Os Vissungos de Seu Crispim do Ausente

Tania Pacheco

Sempre que abro o computador, de manhã, uma das primeiras coisas que faço é olhar os comentários feitos no Blog. Hoje, um especialmente me chamou a atenção: uma leitora, Joara Almeida, respondia ao post sobre “O Canto dos Escravos” indicando uma gravação de um Vissungo. A curiosidade me fez seguir o link antes mesmo de liberar o comentário para publicação. E, do link, vim diretamente postar um texto publicado num Blog que não conhecia, chamado “Museu da Pessoa”. Depois outras coisas aconteceram… Mas a história vai abaixo, começando pelo (belo) texto, datado de 27 de agosto de 2007 .

A casa do Seu Crispim

“Por favor moço, onde é o Ausente?”.
“Ah, é pertin … Ó, cê pega a estrada que vai pro Serro e, depois da ponte, cê entra e já é o Ausente”
“E o Seu Crispim moço, mora por ali?”
“Ah, é pertin , ele mora no Ausente de Baixo , é logo na estrada que ele mora”

Se não fosse a experiência de que as distâncias mineiras nem sempre estão exatamente de acordo com a indicação do informante, poderíamos ter ignorado a oportunidade de chamar o jovem neto de Seu Geraldo para nos acompanhar e guiar até a casa de Seu Crispim. De alguma forma ele salvou nossa entrevista, ou pelo menos garantiu a pontualidade da equipe. Foi só a caminho, descendo um morro que não acabava mais, que nos conscientizamos como seria difícil chegar à casa do entrevistado sozinhos.

Certamente, sem o nosso guia mirim, teríamos que ter contado com a casualidade de cruzar com algum morador local, o que não seria fácil, uma vez que as roças estão todas dispersas ao longo do vale do rio (o Jequitinhonha mesmo) e sem nenhum movimento centralizado. Mas foi graças a este caminho que tivemos a oportunidade de sair da cidadezinha de Milho Verde, descer o vale, e cruzar com o rio Jequitinhonha no local mais próximo de sua nascente durante toda a viagem.

Foi assim que, ao saltarmos da van, não avistamos nenhuma casa próxima, com exceção de uma, em cima do morro, pequenininha e branquinha. Demorou algum tempo de caminhada pela trilha para entendermos que “logo ali na estrada” também não era exatamente a localização da Casa de Seu Crispim. Ao  sairmos de uma pequena mata fechada, a casinha solitária surgiu novamente no horizonte e o pequeno guia nos disse: “É lá ó”. O bom era que desta vez podíamos avistá-la e calcular nossa aproximação conforme a casinha aumentava.

Fomos recebidos na porta da casa com muita simpatia pela filha de seu Crispim. Enquanto entrávamos na casa ele estava na cozinha, encostado na beira do fogão a lenha, de pé, com um prato de comida na mão: “Vamo almoçá?”. Rapidamente raspou o prato e se preparou para entrevista como se fosse algo que fizesse rotineiramente. Na sala arejada havia uma imagem que reluzia em cima da mesa: a fotografia em que Seu Crispim usava seu traje para a festa de Nossa Senhora do Rosário: na imagem, chamava a atenção a passada com ar de realeza e a longa capa vermelha que o acompanhava.

Seu Crispim  fala aberto e gostoso, com uma narrativa envolvente e generosa. É marcante encontrar estas personalidades que abrem com tanta facilidade o baú de cultura que resguardam dentro de si. Especialmente quando trabalhamos com pessoas que trazem, no centro da história familiar, o fio da opressão, como é o caso de netos e bisnetos de escravos. Seu Crispim faz parte de um grupo de descendentes de escravos libertos e foragidos fundadores da comunidade quilombola do Baú que, por congregar a origem Africana, acabou preservando, coletivamente, fala e costumes diferenciados. Além disso, muitos dos cantos tradicionalmente cantados pela guarda dos Catopês (a guarda negra que conseguiu tirar a Nossa Senhora do Rosário do Mar), têm papel único e ritualísticos que não podem ser descontextualizados,  isto é, cantados fora de festas e momentos sagrados. Muito já foi discutido, nesta região de Milho Verde, a respeito da autoria e contexto dos cantos. Isso acontece desde que um destes cantos sagrados acabou inspirando o tema de abertura de uma novela. A versão era tão “inspirada” em um canto sagrado que, rapidamente, a comunidade destes festeiros percebeu de onde vinha aquele novo sucesso da televisão. E não gostaram nem um pouco da situação.

