Maria Helena Versiani: “O campo político é um campo de lutas, sempre em aberto para os interesses em conflito”

Correio Político

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Os 20 anos da Constituição foram comemorados com milhares de eventos, Brasil afora. Um deles foi organizado por Maria Helena Versiani no Museu da República, Rio de Janeiro. A exposição “Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão” envolvia não só todas as charges de Henfil a respeito, cedidas exclusivamente para a mostra, como objetos, documentos, vídeos, fotos e cartazes do acervo do Museu. Entre esses, um material especial – as cartas enviadas para os constituintes por pessoas do povo, que assim buscavam exercer sua cidadania.

Na ocasião, em 2008, já estava claro que a ‘organizadora’ se apaixonara pelo objeto central da mostra. O que ela própria chama de seus “primeiros assombros com as cartas que compõem a Coleção Memória da Constituinte” não se restringiria à forma como recebia os/as visitantes, buscando documentar inclusive suas reações por escrito. A sequência seria, pois, um mergulho ainda mais fundo no acervo, resultando num livro que será lançado amanhã, a partir das 18:30 horas, no mesmo Museu da República – Correio Político: os brasileiros escrevem a democracia (1985-1988). 

Na entrevista abaixo, feita por e-mail, Maria Helena Versiani fala sobre o conteúdo dessas cartas, as pessoas que as escreveram e o que isso nos mostra com relação a um momento histórico no qual o Brasil atingia um clímax de participação política efetiva, que talvez esteja sendo retomada a partir dos movimentos de junho do ano passado. Como ela diz, “Pode-se dizer que essas cartas desmistificam a ideia, de longa tradição no pensamento político brasileiro, de que o povo é politicamente desinteressado, passivo, incapaz para a tarefa de pensar a organização da vida em sociedade”. 

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TP – Quando você organizou a exposição de 2008, recordo que estava totalmente apaixonada pelo material contido nas cartas. Mas já havia a ideia de partir para o livro, ou isso veio depois?

MHV – Não pensava em livro não. A ideia inicial era mergulhar na leitura das cartas. Fiquei muito interessada e curiosa – quando fizemos a exposição para marcar os vinte anos da “Constituição Cidadã” -, com a riqueza dos registros reunidos na Coleção Memória da Constituinte (preservada no Museu da República). Principalmente, me chamou muita atenção o conjunto de cartas escritas às autoridades públicas pelas chamadas “pessoas comuns”, com sugestões, pedidos, críticas e comentários sobre a Constituinte. Muitos entre aqueles missivistas mal sabiam escrever e, sabemos, não é muito recorrente encontrar registros escritos, arquivados, de autoria de pessoas que não escrevem dentro de um padrão reconhecido como “escrita culta” – padrão este que expressa um determinado desenvolvimento no exercício da escrita muito pouco representativo das sociabilidades desenvolvidas por grande parte dos grupos sociais.

O pouco domínio da escrita prestigiada, contudo, é importante observar, não impediu esses missivistas de escrever às autoridades públicas para expor suas vivências e reclamar seus direitos, naquele momento de redemocratização. Nas cartas, eles se referem à realidade política do país tendo por base o seu vivido cotidiano. É a vivência dos problemas e das necessidades do dia a dia que proporciona a esses missivistas o seu entendimento político. A vida cotidiana é reconhecida como um elemento do fazer político. E, se a experiência do dia a dia é assumida como parâmetro para pensar a política, então a política é percebida como algo que tem relação como o cotidiano das pessoas e que está ao alcance de seu entendimento e julgamento.

Pode-se dizer que essas cartas desmistificam a ideia, de longa tradição no pensamento político brasileiro, de que o povo é politicamente desinteressado, passivo, incapaz para a tarefa de pensar a organização da vida em sociedade. Uma perspectiva elitista, mas com longa tradição no Brasil, segundo a qual o poder político deve ser privilégio de uma elite “educada” para realizar as complexas tarefas que a gestão pública impõe. E essa elite, obviamente, seria os próprios defensores dessa ideia.

Ao contrário, as cartas selecionadas nesse livro dão voz a pessoas que não necessariamente desfrutam de uma boa “instrução formal”, nem se distinguem socialmente ou politicamente, mas, com base em suas próprias experiências cotidianas, elas expressam visões de mundo e valores políticos próprios às suas maneiras de sentir e pensar. O seu pouco prestígio político e intelectual não diminui em nada a importância de suas experiências e de suas percepções sobre a sociedade brasileira. Fiquei entusiasmada com o acervo e decidi não adiar: fiz um projeto de doutorado, enviei para o CPDOC e é o resultado dessa pesquisa (orientada pela professora Ângela de Castro Gomes) que agora está sendo publicada, com o apoio financeiro da Faperj.

