o Firmiano. Eu aprendi foi com ele. Porque sempre tava mandando carregar rede de lá, né? Porque morrendo gente lá eles mandavam falar aqui em casa. Mandavam falar, nós íamos pra lá. Aí ele levava até o enterro. Nisso eu fui aprendendo. Entendeu?
P/1 – Quantos anos o senhor tinha nessa época que o senhor aprendeu?
R – Não sei falar. Idade de novo. Me lembro quando eu comecei a agüentar pegar peso, eu já ajudava. Eu de novo. Ajudando carregar. É. E hoje ta acabando. Ah, porque também ficou assim, que o povo fala: não ta usando. E aqui, a cultura ta acabando. É a mesma coisa igual existia nas comunidades – engraçado, eu achei que isso tava por esquecido e não tá – eu fui num encontro de quilombola em Belo Horizonte e tava umas folhas que vem de Brasília, lá para os quilombolas assinar. Tudo certinho: o quê tem na comunidade, o quê não tem. Se tiver, tem um quadrinho em frente a pergunta, se tiver faz um x, provando que tem. Se não tiver não pode riscar dentro do quadrinho. Coisas que canta nas portas, eles falam serenata. Então, acontece isso. O quê o povo cria na comunidade. O que tem, risca. O que não tem não pode riscar, deixa em branco. De repente eu enchi a folha toda. Ainda me deu o representante do Baú, para eu encher a folha dele. Porque muitas coisas que ele não sabe do Baú eu sei origem todo, né? O morador da comunidade, o nome dele. E eu sabendo o nome do povo de lá, e sabendo o nome do povo daqui, nós sentemos junto, de repente eu fiquei: é fulano de tal, é fulano de tal. Ele chama Zé Preto. “O seu Crispim, e lá no Baú, qual é que foi o primeiro morador?”. Eu falei: Maria Mutuca. Meu bisavô. Aí fui dando os nomes de todos, todos lá. Ele foi pondo. Porque tem que por o nome. Qual os primeiros habitantes? Como é que chamava. Aqui também eu dei os nomes tudo certinho, sem faltar nada. Né? É pra gente guardar na cabeça. É, os velhos falando e a gente tem que levar isso pra frente. Tem de levar. Pra não caducar a história, né?
P/1 – O senhor já conhecia alguma outra comunidade quilombola?
R – Se eu já fui conhecer?
P/1 – É, já conheceu, já teve algum encontro?
R – Fui em março. Final de março, dia 30 de março. Mas era longe demais. É chamado São João da Ponte. Nossa Senhora! Eu cansei de viajar de ônibus. Nossa Senhora! Mas cansei! Passava dentro da cidade numa estrada! É aqui o quê? Aquele ônibus cortou por dentro da cidade, chegou? É Bocaiúva, outro nome lá do outro lugar. Então, lá vamos. Lá vamos. Chegamos na parte da manhã em São João da Ponte. É comunidade quilombola. Encontro lá.
P/1 – Como é lá? É muito diferente do Baú?
R – Eu não entendo. Não, diferente é. Porque lá é cidade. Lá é cidade. Antão, um pessoal muito bom. Tratou nós muito bem. Nós fomos bem recebidos, lá. Não podemos falar de lá, não. Só que o clima de lá – lá é tudo diferente. A água é meio salobra, não é aquela água igual a essa água aqui. Sabe? Não, não. É salobra a água. Mas também já tá. Me falaram que lá já é Norte de Bahia. É norte. Diz que é. Não sei, na primeira vez que eu fui. Até gostei de lá, o pessoal tratava bem a gente. De noite lá teve um meio enjoado que não deixava a gente dormir. Aquela cantarola, e batendo violão. E eu já cheguei tarde. Levei os homens pra dormir e falei: Nossa Senhora! Acredita, menina! Desde cedo pra dormir. Que tem o horário de dormir, então tem que respeitar aquele horário. Não, não, Nossa Senhora! Mas tudo passa. É.
