As lutas sociais no campo: Modelos de produção em confronto, por Horacio Martins de Carvalho*

horacio martins de carvalho

“Os camponeses, na sua práxis social, ao afirmarem a sua própria especificidade estão diretamente negando a lógica do capital que tem no lucro e na acumulação de riqueza o único sentido de ser. Os camponeses vivenciam, portanto, outra concepção de mundo muito diferente daquela que é determinada pelas relações sociais de produção capitalista. E isso é intolerável pelas classes dominantes burguesas”.

Introdução

A complexidade da formação econômica e social brasileira estimula uma reflexão sobre o confronto entre modelos de produção na agricultura que se torna quase sempre incompleta e insatisfatória.

São muitas as classes sociais, as frações de classe social, os povos e etnias em presença no campo. Inúmeras, também, as transformações sociais que as envolvem e afetam, sendo que muitas delas ocasionam profundas mudanças estruturais como conseqüência da acelerada expansão capitalista no campo.

Na dinâmica dessas transformações sociais e nos confrontos que elas estimulam numerosos conflitos sociais eclodem, envolvendo milhares de pessoas. E, nessas oportunidades, é possível se identificar as iniciativas arbitrárias que as classes dominantes, em particular a burguesia agrária, exercem no exercício da sua dominação de classe contra os trabalhadores rurais assalariados e os camponeses.

Quando me refiro aos modelos de produção em confronto na formação econômica e social brasileira sob a dominação e hegemonia do modo de produção capitalista estou, evidentemente, sugerindo uma simplificação talvez abusiva. Isso se dá porque pretendo centrar minhas observações na relação dialética (contraditória e de subalternidade) apenas entre o modo de produção capitalista e os diversos campesinatos, ainda que estes, apesar dos esforços de unidade entre si, não constituam necessariamente outro modo de produção. Quem sabe os camponeses o estejam construindo no movimento das suas resistências sociais e ações de afirmação perante a exploração e as violações de direitos que se avolumam a partir das grandes empresas do agronegócio.

A hipótese de que os campesinatos se constituam ou possam a vir a se constituir num modo de produção camponês na formação econômica e social brasileira requereria, entre outros, a presença efetiva nas suas concepções de mundo de uma proposta ou sugestão explicita no seu universo ideológico e político da possibilidade efetiva de se consolidarem como um modo de produção no Brasil[1], mesmo que se considerasse como um modo de produção em construção e em confronto econômico-político-ideológico com o modo de produção capitalista dominante.

Como parcela substancial do campesinato brasileiro, na sua ampla diversidade, ainda possui como referência política e ideológica, pelas mais diversas razões, os valores que constituem a empresa capitalista, sua concepção de mundo é marcada pela contradição entre afirmar a sua especificidade camponesa ou se compreender e comportar como fração em construção da pequena burguesia agrária.

No meu entender, tudo leva a crer que se os camponeses desejassem se afirmar seja como um modo de produção camponês ou, mesmo, como uma classe social, seria necessário, via as suas instituições de mediação de interesses, que essa pretensão estivesse contida mesmo que implicitamente, na sua concepção de mundo.

Nos conflitos sociais no campo onde predominam os conflitos pela terra já é possível se perceber que os camponeses se afirmam como classe social ou, mesmo sem o dizer, defendem o campesinato como modo de produção ao reproduzirem político-ideologicamente a assertiva de se constituírem como um modo de viver e de produzir diferente do modo de produção capitalista.

Através das suas instituições de mediação de interesses os discursos das concepções de mundo dos camponeses, mesmo na sua ampla diversidade, já se aproximam de um pensamento unitário (não único) que indiretamente negam dialeticamente (negação da negação) o modo de produção capitalista.

Isso permite supor que os elementos básicos teórico-práticos para a refundação das suas concepções de mundo já se plasmam no cotidiano das suas pretensões de maneira a superar, ao menos no nível das idéias, a situação subalterna que os caracterizam como ‘povos sem destino’ para uma proposta de se afirmarem como sujeitos sociais com intencionalidade de se tornarem um modo de produção diferente e não subordinado ao dominante. Modo este que responda não apenas à democratização da posse e uso das terras e à proposição de outro modelo de produção (por exemplo, o agroecológico), e que sejam capazes de dar conta da oferta de alimentos e matérias primas agrícolas para atender à demanda da sociedade brasileira e para a exportação.