Maria Helena Versiani

TP – Uma informação preciosa que você omite na Introdução é quanto ao universo de cartas com as quais trabalhou. Afinal, quantas foram? Há algum tipo de especificidade que demarque diferenças relevantes entre elas?

MHV – O volume de cartas enviadas pela população às autoridades políticas à época da Constituinte foi bem expressivo. Só na Câmara Federal, por exemplo, há uma base de dados, chamada Saic – Sistema de Apoio Informático à Constituinte, que reproduz textos de mais de setenta mil cartas.

Eu trabalhei especificamente com cartas reunidas na Coleção Memória da Constituinte, que somam 5.245 cartas. Esse conjunto total inclui cartas pessoais, mas também cartas de diversas instituições da sociedade civil e de vários movimentos sociais, que muito provavelmente enviaram cartas às autoridades como parte de uma estratégia política maior, que envolvia outras ações além do envio das cartas.

Optei, nesse trabalho, por analisar somente as cartas de pessoas que, naquele momento de reconstitucionalização, tomaram a iniciativa de escrever diretamente às autoridades, independentemente de quaisquer vínculos profissionais, pessoais ou de militância política e que, portanto, provavelmente não contaram com a estrutura de apoio material e logístico que, à época, vários movimentos sociais ofereciam para quem desejasse enviar cartas às autoridades.

O conjunto selecionado inclui cartas de todas as regiões brasileiras, o que mostra que o envio de cartas, naquele momento, era uma iniciativa disseminada por todo o país, envolvendo pessoas que experimentavam tipos diferentes de inserção territorial.

Inclui também todo o período de abrangência das cartas do acervo, compreendido entre os anos de 1985 (ano da convocação formal da Assembleia Nacional Constituinte pelo então presidente da República, José Sarney) e 1988 (ano da promulgação da nova Constituição), e a totalidade das cartas no que se refere aos seus destinatários.

Outra opção foi selecionar apenas as cartas escritas nos suportes que chamamos de “papel de carta” (que incluem folhas de papel em branco diversas e alguns suportes incomuns, como papel de pão, marcador de livro e “santinhos”). Assim, não foram contempladas as cartas enviadas por meio digital ou escritas em formulários impressos (à época colocados à disposição do público, por diferentes grupos sociais, visando estimular a participação de todos na Constituinte).

Declinamos também de analisar as cartas enviadas em papel timbrado, que sugerem algum tipo de vínculo ou representação profissional do missivista, e os telegrama e telex, que são correspondências que não demandam que o próprio missivista realize a escrita de seu texto, além de restringirem o espaço disponível para a mensagem. Ou seja, privilegiamos a análise das cartas escritas por iniciativa estritamente individual e que possuem o número de páginas que pareceu o mais conveniente aos missivistas para a expressão de suas ideias.

Optamos, ainda, por selecionar somente as cartas manuscritas do acervo, apostando que os missivistas se “dão mais a ver” quando expõem sua caligrafia. Tais cartas são muitas vezes de leitura mais difícil, mas permitem observar a forma própria e singular de escrita do missivista. Sabemos que a forma de uma caligrafia existe em articulação com os contextos sócio-históricos em que ela é produzida, de modo que, em geral, diferenças nas formas pessoais de escrita refletem diferenças nas condições concretas de vida dos indivíduos, relacionadas com sua formação educacional, suas experiências e relações cotidianas etc. Basicamente, o recorte das cartas manuscritas considerou uma possibilidade de aproximação com missivistas.

A partir da combinação de todas essas variáveis, ao final foi selecionado um conjunto de 424 cartas.

Deve-se considerar ainda que, se a amostra de 424 cartas representa um percentual pequeno com relação ao total de 5.245 cartas da Coleção, ela por outro lado é expressão de perspectivas e valores consolidados socialmente, que encontravam lugar no universo das relações sociais vivenciadas pela população brasileira nos anos 1980.

Ou seja, essas cartas foram analisadas como parte de um determinado ambiente cultural. Como textos portadores de sentidos que são mais ou menos valorizados culturalmente e que traduzem perspectivas mais amplas presentes na sociedade em que foram produzidos, auxiliando para o entendimento dessa sociedade.

TP – Você comenta a importância do não envolvimento, mas não houve uma ou mais cartas que te tocaram particularmente? Como e por quê?

MHV – É verdade que o risco de analisar cartas pessoais e envolver-se de modo especial é grande, porque são textos carregados de “humanidade”, sentimento, paixões, histórias de vida. É preciso disciplina e estar metodologicamente instrumentalizado para lidar criticamente com eles, sem sucumbir às projeções, empatias e aversões.