P/1 – Mas o senhor chegou a conversar. Ver se tinha vissungo lá também?
R – Uma dona me chamou, lá particular. Três. “Entonces”, na parte da manhã horário de almoço. Ela já me conhece, que ela tem um comércio aqui e ela me conhece. “Vem cá, vem cá ver um negócio aqui”. Aí eu falei o quê ela queria. “Ah, canta uma parte do vissungo pra gravar, pra ti ti ti. Aí fui lá e cantei pra ela lá. Aí ela gravou tudo.
P/1 – Mas lá eles não conhecem o vissungo, o dialeto?
R – Conhecem, não. Não vi ninguém lá conversar em dialeto. Não, também não deu tempo. Não deu tempo, não. Não deu tempo da gente, sabe, trocar idéia com o povo. Não deu não.
P/1 – E a festa? Como é a festa aqui, do Rosário? Quando começou? Já tinha lá no Baú?
R – A festa do Rosário. A festa é o seguinte. A festa do rosário tem a dança, o catopê é do Baú. Porque esse catopê vem da África. Catopê não é daqui, não. Catopê é da África. Vissungo é da África. É africano. O dialeto é da África, entendeu? Isso tudo pode perguntar pra quem ocês quiser. O catopê é do Baú. O pessoal do Baú que trouxe essa tradição. Veio da África.
P/1 – Mas na festa é junto com os marujos?
R – É junto. Marujo não pode ser abandonado, não. É comemorado a mesma coisa. Eles é do mesmo grupo. É do grupo é a mesma coisa, né? Só que na ocasião festa da Nossa Senhora, Nossa Senhora acompanhou foi o catopê. Marujo não tirou, caboclo não tirou ela. Ela acompanhou o catopê. É. Mas tem razão. Porque a música do catopê pra Nossa Senhora faz mesmo doer o coração. Ele quer cantar assim: [canta] “ licença Senhora nós viemos pra pedir. Ainda hoje nesse dia, da Senhora, mãe de Deus, ainda hoje nesse dia para Senhora mãe de Deus. Ainda hoje nesse dia Nossa Senhora, nós viemos pra pedir. Me daí hoje, nesse dia, da Senhora, mãe de Deus”. Ela não agüentou aquilo. Foi só acompanhando eles. Só foi acompanhando eles. Não teve jeito. Cantando, que a música, sabe, comemorando a ela. As músicas tudo. Tanto que agora eles inventaram outra dança, eles tão admitindo o catopê. O catopê não é de outra dança. Ele não é de São Sebastião, festa de São Sebastião não tem o catopê. Aqui eles tão traduzindo isso aí. Senhora dos prazeres, não tem catopê. Mas que o pessoal turista, chega e gosta. Nunca ouviu isso aí. Mas eu to falando: eles não podiam aceitar. Porque essas músicas, isso é só do rosário. Entendeu? Só cai na palavra do rosário. Então tem isso aí. Catopê é do rosário. Não tem nada de outro santo, não. Não pode. Mas eles quer por Nossa Senhora de Aparecida junto com o catopê. Não. Festa de Nossa Senhora Aparecida não tem nem o catopê. Bom, o que quiser. Leva o grupo, o grupo dança. Mas não falar que o catopê é das outra posição. Não. Não é mesmo.
P/1 – Seu Crispim, tem alguma história de por que a Nossa Senhora só acompanhou o catopê?
R – Uai, não sei. Mas acompanhou o catopê. Foi só o catopê. Tanto que a dança, quando tem a festa aí do catopê. Ela não fica localizada. Ta faltando esse grupo. O catopê. Isso aí é verdade mesmo!
P/1 – E tem instrumento?
R – Tem. O reco reco, tamborim, meio quadradozinho assim, com uma haste assim pra pessoa segurar. Dim dim dim. O tamborim. A caixa, né? “Entonces” isso aí é do catopê.