Há, contudo, uma barreira difícil de se transpor para que essa pretensão possa se realizar. Por um lado, a precariedade da unidade político-ideológica de classe dos camponeses nas suas numerosas lutas sociais quando da defesa de seus interesses imediatos, descolando inúmeras vezes a luta social concreta da sua suposta concepção estratégica de mundo de afirmação do modo de produção camponês; por outro lado, as dificuldades políticas encontradas de afirmação camponesa, apesar das suas vitórias nos inúmeros conflitos sociais cuja maior parte se caracteriza como conflitos por terra, devido ao apoio incondicional dos governos aos interesses de classe das classes dominantes.

Uma sociedade de classes sociais

A formação econômica e social brasileira está constituída por diversas classes sociais, como de maneira geral se apresentam as demais formações no mundo contemporâneo. Ainda que a maioria delas tenha o modo de produção capitalista como dominante e hegemônico, cada uma dessas formações apresenta histórias e contextos que permitem identificar ora particularidades que as aproximam estruturalmente ora outras que as diferenciam entre si.

No caso da formação econômica e social brasileira pode-se afirmar que, particularmente, a partir da segunda metade do século XX ocorreram rearranjos estruturais na composição das suas classes sociais. Isso se deu como conseqüência do acelerado crescimento e diversificação econômica nacional de tal maneira que após a década de 1960 a expansão capitalista no campo, outrora de natureza espacial menos intensa ou, quiçá, mais regionalizada, vai acompanhar e, por vezes, superar, as taxas de crescimento industrial e a de serviços.

A expansão do crescimento da economia agropecuária e florestal brasileira, assim como seu ajuste para dar conta dos interesses dos setores dominantes exportadores, no âmbito mais geral da exploração econômica dos recursos naturais, amplo senso, acentuou a elevação do processo de exportação de produtos de origem primária da economia.

Essa primarização das exportações brasileiras, além de demarcar o padrão historicamente dependente do capital estrangeiro na divisão internacional do trabalho, acentuou o processo de exportação continuada de produtos de origem primária, redefinindo de maneira marcante a composição das classes sociais no campo no Brasil, assim como a forma de apropriação, uso e espoliação da natureza.

O crescimento da economia agropecuária e florestal consolidou, ademais, entre outras dimensões, o culto apologético do agronegócio (grandes empresas capitalistas) acompanhado da lógica dominante da negação explícita do campesinato. E, como corolário, acentuou as concepções e ações governamentais de contra-reforma agrária. Essa sacralização do agronegócio a qualquer custo, presente de forma indelével pela concepção de mundo dominante, facilitou, sobretudo, a intencionalidade e indiferença social e ambiental na exploração dos trabalhadores rurais e no uso e degradação dos recursos naturais do país.

Essa concepção e postura política dominantes direcionaram a nova fase de atualização histórica do desenvolvimento das forças produtivas das grandes empresas capitalistas do agronegócio no país, como a exclusão das sementes crioulas do processo produtivo e a incorporação de cima para baixo da biotecnologia transgênica; a mecanização intensiva e a automação; a terceirização na prestação de serviços de rotina e a gestão terceirizada das grandes empresas agropecuárias e florestais; a abertura societária dessas empresas, assim como da agroindústria, ao capital estrangeiro, etc.

Pode-se sugerir que essa nova fase do desenvolvimento das forças produtivas se acentuou no contexto histórico da globalização mundial neoliberal após meados da década de 1980 pela adoção pela burguesia agrária de outro modelo de agricultura para o país. Isso significou, ademais, não apenas a reedição das formas de modernização do latifúndio já consagradas na década de 1960, mas, sobretudo, a aceitação e incorporação massiva das concepções internacionais dominantes de agricultura capital-intensiva dependente do capital estrangeiro e agroexportadora, incorporando as novas e as renovadas tecnologias que foram acrescidas ao saber dominante pelos avanços científicos e tecnológicos das forças produtivas mundiais.

Essa nova onda modernizadora reforçou a tendência histórica de desnacionalizações das empresas capitalistas nacionais e acentuou a dependência da economia e cultura nacionais ao capital estrangeiro com a facilitação da apropriação privada dos recursos naturais pelos capitais estrangeiros e multinacionais.