Além disso, cartas pessoais são textos que exibem uma multiplicidade de intenções, mostrando que é difícil estabelecer limites rígidos entre o que seja, por exemplo, um testemunho, uma defesa de ideias, um poema, a expressão de sentimentos, um desabafo, uma confissão e por aí vai. Uma leitura de cartas pessoais necessariamente leva o leitor para um lugar híbrido de intenções e assuntos, o que pode complexificar a sua análise. E os textos ainda brincam com o tempo, pulando alternadamente do passado para o presente e futuro, num jogo discursivo muito parecido com os modos como a gente pensa e conversa espontaneamente.

Houve sim, nesse trabalho, cartas que li e que me impressionaram por serem muito representativas de características presentes no conjunto como um todo. Não foi uma nem duas, mas algumas cartas que me pareceram bastante expressivas, por exemplo, em relação ao interesse participativo vivenciado naquele momento; ou aos recursos enunciativos usados para demonstrar respeito (ou não) em relação a uma autoridade política; ou à expressão de certas predisposições culturais e maneiras de vivenciar cotidianamente a cidadania; ou ainda à afirmação da autoridade do cidadão e do dever do representante político de representar os interesses populares, como uma prerrogativa da boa condução política do país.

Muitas cartas também subvertem regras protocolares (com textos escritos em diferentes ângulos, por exemplo), ainda que sem abandoná-las por completo e sem prejuízo para a compreensão de suas mensagens.

Todas essas características e muitas mais me chamaram a atenção, conformando maneiras de agir e estratégias de persuasão das autoridades políticas em relação a determinadas demandas e propostas. E isso no conjunto do acervo mais do que em uma carta isoladamente, embora algumas cartas me tocassem de um jeito especial, pela forma de dizer ou de expressar a desigualdade que tão profundamente marca as relações sociais em nosso país. Ou de expressar a esperança na construção de um novo Brasil, esperança sustentada na ideia de emancipação do povo e de reconhecimento de seus direitos.

TP – Uma curiosidade pessoal: a Constituição de 1988 traz um capítulo (infelizmente não respeitado de fato até hoje), o VIII, no qual os Povos Indígenas são tratados especificamente, nos artigos 231 e 232. No universo das cartas, há uma ou mais encaminhadas por eles? Ou por algum de seus parceiros? Se há, do que tratam?

MHV – Nas cartas analisadas no livro não há menção direta aos direitos dos povos indígenas. Porém, é preciso lembrar que essa ausência não corresponde a uma ausência do tema na Coleção Memória da Constituinte.

Há registros de muitas campanhas pelos direitos dos indígenas, incluindo fotos da presença vigilante de índios no Congresso Constituinte; cartazes e outros documentos. Muito provavelmente, existem cartas datilografadas ou digitadas que tratam da questão. Vem à minha cabeça, enquanto escrevo aqui, um belíssimo cartaz que faz referência à Semana do Índio, entre 19 e 26 de abril de 1988, reproduzido no livro.

De todo modo, não tenho dúvidas de que a ausência pontual dessa temática nas cartas analisadas no livro não representa um indicador de pouca abrangência das forças sociais que ela mobilizou. A amostra analisada aponta para aspectos presentes na sociedade, naquele momento, sem pretender e sem poder esgotar a totalidade das relações sociais então vivenciadas.

TP – Considerando o universo das cartas e o produto final, a Constituição, você faria uma avaliação de qual percentagem dos assuntos nelas abordados foi efetivamente considerada?

MHV – Não realizei, no livro, uma verificação sobre se e como as cartas enviadas às autoridades influenciaram a redação final da nova Constituição Federal. O meu esforço foi especificamente buscar identificar as orientações valorativas expressas nas cartas em torno do exercício da representação política e dos direitos de cidadania, entendendo que tais orientações balizaram a participação política daqueles missivistas.

Porém, as múltiplas manifestações e práticas políticas, no processo constituinte brasileiro de 1987/1988, congregaram muito mais do que simplesmente as personalidades públicas eleitas para a redação da nova Constituição.  A presença forte dos movimentos sociais, bem como a participação de setores populares, foi parte importante e luxuosa da elaboração da Constituição de 1988. Assim, a transição democrática brasileira e a Constituição Cidadã, bem como a ampliação dos direitos sociais nela inscritos, só podem ser bem compreendidas tendo-se em consideração as pressões dos movimentos sociais e da população em geral no âmbito da sociedade civil.

TP – Você menciona, na Introdução, um fato com o qual concordo plenamente: a Constituição de 1988 é o clímax de uma série de movimentos em ebulição na sociedade civil, que, com vitórias e derrotas, vão num crescendo, desde a luta contra a ditadura. No entanto, acho que, conquistada a ‘Constituição Cidadã’, acontece uma espécie de ‘ressaca’, que leva a uma razoável desmobilização. Você concorda com isso? 