P/1 – Essas festas o senhor também aprendeu com alguém? Era no Baú? O senhor aprendeu no Baú os cantos do catopê?
R – Não aprendi aqui mesmo. Que eles vinham de lá pra dançar aqui. Quase sempre eles chamavam, eu convidava eles pra dar um ensaio lá em casa. Eles vinham e formavam o grupo. Tinha o João Candido que morava ali, era patrão da dança. “Entonce”, e tirava a dança. E se aproximando a festa. Que eu tô falando com essa gente. Aí tem uns moços lá, de fora, que faz festa do cruzeirinho, tal e coisa, quer o catopê. Eu falei: não, nós não achou isso, não. Isso é um catopê temporão. Não é, não. O catopê é do rosário, gente. Toda vida pode me chamar que eu não vou. Porque tô sabendo que ta fora da, sabe, ele não ta na cultura. Tem que acompanhar o que está na cultura. Ele é da cultura de Nossa Senhora do Rosário. Ele não é de outras festas, não. Eu sei disso, que não é. Não, o catopê, não.
P/1 – E como que vocês se vestem pra dançar catopê? Qual a roupa pra dançar o catopê?
R – Aí depende do patrão da dança. Por exemplo, um veste verde, o outro veste vermelho. Entendeu? É, por exemplo, contramestre e patrão. O patrão veste vermelho, o contramestre veste verde. Fardamento dele é verde. E o patrão é vermelho. Agora o embaixador veste a roupa dele normal e uma capa nas costas. Uma capa vermelha nas costas, aqui assim. Amarradinha aqui assim. Esse é o embaixador da festa. Eu trabalho de embaixador lá, todo ano. A capa da roupa com uma corda muito comprida, ela desceu aqui, ó. Na hora o moço foi tirar a corda de lá. Mas ela não cai aqui, não. Porque ela era muito comprida, aí desceu. Mas a capa é vermelha. Olha a espada aí, aí em pé. Essa é a espada.
P/1 – Qual a função do embaixador?
R – A função do embaixador é assim: formar a ala da procissão. Aí, ele vai no meio, o andor vem atrás aqui, e ele vai no meio assim. Riscando, tirando cisco da rua. Daqui vai lá, volta pra cá. E o pessoal tudo de lado. E tem o alo da coroa, que vai dentro do quadro com o rei e a rainha. O alo da coroa. Outra espada. Duas espadas, em Milho Verdes têm duas. Antão, isso é histórico, isso é patrimônio, muita coisa. Antigo demais. Aí o guarda coroa, esses não fazem nada, eles só andam com aqui, ó, junto com o rei e rainha, dentro do quadro. Agora embaixador tem que trabalhar. Entendeu, fazendo a ala de povo. O pessoal de lado e ele lá vai no meio, entendeu? É embaixada. Agora na hora de encontro de rei com rainha, ele vai buscar o rei, ou vai buscar a rainha, na porta daquela espada. O guarda coroa põe o embaixador, cruza a espada na porta pro rei passar. É isso aí! Antão, cruza as espadas, o rei e a rainha passam lá. A função deles é essa. Isso é da cultura antiga. Coisas que a gente achou, né? A espada, a folha dela é de aço, é desse tamanho assim. A folha dela é de aço. A bainha dela é de prata. A bainha dela é prata pura. O cabo dela, a volta do cabo dela, tudo é prata purinha. E aqui é emblema de Dom Pedro II. Fala emblema de Dom Pedro II. Emblema. É. É um problema sério.
P/1 – E a luta?
R – Ah, é de marujada com catopê, né? Tem essa luta. Quatro bengalinha. Vai o menininho descendo com os pauzinho, assim, bem ali é luta do encontro. Do grupo. Muito bonito. Até gosto, eu gosto. É isso mesmo.
P/1 – E é sempre o catopê que ganha?