Nessa dinâmica do crescimento econômico ficaram mais bem delimitadas as classes sociais, os povos tradicionais e as etnias no campo, destacando-se as três classes sociais básicas (já delimitadas e ou em construção) de maior referência ou importância política: a) a classe dominante constituída pelas frações da burguesia[2] (burguesia agrária nacional e estrangeira) com domínio e posse dos recursos naturais no campo, com o controle das exportações do país e definindo o padrão da geração, incorporação e adoção de tecnológicas de origem das empresas multinacionais; b) as classes dominadas e subalternas como os assalariados rurais (assalariados rurais permanentes, temporários e os sem-terra), os campesinatos na sua ampla diversidade (agricultores familiares proprietários de terra, os povos tradicionais, arrendatários não capitalistas, parceiros, posseiros e ocupantes, ribeirinhos, povos indígenas camponeizados, quilombolas, extrativistas…); c) os pequenos e médios comerciantes e fornecedores de serviços diretamente instalados[3] no campo.

Essas classes sociais (e os povos e etnias) — suas frações e estratos de classes, diretamente integradas no processo de produção rural estrito senso que constituem a principal parte direta da formação econômica e social brasileira no campo, apresentam contradições de interesses entre si, sejam aquelas explicitadas nos conflitos intra-classe e, sobretudo, nos conflitos sociais entre classes sociais. Sem dúvida alguma, como ressaltado nas notas de rodapé 1 e 2 anteriores [no final], os diversos setores do capital (financeiro, industrial, comercial e agrário) atuam direta e indiretamente na definição das estratégias globais da agricultura. No entanto, para fins desta reflexão sobre as classes sociais no campo, estou considerando apenas, ainda que de maneira insuficiente, aquelas classes sociais que pela sua inserção direta e visível no campo são responsáveis pelos conflitos sociais que aí se verificam. Não tenho dúvida alguma de que as classes sociais em luta de classes no campo são muito mais abrangentes do que as aqui consideradas.

Conflitos e debilidade da lutas de classes

Apesar se de verificar inúmeros conflitos[4] nos seus mais distintos tipos no campo[5], é possível se sugerir que o estágio atual da luta de classes no campo é débil devido, possivelmente, a alguns fatores, tais como:

×         a consistente dominação e hegemonia (direção intelectual e moral da sociedade) exercidas pela burguesia agrária com relação à vigência do modelo de produção agrário dominante;

×         a insuficiente organização e mobilização política para a luta de classes dos assalariados rurais, apesar da elevada exploração da sua força de trabalho;

×         a forte dispersão de interesses entre os camponeses, na sua ampla diversidade, limitando a unidade entre eles nas lutas sociais;

×         a ausência de posturas político-ideológicas explicitas de luta de classes, seja no nível da consciência das classes subalternas no campo (e nas cidades), seja naquela classe social em construção representada amplo senso pelos campesinatos.

O conflito social de classe pode permanecer latente numa sociedade de classes. Por vezes, em conjunturas determinadas, ele se manifesta explicitamente. Nessas ocasiões, em geral, os governos desempenham seu papel de ‘intelectual orgânico das classes dominantes’ e mediam os conflitos entre os interesses de classe que ocorrem. E nos conflitos onde se observa maior agudização das lutas sociais, reprimem os movimentos e ou organizações dirigentes das classes subalternas a favor da prevalência dos interesses de classe das classes dominantes.

Os conflitos sociais no campo, mesmo que pontuais, já demonstram a natureza das contradições de interesses de classe em presença entre a burguesia agrária e os trabalhadores rurais assalariados e entre a burguesia agrária e os camponeses, sendo que esta última tem sido a contradição que tem gerado maior número de conflitos sociais no campo, conforme citado anteriormente [no final] na nota de rodapé 6.

Há muitas contradições sociais esparsas no campo, ainda que a contradição principal no meu entender e na conjuntura contemporânea é aquela estabelecida entre o campesinato e as empresas capitalistas, mesmo que esta contradição não esteja explícita no nível da consciência política da maioria dos camponeses.

Porém, o fato de existirem contradições sociais não significa necessariamente que ocorrerão lutas sociais de classes, esta permanecendo apenas no nível da resistência social e enfrentamentos motivados, de maneira predominante, pelas mobilizações sociais para as reivindicações políticas relacionadas ora com a precariedade das políticas públicas ora com o protesto social de denúncia.

Isso se deve, entre outros fatores, à ainda débil consciência de classe social dos assalariados rurais e do campesinato em função das práticas políticas das instituições de mediação (movimentos e organizações sociais e sindicais populares) que tendem para a negociação objetivando a conciliação de classes e a negociação com os governos objetivando alcançar políticas públicas favoráveis aos assalariados e camponeses.

