Por Keka Werneck*
A fumaça escura indicava o local do trancamento da avenida Palmiro Paes de Barros, na região do Grande Parque Cuiabá, na manhã de segunda-feira (13). Das 8h às 8h40, moradores do bairro Jardim Nova Canãa usaram pneus queimados e barreira humana para fechar a pista. O que querem com esse protesto é reagir contra o despejo de 266 famílias que vivem no local há 2 anos e meio e evitar que sejam vítimas de uma “Pinheirinho 2”. O movimento está sendo chamado de carnaval da resistência.
Desde a segunda, as famílias estão acordadas em vigília porque tiveram informações extraoficiais de que o despejo ocorreria a qualquer momento.
Luta
“O direito à moradia se conquista na luta”, dizia o cartaz do porteiro de prédio aposentado Mário Barbosa, 74 anos, que mora na ocupação urbana com a mulher, o irmão dela, que tem deficiência física, e um menino que ele pegou para criar desde os três anos. O menino foi registrado como filho. Com um salário mínimo, o idoso sustenta toda a família. Isso dá R$ 155,50 por mês para cada um deles comer, vestir, viver. “Juntei um dinheirinho para fazer um barraco de tábua e compensado para a gente morar e agora vem essa confusão de desapropriação”, diz ele, com medo da casa dele ser derrubada. Antes de se mudar para o Jardim Nova Canãa morava de aluguel. Perguntado sobre como fazia para conseguir pagar a conta, explica: “Apertava a barriga, passava necessidade para comer”. Nos últimos dias, Mário não consegue dormir, apreensivo.
Traumas
A empregada doméstica Alice Maia, 33 anos, mora no Jardim Nova Canãa com três filhas, de 10, 13 e 14 anos. É separada. Também morava de aluguel. Pagava cerca de R$ 200. “Esse era um dinheiro muito importante para mim. Eu tiro, como doméstica, uns quatrocentos contos por mês. Tenho mais o dinheiro do Bolsa Escola, que é R$ 130, então fica bem pesado para mim. Aqui não tem aluguel, mas mesmo assim é muita dificuldade. E agora com essa coisa de despejo eu te pergunto: Para onde a gente vai?” Alice está muito preocupada com o trauma das crianças. São cerca de 80 na comunidade.
A representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Dalete Soares, vai levar a preocupação com elas ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O defensor Roberto Vaz Curvo, representante do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que fica na Costa Rica, também fará uma denúncia internacional sobre a situação em Nova Canãa.
Apavorados
A doméstica Alice afirma que, no bairro em conflito, está todo mundo apavorado. “Nem bem governador, nem bem prefeito, deu nenhuma resposta para nós até agora. A gente esperava que eles fossem mais humildes com a gente, porque na hora de pedir voto eles vêm na porta da gente. E agora? Quem é por nós? A gente não tem para onde ir… Será que eles vão dar uma casinha de Cohab para nós ou será que nós vamos ter que invadir?” Alice estudou até a quarta série, mas afirma que é uma pessoa atenta. “Eu sei que moradia é direito constitucional.”
De fato. O artigo sexto da Constituição Federal dá direito à moradia a todos os brasileiros e brasileiras. “E onde que está esse nosso direito?”, pergunta Alice. “E os impostos que a gente paga em tudo, desde um palito de fósforo? Na hora que a gente precisa, todos viram as costas para nós? Nós temos direito de protestar, porque nós não somos cachorro.”
Assembleia permanente
Durante o trancamento da avenida, a Polícia Militar esteve presente. Conforme o comandante da operação, afirmou que a intenção era apenas “preservar a integridade dos manifestantes e das pessoas que estão circulando”. Segundo disse, “não há nenhuma data para cumprir a reintegração de posse”. Ele afirmou que a PM foi informada do protesto por caminhoneiros. “Conversei com algumas lideranças e o cunho deles é chamar a atenção das autoridades através da imprensa para saberem o que está acontecendo aqui”, comentou.
Perguntado se como trabalhador se solidariza com as famílias em risco de despejo, esquivou-se. “Eu me abstenho de falar nesse sentido”. Após o protesto, caminhando pelo lamaçal do bairro provocado pelas últimas chuvas, os moradores chegaram a uma tenda azul sob a qual entraram em assembleia geral permanente.
Cantinho pra morar
Na assembleia, a costureira Maria Neuci Maia, 62 anos, estava entre outros moradores, atentos à conversa. Ela disse que o maior medo dela é derrubarem a casa que conseguiu construir novamente com muita dificuldade. “Já derrubaram minha casa uma vez aqui mesmo. Foi uma tristeza ver minhas coisas todas destruídas. Eu vi o Pinheirinho pela televisão, e sei o que é isso”. Maria mora com o marido Osmiro Pereira Maia, 74. “Nós só quer um cantinho para morar”, explicou ela. O casal criou quatro filhos. “Eu costurando e meu marido ajudava mas sempre doente do coração…Foi muito difícil. Mesmo assim, eduquei meus filhos dentro da honestidade, foi uma luta e agora, nessa idade, ainda tenho que lutar para ter onde morar”.
O churrasqueiro Rogério Silva, 45 anos, é um dos fundadores do bairro Jardim Nova Canãa e é da liderança do movimento. “Quando a gente chegou, aqui era só depósito de tudo que você pode imaginar. Desmanche de moto, estupro constatado, tráfico de drogas constatado e mato, uma selva louca, dificultando a moradia de quem vive aqui do lado”.
Indignado
Rogério, também conhecido como Careca, mora em Nova Canãa com a mulher e dois filhos, de 11 e 14 anos. “Maioria de nós aqui está totalmente carente”, lamenta. Passou mal? “Tem que jogar na loteria. Vai na Policlínica do Coxipó, que é a mais perto. Se você for atendido – maravilha – acertou na loteria. Quando não, te mandam para outro buraco e daí você fica rodando”. Segundo ele, tem escola próxima e isso não é problema. Mas a iluminação é por meio de gambiarras. Outra coisa boa é que o lugar, que antes era violento, agora virou uma comunidade calma. “Como é bacana viver aqui, a gente pode ficar até altas horas assentado na porta de casa, conversando.”
Careca está o tempo todo indignado. E explica por que: “É que esses fdp…só aparecem para a gente em época de campanha, depois somem. Nos gabinetes, você fica lá o dia inteirinho tomando cafezinho e água e não é atendido”.
Os moradores, segundo ele, foram descartados pelo Governo do Estado, pela Prefeitura de Cuiabá e pela juíza Vandimara Galvão Ramos Paiva, titular da 21ª Vara Cível de Cuiabá, que concedeu, em agosto do ano passado, liminar de reintegração de posse ao suposto proprietário, Armindo Sebba Filho.
Os moradores entendem que ele é suposto dono porque há contradições quanto à documentação da área.
Conforme Careca, há documentos nos quais consta que o proprietário passou o terreno para oito pessoas numa data só. Então há indícios de irregularidades na área que precisam ser apuradas. “Mas a juíza insiste em nos tirar daqui. Eu gostaria de perguntar a ela: porque não temos um espaço para conversar com ela e explicar o que está acontecendo? Tenho dois anos e quatro meses canelando, para falar com autoridades, mas só tomo chá de cadeira”.
*Keka Werneck é jornalista da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso (ADUFMAT).
http://www.fazendomedia.com/moradores-de-nova-canaa-no-mt-temem-por-novo-pinheirinho/