R – Nada, é coisa assim. Aquilo acaba tudo por igual. Elas por elas, é. É uma coisa engraçada. Mas tudo é da cultura, é da cultura mesmo. Eu vou representar de rei esse ano agora, ué.
P/1 – A, é?
R – Em setembro. Eu tô lá. A festa ficou sem rei e sem rainha. Foi o que aconteceu. Aí saiu o assunto da festa, que não tinha rei, não tinha rainha. “O Crispim, você não anima a fazer a festa, não?” Aí, sem vontade você não me acha, não. Sem vontade você não me acha. Aí ficou. E nós já vamos fazer uma em setembro. Pra não ficar enterrada a festa, sabe? ___, nós fazemos. Não tem disso, não. Comer nós come, beber nós bebe. Não tem mais jeito, tem que dar comida, que isso aí é bobagem. A festa do rosário tem que ter comida. Comida, cachaça, um vinho. Essas coisas, um suco ali pro povo. Isso aí nós sabe que tem que ter isso. Isso aí tem que ver. Já tamo organizando, tamo com as coisas encaminhadas pra fazer a festa, se Deus quiser. Não arrependi não, que ela é milagrosa, Nossa Senhora do Rosário é muito milagrosa. Bobagem.
P/1 – Que comidas tem na festa, seu Crispim?
R – Carne em primeiro lugar, essa não pode faltar. Arroz, macarrão, batata. Bão, se quiserem a cebola também, a cebola. É isso só. Não tem de outro jeito, não. A comida da festa é isso. Agora a carne é indispensável, a carne é em primeiro lugar. Que aí fica um prato mais saboroso. Isso aí. E uma cachacinha, né? Põe na mesa lá, quem quiser beber bebe, quem não quiser não bebe. É da obrigação de ter a cachaça. Da obrigação. O padre falou, a menina minha foi mais a Cristina, conversar com o padre, que eu não pude, ao. Mas a resposta do padre como é que pode ser. Se dá pra ele fazer a festa, agora marca com ele. Aí ele foi e falou: “não pode ter cachaça, não!”. Falou bobagem. Eu nunca vi festa sem cachaça! Nunca vi. Você não pode beber demais, mas todo mundo ali bebe um golinho, não mata ninguém, não, viu? Isso é bobageira. Bobagem. Ele não pode mandar na boca do povo. Ele tem que ver o dele, ó. A gente ta ganhando.
P/1 – E quem faz a comida?
R – Muitas lá fazem. Fazem a comida.
P/1 – E tem uma casa que é
R – Tem, pegaram pra fazer, né? É lá na creche. A dona que toma conta lá. Domingo eu já fui lá e conversei com ela. A creche é da comunidade, vou deixar a chave com Jacira, viu? Jacira também é juíza, não ela é mordomo. É, primeira juíza é Maria Fernandes, e ela é mordomo. A Jacira. Então ela deixa a chave com ela, libera tudo e pronto. E as pingas encosta lá no quarto lá, deixa lá, bobagem. Isso é do tempo antigo. Todo dançante bebe. Porque sabe, gente, sabe o que é? Se não beber um tragozinho a pessoa fica até com vergonha. E, não tem aquilo? O pessoal ta meio acanhado, vontade de tirar uma música. Libera um gole? A coisa entra na cabeça . Ó, aí ó. Porque também. Deu um astral. Todo mundo fica tudo choco. Chamango. Eu não sou contra ninguém que bebe. Eu, não, não sou contra nada, não. Bobagem. Deus deixou. Eu estou com 50 litros lá pra buscar. Já ta pronta. 50 litros! Pra festa, ta guardado no alambique, lá embaixo. Quando chegar o dia da festa, pronto. Dá lá pra Milho Verde. Guarda lá. Vou deixar perto da festa. Aí acabou aqui, vai lá, enche lá de novo, põe na mesa. Não tem essa coisa não vai beber, não. Que nada!