No campo, os conflitos sociais são, na sua maioria (conforme definido na nota de rodapé 3, anterior), ações de resistência social e de enfrentamentos contra as forças públicas da repressão policial-militar, logo, reações às ações da burguesia consideradas pelos camponeses como violação de seus direitos. Outras, como as lutas sociais dos trabalhadores rurais sem terra, têm como objetivos estratégicos a realização de mudanças estruturais na posse e uso da terra, negando assim as formas históricas e as atuais de apropriação privada da natureza, nela a terra, pelos grandes grupos privados nacionais e multinacionais.

A natureza das lutas sociais realizadas pelos trabalhadores rurais sem terra adquire, então, outro caráter. Ainda que sempre se iniciem pela reivindicação para que os governos realizem reforma agrária nos mais distintos contextos sociais e regionais do país, a implantação de mudanças estruturais na posse e uso das terras agricultáveis no campo tem sido negada pelas classes dominantes. E os governos, como são orgânicos aos interesses de classe das classes dominantes, não têm a vontade política nem o consentimento para tal iniciativa. Dessa maneira as possibilidades de concretização da reforma agrária têm sido sempre adiada ou tratada apenas como uma política pública de assentamentos para os trabalhadores rurais sem terra. Nos últimos anos foi retirada da agenda política governamental e contemporizada pelos movimentos e organizações sociais dos sem terra.

A racionalidade dominante pressupõe que os interesses de classe expressos na atual estrutura fundiária do país e representada nas grandes empresas capitalistas são os alicerces rurais da economia burguesa e, portanto, inalteráveis. Aos trabalhadores assalariados, aos povos tradicionais, aos trabalhadores rurais em luta pela terra e aos extrativistas lhes restam, segundo a concepção hegemônica, apenas a reivindicação e o protesto que conduza à negociação com os usurpadores diretos e indiretos de seus legados.

O próprio modelo de agricultura dominante é a expressão da dominação burguesa sobre as concepções de mundo de produção agrícola dos camponeses. Essa dominação burguesa no campo, rebuçada de ideologia neoliberal, nega explicitamente não apenas a socialização da posse e uso da terra como considera os camponeses e suas propostas de modelos de produção baseados na agroecologia, como uma negação da modernidade e um retorno ao obscurantismo de um passado remoto.

Nessa perspectiva é possível se compreender por que, apesar das contradições de interesses de classe, parcela relevante dos camponeses, ainda que vivenciando um modo de viver e de produzir muito diferente daquela praticado pelas empresas capitalistas no campo, não conseguem, ou têm dificuldades, de formular uma concepção de mundo diferente da dominante que não seja a da negação da empresa capitalista. Isso significa que nessa negação deveria constar a negação do próprio modo de produção capitalista.

A superação do consentimento pelas classes populares no campo

Minha sugestão é de que as possibilidades efetivas de luta de classes no campo nos diferentes níveis (econômico, político e ideológico) ainda são incipientes, apesar da presença de numerosos conflitos sociais localizados. Isso se deve, além do que já explicitamos anteriormente, à inexistência de um projeto de construção de uma nova realidade no campo (outro modelo de produção), considerando-se que aquele sugerido pelas lutas sociais a favor da reforma agrária mantém-se no âmbito da sociedade capitalista. Esta reforma, assim como diversas outras, é importante pela dinâmica social que poderá desenvolver e pelas oportunidades de acentuação das lutas sociais de classe que nesse processo poderão emergir.

No entanto, a falta de um referencial para a ação tática que acumule forças no sentido de se provocar mudanças estruturais estratégicas no campo contribui para um debilitamento da mobilização popular a favor de outro projeto de sociedade. E, além disso, diversos setores de esquerda política no país ainda se mantêm com dúvidas sobre o que propor como mudanças estruturais para o campo.

Isso é devido às dificuldades que foram enfrentadas por parte considerável das experiências de mudanças sociais no campo nos países que vivenciaram o socialismo real, e porque tais setores da esquerda política não considerarem como opção alternativa a esse tipo de mudança social de negação das formas de empresa capitalista um modo de produção socialista no campo sob a hegemonia dos camponeses.

Num outro sentido, as instituições políticas de mediação de interesses dos camponeses vivenciam contradições políticas internas ao se colocarem entre dois pólos distintos: a tendência política de centro-esquerda de conciliação pelo alto com a burguesia e aquelas que defendem o enfrentamento político de classes.

Não há dúvidas de que os camponeses têm se confrontado com dificuldades para construírem propostas que poderiam se tornar referenciais para um novo modelo de produção no campo. A dependência crônica das instituições de mediação dos interesses populares no campo em relação aos recursos públicos se constitui num freio para que a ousadia potencial dessas organizações e movimentos sociais e sindicais se revele nos enfrentamentos contra as políticas de consentimento e subalternidade perante as classes dominantes concebidas pelos governos.

