“Muitas vezes não tinha o que dar para ela. Ela morreu de fome. Ela sofreu muito” (Marcelina Rodrigues, 26, Guarani Kaiowá, mãe de Takihara, de 1 ano e seis meses, que morreu em Kurussu Ambá em fevereiro deste ano).
Terra sem lei. É assim que ficou conhecida Capitan Bado, cidade Paraguai que no ano passado foi destaque nas páginas da revista Playboy que trouxe reportagem especial com um pistoleiro que já matou 300 pessoas na fronteira.
Porém, um outro viés, invisível traduz a situação deplorável que sinaliza também a morte é enfrentada por seres humanos. Em Coronel Sapucaia, na área do lado do Brasil, a 380 quilômetros de Campo Grande, está Kurussu Ambá [Cruz Sagrada], onde sobrevivem crianças, mulheres e homens da etnia Guarani Kaiowá.
Sofrimento e esquecimento por parte do poder público é o que o Midiamax registrou quando esteve no local a convite do Centro de Defesa dos Direitos Humanos há cerca de duas semanas.
A disputa por terras envolvendo índios e produtores rurais é um problema que vem se agravando na medida em que acordos não avançam. O governo federal chegou a anunciar a compra de áreas na região para regularizar a situação dos índios.
Já o governo estadual, propaga a distribuição de cestas básicas. Mas, não é o que acontece. Os alimentos que chegam até a aldeia são da Fundação Nacional do Índio (Funai)
Realidade e morte
Cerca de 200 indígenas estão acampados em menos de um hectare da Fazenda Maria Auxiliadora. Isso já dura 7 meses. Antes, viviam em acampamento na rodovia MS-284, onde ficaram por pouco mais de dois anos.
Kurussu Ambá já foi palco de conflitos entre indígenas e pistoleiros da região. Desde 2007, quando aconteceu o mais violento conflito e os guaranis foram expulsos da área da Fazenda Madama, quatro lideranças foram assassinadas: Julite Lopes, Ortiz Lopes Oswaldo Lopes e Osmair Martins. Segundo indígenas, todos vítimas de pistolagem na área conhecida nacionalmente pela violência, por ser uma terra sem lei.
Fome
A Funai faz a entrega mantimentos, porém, não com a regularidade, que seria a cada 15 dias. Segundo Ismarthe Martins, indígena responsável pela organização da distribuição das cestas básicas na aldeia, às vezes os funcionários da Funai levam mais de 20 dias para a entrega dos mantimentos.
“Uma cesta básica para uma família de sete pessoas mal dá para uma semana. Sempre ficamos sem comida aqui na aldeia. Às vezes eles demoram quase 30 dias para fazer a entrega”, relata Martins.
As crianças da aldeia são as que mais sofrem com a falta de alimentos e de condições básicas para sobrevivência. A reportagem do Midiamax flagrou várias crianças se alimentando apenas de farinha de mandioca misturada com água. Segundo as mães indígenas, muitas vezes é apenas isso que elas comem durante todo o dia.
Nas cozinhas improvisadas dentro das cabanas de lona e chão batido, fogões feitos de pedras amontoadas e em cima deles, panelas praticamente vazias, apenas com um pouco de óleo e resto de arroz, cardápio do almoço, que segundo os índios, única refeição daquele dia.
Na região onde está localizada a aldeia indígena há grandes plantações de sojas e milho, além de criação de gado.
Nos fundos da aldeia há uma mina d´água que é a única fonte de água que os indígenas utilizam para beber, preparar os alimentos e tomar banho. “Estamos aqui abandonados. Sempre faltam as coisas aqui para a gente comer e fazemos o que dá”, relatou Cacilda Pereira.
Além da falta de comida, agora com o inicio do inverno, outros problemas surgem, principalmente os de saúde. Como os barracos não possuem proteção contra o vento e as baixas temperaturas que atingem aquela região do Estado neste período do ano, os indígenas da Kurussu Ambá são vítimas da gripe, resfriados e pneumonia, que se agravam devido à falta de alimento e atendimento médico. “Como não temos remédios aqui temos que recorrer à natureza. Fazemos remédios caseiros e tentamos o possível”, disse a índia Levanda Varela.
Nestes sete meses que os guaranis saíram das margens da rodovia e foram para área da fazenda Maria Auxiliadora conseguiram fazer uma pequena plantação de mandioca e batata, porém, insuficiente para atender as necessidades dos moradores da aldeia.