P/1 – E o alambique é do senhor?
R – Não, é de um amigo meu. Não é que eu dei um cana pra moer. Aquele que tava ali em cima. E ele moeu pra mim. Então, já separei 50 litros. Pra beber os 50 litros aí, viu? Pra festa do rosário. É preciso. Como é que come uma carninha e não tem uma pinga pra beber? Isso aí não pode, não.
P/1 – E tem ensaio pra festa? Como é que é o ensaio?
R – Tem ensaio. Pros meninos ficar mais treinados. Tem ensaio. Precisa. Dá pra gente ativar a comunidade. Senão o pessoal vai tudo de branco, né? Aquelas coisas da cultura da comunidade, do pessoal não ter aquela união pra preservar aquilo, né? E aquilo vai acabando. Não pode, não.
P/1 – Tem muita criança pequena?
R – Tem muita criança. Vai muita criança.
P/1 – Mas tocando no catopê tem criança?
R – Não, não. Ah, menino muito pequeno não serve. É menino [risos]. Muito pequeno dá mão de obra, né? Ele não sabe nem defender o corpo dele, né, é isso.
P/1 – As mulheres participam do catopê?
R – Não, mulher não dança catopê, não. Elas só vai pra olhar. Mas elas não dançam catopê, não. Onde é catopê e vissungo, não, mulher não. Pra cantar, essas coisas. Não, não. Isso aí, não.
P/1 – Porque o senhor acha que é importante a comunidade sempre aprender o que os mais antigos sabiam?
R – Acho bom porque sabe, porque fica a preservação da cultura. Aquelas coisas original, que teve, que havia, né? E se o pessoal novo não aprender, isso acaba. Eu acho de acordo. Que sempre deve preservar essas culturas. Eu acho que deve preservar. Não deixa acabar, não.
P/1 – Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de falar?
P/2 – Posso fazer uma pergunta?
P/1 – O senhor tem ido lá na cidade pra ensinar os meninos mais novos pra preservar a cultura. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho dessas aulas que o senhor ta dando.
R – Isso. É isso mesmo. Eu tava indo lá, antão, sobre isso. Pra ensinar como é que garimpa, como é que é a cultura, né. Antão, fui convidado pra fazer isso lá.
P/2 – Conta como foi o convite. O senhor contou quando chegou aqui. Como é que foi o convite? Quem veio chamar o senhor?
R – Não, quem veio chamar foi o Vitor. Porque lá tem dois Vitor: tem um Vitor mais gordo e um mais magro. Aí nós vai e fala, Vitor magro. E tem o Vitão, né? O Vitão e o Vitinho. Aí então o Vitinho é que fez o convite. E aquela dona também. Cristina. Essa até Cristinona. Porque ela é alta, né? Também fez o convite. Aí antão quando nos foi na fazenda onde eles trabalham, ela tá lá sempre. Ela não sai de lá. Ela tá só segurando. Outro dia, há pouco, ela veio aqui. Vai dar umas três semanas e meia, aí antão, pra nós começar o trabalho mês de agosto, de novo. Agora em agosto. Tornar continuar o mesmo trabalho. Gostaram muito das explicação que a gente tá passando pros meninos jovens, né? É preciso. É uma preservação. Que aqui nessa comunidade, entre Milho Verde, isso que é Ausente, e Baú. Nunca tem mais ninguém que sabe mais nada dessa vida. É eu e Ivo, ali. É nós dois que ainda preserva. Mas o pessoal de arriba, ali, ninguém sabe nada. Pronto. Sabe, não. É.
P/1 – Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de falar?
R – Não, não. Eu não tô tendo. A história que eu sei é essa aí.Viu. É.
P/1 – A gente gostaria de agradecer muito o senhor ter dado essa entrevista pra gente. Foi muito legal. Muito obrigado. Obrigada, seu Crispim.
R – Nada. Nada.
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