Sem dúvida alguma que a correlação de forças políticas é desfavorável. Todavia, é possível se supor que essa correlação desfavorável tem como uma das suas causas a ausência de propostas efetivas por parte dos setores populares progressistas no campo que avancem além da proposta de reforma agrária popular.

Essa debilidade na formulação de propostas estruturais mais contundentes para o campo se deve a diversos fatores, entre os quais assinalo os seguintes:

×         É muito forte a hegemonia da empresa capitalista no campo, assim como os referenciais de progresso técnico e econômicos vigentes apoiados nos valores burgueses de lucros sem restrições;

×         Ao mesmo tempo é crescente a concentração da renda e da riqueza pela burguesia (lucro extraordinário e apropriação privada dos recursos naturais), a qual conta com o apoio dos governos e dos demais aparelhos do Estado;

×         O uso predatório das áreas de apropriação privada dos recursos naturais é prática comum das classes dominantes e tolerada pelos governos como um sinônimo de expansão capitalista desejável porque supostamente desenvolvimentista;

×         Torna-se, então, crescente a mercantilização dos recursos naturais e das tecnologias de artificialização da agricultura, assim como a presença ativa do capital estrangeiro associado a setores da burguesia nacional afirmando o perfil da produção dominante como agroexportador e importador da maior parte dos insumos;

×         E, como corolário dessas atitudes dominantes, é explícita a rejeição pela burguesia agrária da possibilidade dos camponeses se tornarem sujeitos sociais ativos e construtivos.

Nesse contexto é possível se aventar que as instituições da sociedade política (governos e aparelhos de regulação do mercado e os de repressão política) e amplas parcelas da sociedade civil (partidos, movimentos e organizações sociais e sindicais, religiões, meios de comunicação de massa, escolas, universidades, livros didáticos…) afirmem apoio e ou sejam passivas perante as tendências liberais favoráveis às concepções do modo de produção capitalista. Isso significa objetivamente uma acomodação geral da sociedade, talvez por falta de propostas de mudanças sociais estruturais que sejam capazes de motivarem e mobilizarem diversos setores da sociedade para ações concretas de mudanças do modo de produção dominante.

As instituições e tendências políticas de centro-esquerda permanecem, como sugerimos anteriormente, em dúvida política com relação ao papel do campesinato num processo de mudanças estruturais da sociedade brasileira. Essa dúvida é potencializada pelos meios de comunicação de massa que enaltecem no cotidiano as empresas do agronegócio como se não houvesse outra possibilidade para o desenvolvimento democrático no campo além da proposta e práticas dominantes de concentração da terra, da renda e da riqueza aliadas a uma indiferença explícita pela questão social e ambiental.

A desigualdade social sempre presente na formação econômica e social brasileira, ainda que tenha sido discretamente reduzida nos últimos anos, é então supostamente minimizada porque os mais pobres têm sido agraciados com programas governamentais compensatórios que distribuem recursos financeiros propiciando que essa numerosa parcela da população brasileira melhore a sua qualidade de vida. No entanto, ao não se equacionar a tendência da concentração da renda e da riqueza no país, os mais pobres, mesmo com qualidade de vida melhor, continuarão a ser continuadamente os mais pobres, só que agora com uma defasagem mais acentuada entre as classes de renda mais altas e aquelas com rendas mais baixas. A manutenção da concentração de terras no campo contribui para essa desigualdade social.

Os numerosos conflitos sociais no campo evidenciam que as tendências dominantes de apropriação privada dos recursos naturais e das terras dos camponeses seguem a lógica de que somente a empresa privada capitalista poderá ser viável economicamente. Isso pressupõe, devido à limitada disponibilidade nacional e mundial de terras agricultáveis, que a crescente luta das classes dominantes pela apropriação dessas terras, independentemente de estarem ocupadas por camponeses, por povos tradicionais e ou como reservas ambientais sob controle social, seguirá em frente mesmo se prevendo um crescimento do número de conflitos sociais gerados que essa prática arbitrária dominante.

Nesse sentido, a afirmação estratégica corrente em setores políticos de centro-esquerda de que a luta de classes para um processo de mudanças estruturais profundas partirá das cidades, ainda que positiva, na maior parte das vezes, tende a menosprezar ou a obscurecer a importância política das lutas de classes no campo, apesar do elevado número de conflitos sociais ali registrados.