Mas para Seu Crispim parece que é difícil, mesmo com todo o assédio às culturas quilombolas da região, não conceder uma entrevista para reafirmar incessantemente, entre um Vissungo e outro, a importância de uma identidade cultural:“ Isso é Cultura”, repetiu inúmeras vezes durante sua fala. Para nos deixar mais emocionados cantou uma série de Vissungos: os cantos que embalavam os mortos enquanto eram carregados por parentes queridos dentro de uma rede. Várias situações aparecem no canto do Vissungo,  mas uma delas nos chamou a atenção. Era o canto que relatava um aviso para que, durante um período de cheia, quando o rio pode estar intransponível, uma morte recém ocorrida pudesse ser comunicada para os moradores que estavam do outro lado. O Vissungo é cantado na tonalidade aguda da voz. A pessoa que o está cantando, adquire, repentinamente, um estado de espírito diferenciado.

Foi com este espírito – de quase um transe – que atravessamos o rio Jequitinhonha, mais uma vez, para retornarmos à cidade. Mas, assim que atravessamos o rio, que corria raso e lento de tanto garimpo, era difícil deixar de pensar em Seu Crispim. Do outro lado do rio elaboramos um canto, dentro de cada um de nós,  para agradecer Seu Crispim por este dia.

Escute um Vissungo cantado por Ivo Silvério da Rocha, parceiro de Seu Crispim e mestre dos Catopês de Milho Verde.

***

Aqui deveria entrar a música, mas o link não está funcionando. Com as indicações existentes, entretanto, consegui chegar a um saite onde estão não só a gravação de Ivo, como outras, reunidas num LP com título DOCUMENTOS SONOROS BRASILEIROS – ACERVO CACHUEIRA! – VOL. 01 – CONGADO MINEIRO, com “gravações realizadas em diversas cidades dos estados de Minas Gerais e São Paulo, durante festas religiosas, entre os anos de 1992 e 1999”, pelo Itaú Cultural. As músicas podem ser acessadas clicando no nome, e a primeira é exatamente o Vissungo cantado por Seu Ivo.

No entanto, ficou em mim uma pergunta: por que Ivo gravando e não Seu Crispim? A resposta veio em seguida, quando olhei a outra extremidade da página do saite indicado. Lá encontrei dois comentários, que reproduzo abaixo:

“É tomada por uma dor e sentimento de um vazio profundo que comunico-lhes que hoje, dia 03 de maio, Grispim nos deixou, fez a travessia do rio para sempre. Falta-me palavras para expressar sobre “quem” hoje nos deixa, algo aconteceu sobre o “céu certamente”; onde religaremos não sei, pela tamanha perda. “O rei esta morto”, foi o que a minha filha Maria respondeu ao me ouvir dizer que Crispim morreu…. “Epa rei… Jesus seja louvado… a roda do mundo é grande, mas a de Zambi é maior… vamos tomar a Jurema prá puxar a juventude esta noite” Palavras do Crispim quando se referia à cachaça. (por Lilian Oliveira em 03/05/2008 às 17:45:18)

Em seguida, em outro comentário, a indicação de um texto sobre a morte de Seu Crispim. E, nele, um link para a entrevista completa feita com ele. Considerando a importância do depoimento, entretanto, opto por postá-lo integralmente, a seguir, em homenagem não só a Seu Crispim como ao Museu da Pessoa, que também é uma bela descoberta. Obrigada, Joara!

http://www.museudapessoa.net/blogs/memoriadosbrasileiros/index.php?i=22

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