Um conto sobre Israel e a Palestina, por Julián Fuks*

Obras do artista palestino Abdulrahman Katanani, nascido num campo de refugiados no Líbano, retratando a vida cerceada das crianças palestinas
Obras do artista palestino Abdulrahman Katanani, nascido num campo de refugiados no Líbano, retratando a vida cerceada das crianças palestinas

Leonardo Sakamoto

Pedi para Julián Fuks, um dos expoentes da nova geração de escritores brasileiros e de ascendência judia, para publicar um conto que tratasse do sentimento neste momento em que a Faixa de Gaza vive uma crise humanitária. Quando a surdez e a cegueira acometem tanta gente e, como consequência, centenas continuam a morrer; quando a identificação com o outro desaparece, tornando a tolerância e a simpatia com o seu sofrimento algo sem sentido, a reflexão individual através de boa literatura ou do bom jornalismo (se é que podemos fazer essa distinção) pode substituir o ódio e a incompreensão por caminhos de diálogo e de paz.

Uns e outros, por Julián Fuks

Amanhece quando o último estrondo termina de ecoar por entre os casebres cobertos de pó, de pólvora, de partículas indigentes, e o silêncio engasta-se no povoado tão absoluto que não há quem não o reconheça. Outros, então, abrem os olhos já encarquilhados de tanto que se espremeram, desabraçam os joelhos e endireitam as costas agora livres de sustos e espasmos, e quase ao mesmo tempo habilitam-se ao deslocamento dentro de suas próprias casas. Primeiro tratam de atestar o vigor dos mais próximos, dos que habitam sob os mesmos tetos e entre as mesmas paredes, e verificam a solidez de tetos e paredes, para em seguida erguer cortinas, abrir janelas e sentir o calor benigno que lhes apazigua os corpos. Veem-se, distinguem-se e trocam olhares que por um átimo ignoram a dor das perdas e das noites passadas, em respeito à descoberta das mútuas sobrevivências.

Amanhece quando o último estrondo ribomba a quilômetros e quilômetros de distância, transpõe o muro divisor e vai esmorecer antes de atravessar a planície desértica. Uns, então, despertam-se como sempre se despertaram, lavam os rostos em água corrente e escovam os dentes, trocam os pijamas por ternos, tailleurs ou roupas mais confortáveis, untam de manteiga os pães entregues à porta e enfraquecem cafés com uma pitada de leite. Mais tarde cruzarão as ruas para não tangenciar edifícios oficiais, evitarão ônibus mais cheios e perscrutarão torsos encimados por barbas suspeitas ou peles um pouco mais morenas; por ora limitam-se a descobrir o cessar-fogo nas palavras das autoridades multiplicadas nos jornais.

No dia anterior, uma de outros se esgueirou pelas ruelas destroçadas, tentando não dar ouvidos a soluços e lamúrias que se desprendiam de gargantas alheias, passavam entre lábios rachados e teimavam em alcançá-la em seu trajeto. Privou-se também de deplorar as aglomerações de vozes que tumultuavam cada esquina, discursos inflamados e gritos de guerra que pareciam hospedar todo o ressentimento e toda a vingança do mundo – embora bem soubesse que não podia ser todo e não podia ser toda. Não era essa a sede que a assediava, que já se alastrava da boca ao esôfago e parecia querer tomar-lhe o corpo, a tal ponto que seus pés se alarmavam e precipitavam-se sozinhos em busca de auxílio. O tronco bambeava para acompanhar as pernas, e a garota não podia senão recusar-se a ajudar os que carregavam mesas e sofás sobre os pescoços, e recusar-se a secar as pálpebras chorosas da criança que parecia perdida em meio à terra abrasada. Queria apenas chegar ao muro, sem pensar que aquele muro cindira as terras deles e desalojara suas vivendas, sem pensar que aquela pilha de aço de doze metros de altura os confinara e os legara à miséria, sem cogitar que por trás de seus portões não passasse de miragem o oásis da ajuda humanitária. Nada: até onde a vista alcançasse, só tanques e guardas.