Ficam então muito limitadas as possibilidades e exigências de apoio explícito dos setores progressistas urbanos para com as lutas da classe trabalhadora do campo, mais ainda se estes não explicitarem os projetos de sociedade que estão construindo na sua luta contra as empresas capitalistas para alterarem a correlação de forças sociais no sentido de uma democratização da posse e uso da terra agricultável.

Progresso técnico e desigualdade social

Numa sociedade onde é hegemônica tanto a concepção de mundo capitalista como os valores que lhe correspondem, mais ainda numa fase econômica oligopolista e politicamente imperialista no nível mundial, o progresso técnico relacionado com a produção na agricultura é predominantemente pautado, entre outras dimensões, pela artificialização da agricultura e, portanto, com tendência à sua ‘estandartização’.

Nesse contexto o perfil da demanda dos produtos do campo, assim como os sistemas de produção e de utilização de insumos, tende a ser determinado pelas concepções de produção agropecuária e florestal oriundas dos intelectuais orgânicos ao capital das indústrias nacionais e estrangeiras.

Esse modelo de produção é intrínseco e necessário para a reprodução da acumulação capitalista baseada na exploração do trabalho, na oligopolização da oferta de insumos e produtos e no monopólio da apropriação privada dos recursos naturais.  Tal modelo de produção capitalista dominante não apenas subordina o campesinato aos seus interesses de classe como determina os rumos estratégicos das instituições de pesquisa e experimentação agrícolas, sejam as públicas ou as privadas.

Decorre daí a opção política estratégica do Estado de apoio técnico-científico ao agronegócio, de oferecer garantias à  propriedade privada intelectual, de efetivação de acordos de parceria entre as instituições públicas de pesquisa e geração de tecnologias com as empresas transnacionais de caráter monopolista (tal como a pesquisa a partir dos organismos geneticamente modificados), de propiciar facilidades para a exportação de produtos primários ‘in natura’, etc.

A hegemonia das classes dominantes com relação à inovação tecnológica torna mais crítico e desigual o acesso dos camponeses a recursos públicos, à criação de sistemas de informação apropriados à sua inserção produtiva, à capacitação e à assistência técnica, assim como a sua participação nos mercados, todos esses fatores dependentes da concepção de mundo dominante.

Para dar conta do enfrentamento necessário à hegemonia das tecnologias que constituem o modelo de produção agrícola capitalistas, diversas iniciativas têm sido desenvolvidas de maneira a se contrapor à lógica da industrialização e estandartização da agricultura brasileira.

Diversas alternativas tecnológicas, assim como diversas organizações públicas e privadas, têm se dedicado à elaboração (pesquisas, estudos e experimentações) de tecnologias, assim como concepções epistemológicas que as geram cientificamente, de forma a propiciarem que os processos antrópicos se realizem numa relação harmoniosa entre os homens e a natureza. São processos de pesquisa, de geração de conhecimentos e de tecnologias, assim como práticas produtivas e de manejo da vida na natureza, que se compreende e se denominam como as agroecologias.

Nessa perspectiva, os camponeses poderão ampliar suas possibilidades de realização produtiva sem necessariamente se subalternizarem à concepção de agricultura determinada pelas modelo de produção capitalista.

Pode-se sugerir, então, que no âmbito das tecnologias de produção agropecuária e florestal, entre outras, dois modelos tecnológicos se confrontam de tal maneira antagônica que a concepção de um nega a do outro: artificialização e industrialização da agricultura versus a agricultura agroecológica.

Duas racionalidades em confronto.

As idéias aqui expostas se baseiam na tese de que existe de fato uma especificidade camponesa, distinta e contrária àquela imanente à empresa capitalista no campo onde o lucro, a exploração dos trabalhadores e a artificialização da agricultura são elementos estratégicos e imprescindíveis da sua concepção e realização.

Os camponeses, na sua práxis social, ao afirmarem a sua própria especificidade estão diretamente negando a lógica do capital que tem no lucro e na acumulação de riqueza o único sentido de ser. Os camponeses vivenciam, portanto, outra concepção de mundo muito diferente daquela que é determinada pelas relações sociais de produção capitalista. E isso é intolerável pelas classes dominantes burguesas.