Takihara
A pequena Takihara Batista, de 1 ano e seis meses, foi mais uma vítima da desnutrição nas aldeias indígenas de Mato Grosso do Sul. Ela morreu no mês de fevereiro deste ano em Kurussu Ambá.
Marcelina Rodrigues, 26, ainda sofrendo com a morte prematura da filha, conta que Takihara morreu de fome, já que frequentemente não tinha alimentos para dar a menina. ” Muitas vezes não tinha o que dar para ela. Ela morreu de fome. Ela sofreu muito”, disse a mãe chorando.
O pai da menina, Jaberson Batista, 30, disse que a bebê teve vômito e diarréia no dia em que morreu. “Não tivemos como fazer nada. Aqui não tem atendimento médico. O posto fica muito longe daqui da aldeia e temos que ir a pé”, afirmou o pai que tem mais dois filhos pequenos.
A menina foi enterrada sem caixão em uma área distante da aldeia. Uma pequena cruz com um amontoado de terra sinaliza que ali está a pequena Takihara, uma das dezenas de crianças que nasceram no Sul do Estado, mas não tiveram o direito de viver.
Em 2005, as morte de 37 crianças índias por desnutrição ou por doenças associadas, na região Sul do estado, ganharam repercussão internacional. Porém, as mortes por essas causas começaram a ser registradas em anos anteriores. Em 2004, por exemplo, foram 15 óbitos.
Três anos depois do registro das mortes de crianças nas aldeias indígenas de Mato Grosso do Sul, a Câmara dos Deputados criou a CPI da Subnutrição da Câmara Federal que foi finalizada sem ações concretas para acabar com o problema que aflige as crianças do estado. Na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, o assunto ecoou, mas também não se projetou para que uma ação eficaz ocorresse.
Doações
Representantes do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) Marçal de Souza estiveram na aldeia e entregaram roupas e cobertores as famílias da Kurussu Ambá no dia 23 de junho. “Além das doações, estamos aqui para acompanharmos a situação dos Guaranis aqui na aldeia”, afirmou o presidente da entidade, Paulo Ângelo.
“A situação deles é preocupante e precisa do máximo de atenção das autoridades”, destacou Paulo Ângelo afirmando que o CDDH vai entrar com uma representação no Ministério Público Federal e Estadual denunciando o descaso com o indígenas da aldeia Kurussu Ambá.
Sacrifícios
Para Elizeu Lopes, a situação de miserabilidade está ligada com a luta pela terra, à demarcação. “Essa é a nossa esperança. Meu povo vai deixar de sofrer quando tiver em mãos sua própria terra”. Os Guarani Kaiowá de Kurussu Ambá reivindicam 18 mil hectares, mas de acordo com o líder indígena, 80 mil hectares são áreas indígenas.
“Estamos sofrendo aqui. São muitos sacrifícios que estamos passando. Meu avô morreu nesta terra, minha família morreu nesta terra. Essa terra é nossa”, afirma o caíque da aldeia.
Marcado para morrer
De acordo com o líder da aldeia e professor, Elizeu Lopes, desde que eles saíram da área da fazenda Madama a situação que já era critica, piorou. “É o alimento que não temos e outro problema grave é a falta de atendimento médico”, relatou o indígena que devido às inúmeras ameaças de morte que vem sofrendo, não mora mais na aldeia.
“Eu, como liderança, estou marcado para morrer. Recebo sempre ameaças de morte. Aqui é fronteira e não dá para a gente brincar. Não tem como eu permanecer aqui, senão, vou acabar morto”.
Denúncia
Três técnicos da Funai de Brasília estiveram na aldeia para cumprir um mandado judicial. Segundo o técnico da Coordenação de Monitoramento Geral da Funai, Marcelo Cantuário, os arrendatário da fazenda e a proprietária entraram na justiça contra os indígenas e alegam que elas estavam degradando a natureza que há na área ocupada.
“Permanecemos aqui por uma semana e contatamos que não há degradação da natureza no local. Concluímos aqui que os índios estão vivendo na mais perfeita harmonia com a natureza”, afirmou o técnico.
Serviço – quem quiser fazer doações para as famílias de Coronel Sapucaia pode encaminhá-las para o CDDH que fica na Rua Manoel Vieira de Souza, 554 Vila Piratininga. CEP: 79081 -150 Campo Grande – MS. Telefone. (67) 3045-3440 ou 3045 3441
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