MHV – De fato, a mobilização social na Constituinte foi surpreendente e inédita em relação aos processos constituintes anteriores do Brasil, inclusive ao pleitear a instituição formal de instrumentos jurídicos que garantissem o direito à participação dos cidadãos brasileiros nas decisões sobre os rumos políticos do país. A importância da participação popular na Constituinte era aclamada em campanhas por todo o país, como a condição maior para que se pudesse elaborar a Constituição de um Estado democrático.

Além disso, na Constituinte, importava não apenas participar da construção desse Estado democrático, em contraponto à ditadura instalada no país desde o golpe de 1964, mas importava também o “como” construir esse Estado. Os instrumentos jurídicos e todos os passos nesse sentido eram percebidos como um elemento em si constitutivo da própria democracia almejada.

Creio que o sentimento de oportunidade e interesse participativo não desapareceu por completo (e as manifestações iniciadas em junho de 2013 são interessantes nesse sentido, tanto quanto os usos e abusos políticos na rede, se não para apontar caminhos de luta precisos, mas para afirmar a importância e força política do cidadão).

Mas é inegável certo arrefecimento dos movimentos sociais. E palpito que isso tem relação com a “demonização” do Estado, como interlocutor privilegiado do poder público com a sociedade, demonização esta promovida a partir do fortalecimento, no correr dos anos 1990, do liberalismo, em escala mundial e no Brasil, com a redução do papel do Estado na economia, quebra de monopólios, privatizações de empresas e adoção de uma política restritiva dos gastos públicos. De algum modo, os anos 1990 foram anos nos quais ganhou força política a bandeira da desqualificação do Estado como representante do interesse público e agente interventor na economia.

Além disso, resistências à realização de necessárias reformas políticas perpetuam uma estrutura em que alianças espúrias e ingressos em partidos tendo em vista exclusivamente as vantagens eleitorais que isso possa representar tornaram-se moeda “naturalizada”. Fartam as manipulações que buscam apresentar como representantes quem já não representa mais, restringindo a ideia de democracia ao modelo de democracia representativa burguesa.

Penso que, para dizer o mínimo, isso fomenta a desconfiança e a desagregação social e reconfigura o horizonte de expectativas dos brasileiros em relação às práticas políticas participativas ao lado de um Estado que os represente. Mas sou otimista e entendo o momento como um estágio para uma nova recomposição de forças do movimento popular; afinal, o campo político é um campo de lutas, sempre em aberto para os interesses em conflito.

TP – Que outros pontos você gostaria de mencionar ou comentar?

MHV – Um ponto fundamental, e que tem a ver com a pergunta anterior, é que as cartas analisadas no livro traduzem valores e práticas sociais expressivos em relação à afirmação de uma cultura política democrática no país. Elas são instrumentos da democracia. Mesmo quando veiculam algum pedido, trata-se de um pedido sustentado, não na lógica da troca de favores, mas na afirmação dos direitos do cidadão. Os argumentos e motivações expressas nas cartas envolvem a adoção de um comportamento político identificado como comportamento democrático e não clientelista.

E as cartas também oferecem uma boa perspectiva para se pensar a participação do “povo” na Constituinte, ampliando e enriquecendo as possibilidades de conhecimento daquele momento histórico. Como a maior parte dos registros escritos que estão à disposição dos pesquisadores são produzidos por pessoas que têm alguma prática na escrita, dominando o padrão de “escrita prestigiada”, os pontos de vista privilegiados nesses documentos são necessariamente os dessas mesmas pessoas, pouco ou nada representativos das sociabilidades desenvolvidas em outros grupos. Nesse sentido, o estudo dessas cartas pode ampliar a perspectiva histórica daquele momento constituinte, destacando indícios do cotidiano vivenciado em diferentes regiões brasileiras e novas maneiras pelas quais a política era percebida. São cartas, afinal, que ajudam a evitar uma visão única do processo constituinte, que seja a visão das elites políticas e intelectuais do país.

Outro ponto é pensar que, se o envio dessas cartas às autoridades públicas foi encorajado pelas campanhas pró-participação na Constituinte que movimentavam todo o Brasil, ele também foi aconselhado pelos próprios interesses e expectativas dos autores das cartas. Sabedores de que o país vivenciava um momento de reconstitucionalização, esses autores assumiram o envio de suas cartas às autoridades como um ato de pressão política direta, sem intermediários.

Para outras reflexões, convido os leitores, que afinal sempre são também coautores dos livros que leem.

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