Os padrões atuais de acumulação produzem níveis elevados de desemprego urbano e rural. A falta de renda e de perspectivas, a fome e outras formas de privação estão entre os vários resultados que podem ser sintetizados como a condição de marginalidade. Do meu ponto de vista, parece que, na maioria dos continentes, existe apenas um só mecanismo adequado para lidar com essa condição de marginalidade e superá-la. Esse mecanismo consiste na ampliação do número de camponeses e em criar condições de gestão do desenvolvimento rural e agrícola pelos camponeses (…)”[6]

As diferenças entre as concepções de mundo do modo como os camponeses produzem, apesar da sua imensa diversidade, é muito distinta do modo de produção capitalista. Algumas dessas diferenças podem ser assim percebidas:

a)      Os camponeses buscam a produção interna da maior parte dos produtos para seu próprio consumo familiar, vendendo para os mercados apenas parte ou apenas alguns dos produtos produzidos, mantendo uma interação harmoniosa com a natureza. As empresas capitalistas só produzem produtos para os mercados, utilizando a natureza apenas como um recurso econômico a ser intensivamente explorado exaurindo suas possibilidades e potencialidades naturais.

b)      Nessa perspectiva os camponeses objetivam manter uma convivência harmoniosa com a natureza para garantir e melhorar as condições naturais do espaço que ocupam. Produzem internamente parte considerável dos insumos que necessitam, privilegiando os insumos orgânicos. Por outro lado, na racionalidade dos capitalistas, predomina a tendência crescente, independente da escala de produção, de artificialização e estandartização da agricultura através da utilização massiva dos insumos de origem industrial.

c)      Os camponeses buscam a diversificação da produção para ampliar o número de fontes de rendimentos agrícolas a fim de reduzir os riscos como conseqüência das oscilações nos mercados locais e regionais e otimizar as condições de produção oferecidas pela própria natureza. As empresas capitalistas tendem à produção em grande escala e especializada, em geral de produtos para a exportação, podendo negociar nas bolsas de mercadorias e futuros.

d)     A vida familiar dos camponeses está diretamente envolvida com a obtenção de meios de vida e de trabalho para garantirem diretamente a reprodução social da família. Nessa perspectiva, na sua maioria, as famílias camponesas se inserem e dependem dessa socialização em contextos comunitários onde estabelecem relações sociais de diferentes naturezas, constituindo laços de vizinhança, parentesco e compadrio que perduram por diversas gerações. Mantém ou pelos menos tentam garantir a continuidade de vínculos sejam com a comunidade sejam com seus locais de enraizamento entre passado, presente e futuro. Já os empresários capitalistas consideram as suas empresas agropecuárias e florestais apenas como negócio onde o critério de permanência ou não naquela localidade ou região é determinado apenas pela taxa média de lucro obtido.

A racionalidade camponesa com relação à inovação tecnológica, quando não sujeita inteiramente à lógica capitalista de produção devido à hegemonia exercida pelos valores éticos e políticos das classes dominantes, muitas vezes expressos pela moda, é frontalmente contrária a essa tendência de artificialização e estandartização da agricultura. O discurso da neutralidade científica e da geração e disseminação de novas tecnologias, que os intelectuais orgânicos do capitalismo desejam torná-los [tornar] universais, torna-se um mito. A geração de conhecimentos e de tecnologias é marcada pelo caráter dos interesses de classe social, não havendo, ou muito pouco, isenção política e ideológica na própria tecnologia gerada. Desejo afirmar com isso que a própria tecnologia é portadora de ideologia.

(…) Não se pode ignorar que a ciência é ao mesmo tempo um poder material e espiritual. Não é essa procura desinteressada de uma verdade absoluta, racional e universal, independente do tempo e do espaço, que se distinguiria dos outros modos de conhecimento pela objetividade de seus teoremas, pela universalidade de suas leis e pela racionalidade de seus resultados experimentais, cuidadosamente estabelecidos e verificados, e, portanto, eficazes. A produção científica se faz numa sociedade determinada que condiciona seus objetivos, seus agentes e seu modo de funcionamento. É profundamente marcada pela cultura em que se insere (…)”[7]

Numa sociedade de classes a tecnologia é produto dos interesses da classe dominante no processo de reprodução concorrencial das empresas. No caso particular da produção agrícola, a tecnologia predominantemente ofertada traz implícita a negação da unidade camponesa de produção. Isso se torna bem claro na Missão e Atuação[8] da Embrapa, por exemplo, quando afirma que: “(…) programas de pesquisa específicos conseguiram organizar tecnologias e sistemas de produção para aumentar a eficiência da agricultura familiar e incorporar pequenos produtores no agronegócio, garantindo melhoria na sua renda e bem-estar.”

Num sentido distinto e talvez oposto a essa tendência dominante, o desenvolvimento empírico e os aportes técnico-científicos identificados com a autonomia camponesa perante o capital têm conduzido suas práticas agrícolas (amplo senso) a uma relação construtiva homem-natureza. Essa vertente de geração de tecnologias e seu paradigma de pesquisa constam dos fundamentos da agroecologia e demais tendências de geração de tecnologias apropriadas aos ecossistemas.

Não é em demasia repetir que a racionalidade ou lógica de produção camponesa é contrária, e na maior parte das vezes antagônica, à racionalidade capitalista de produção.

Como decorrência dessa lógica as tecnologias utilizadas pelos camponeses deveriam ser apropriadas[9] ao seu modo de produzir, o que implicaria que a geração de tecnologias deveria ser orgânica aos seus interesses de classe e de sua reprodução social como camponeses, e não sob as concepções supostamente distintas oferecidas para a pequena burguesia agrária.

Ora, essa premissa exigiria a presença teórico-prática de um projeto histórico para o campo que desse conta das perspectivas de realização do campesinato no Brasil. Projeto esse que não temos.

Essa ausência de um projeto histórico para o campo facilita a reprodução da hegemonia capitalista. E traz conseqüências significativas inclusive para as formas como se adota tecnologias apropriadas. Estas tenderiam, então, nesse contexto, a se constituírem não numa negação da lógica de produção capitalistas, mas apenas em alternativas tecnológicas.

Eu suponho que tanto a agroecologia como outras abordagens tecnológicas que facilitam a concretização de uma ação antrópica capaz de minimizarem e, por vezes, potencializarem a reprodução da vida social na natureza, sejam mais do que tecnologias: se afirmem como uma maneira criativa e harmoniosa da relação homem-natureza no âmbito geral de uma concepção de mundo muito distinta daquela que define os valores da empresa capitalista de produção.

Nesse contexto histórico, a formação de pesquisadores comprometidos com a reprodução social autônoma do campesinato, respeitada a sua especificidade e limitações numa formação econômica e social hegemonizada pelo modo de produção capitalista, deveria contribuir para a construção continuada de um projeto para o campo no país, além de fornecer as informações empíricas e as recomendações teóricas que possam resultar dessa prática produção e reprodução de conhecimentos.

Portanto, a formação de camponeses deve assumir plenamente uma postura favorável à luta contra a hegemonia do capital no campo, o que implicaria na proposição estratégica de outra formação econômica e social para o país.

——–000——–

*Este é um texto ampliado das notas de exposição do autor no III Seminário Nacional “O MST e a Pesquisa”, realizado de 8 a 10 de maio 2014 na Escola Nacional Florestan Fernandes – ENFF, do MST, em Guararema, SP.

[1]Ver Carvalho, Horacio Martins (2012). O campesinato contemporâneo como modo de produção e como classe social. Curitiba, março, mimeo 43 p.

[2]Não incluí diretamente nesta tipologia simplificada das classes sociais do campo o capital financeiro, devido ao seu caráter universal e não apenas agrário, ainda que com papel decisivo nas definições estratégicas do crescimento rural.

[3] As empresas nacionais e multinacionais de compra e venda de produtos e insumos para agricultura, amplo senso, se comportam de maneira similar ao capital financeiro: são fornecedores para diversos setores da economia em várias partes do mundo, sendo a agricultura apenas um dos setores dos seus negócios.

[4]“Conflitos: são as ações de resistência e enfrentamentos que acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Esses conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas”, in CPT, Conflitos no campo no Brasil 2013, p.10.

[5] Conforme a Comissão Pastoral da Terra – CPT, em Conflitos no campo no Brasil 2013 se registrou: conflitos por terra, ocupações/retomadas, acampamentos, trabalho escravo e superexploração; conflitos pela água, conflitos em tempos de seca, tendo se verificado no total, em 2013, 1266 conflitos envolvendo 573.118 pessoas.

[6]Ploeg, Jan Douwe van der (2008). Camponeses e impérios alimentares. Lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora da UFRGS, p.10

[7]Japiassu, Milton. (1975). O mito da neutralidade científica. Rio de janeiro, Imago editora Ltda, p.11

[8] Site da EMBRAPA. http://www.embrapa.gov.br/a_embrapa/missao_e_atuacao (acesso 15/12/2010, 08:00 horas)

[9] Ver Carvalho, Horacio Martins (1982). “Tecnologia socialmente apropriada. Muito além da questão semântica. Londrina”, IAPAR, agosto, 36 p.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.