Amanheceu e outro de uns que digere os pães e a notícia, esgueirando-se pelas páginas em busca de mais detalhes, desvencilhando-se de escândalos policiais, façanhas esportivas e novidades tecnológicas a preços imbatíveis, vai dar com aquele rosto da menina: sua decepção achatada, diminuída e estampada para consumo ou crítica. O homem não pode senão conter a inércia da leitura e observar a imagem peculiar que se oferece: a garota agarrada às grades da divisa e sua face, levemente inclinada, dividida em duas: meio ensolarada, meio ensombrecida. De um lado, a boca que se abre em lamento mudo, os lábios caídos revelando a aflição mais legítima, o instante exato em que a mandíbula sucumbe e o fôlego se resigna, o desalento próprio de quem se abandona e desiste. De outro, o olhar que resiste e não se deixa perder no vazio, a opacidade das pupilas e o faiscar das íris, a esperança alongando-se para além da fotografia e a um só tempo a mais severa repreensão pelas duras imposições da vida.

Décadas antes, quando ele mesmo era um menino e empreendia suas guerras em pleno quintal com soldadinhos de brinquedo, no tempo longínquo em que uns eram outros e outros eram apenas vizinhos incultos e maltrapilhos, a mãe sempre aparecia para puxá-lo pelo braço e recriminar-lhe algo, talvez a exposição ao perigo, talvez a falta de asseio. Enquanto ia lavando suas mãos, subindo pelos braços e chegando às orelhas, em voz baixa para que ninguém ouvisse, punha-se a recitar com toda minúcia seu sonho secreto. Haveria um momento, dizia em tom carregado de anseio, em que eles tornados uns mostrariam ao mundo como tratar os outros. Aprenderiam com suas próprias, profundas feridas e exemplarmente compartilhariam bens, pães, conhecimentos, benfeitorias. Sem dominações, sem confinamentos, sem conflitos: maioria e minoria vivendo o idílio que havia milênios fora escrito. E agora o quê?, indigna-se o homem descolando os cotovelos da mesa, tendo agregado leite de menos ao café. Foi enganado por sua mãe, foi enganado por seus pares. Ou esse suplício a que submetem os outros, o sofrimento latente sob a pele da garota, a pele suja e ulcerada da garota, são a lição que dão aos opressores antigos?

Mais razão devia ter o pai em seus vaticínios, o dedo decerto em riste em reuniões acaloradas, portas e janelas escudando-os após o toque de recolher, reuniões que ele acompanhava assustado com os ouvidos encostados à parede do quarto. Quando enfim se unissem, eles, seria preciso vencer e subjugar todos os inimigos, meter um soco em seus dentes, e tão forte que de joelhos viessem lhes pedir clemência e implorar a paz. Só então poderiam mostrar como são um povo amante da concórdia, como são capazes de superar as chagas milenares com toda civilidade; e a paz, é claro, com benevolência lhes seria dada. Emergindo da lembrança e ainda empunhando a folha, amarrotando as extremidades, o homem volta a examinar a foto e repara nos dentes mínimos, alvos, frágeis. Quão atroz é pensar em desferir neles um soco e arrebentá-los, quão covarde que assim façam jovens impassíveis detrás da barba rala, de músculos rijos detrás da farda. E quantos dentes serão arrancados com tantas bombas e tantos tanques? E se, algum dia, outros forem uns como eles, e quaisquer vierem a ser outros, quantos dentes mais serão arrancados com suas bombas e seus tanques e suas lições de civilidade?

Pai e mãe que silenciem, que seu tempo é o passado. No presente o que é preciso é ouvir o clamor que emana da imagem presa à página, a denúncia ditada linha a linha nos traços daquela face, a acusação exposta a todos com a eloquência da matéria viva, com a riqueza que só as feições humanas guardam. Talvez não seja tarde, os pensamentos do homem conspiram, o punho colidindo contra a mesa e fazendo ressoar as xícaras. Não há rancor na expressão da menina; ainda não há o ódio que alimenta velhas e novas rixas. Talvez o sofrimento que ora infligem não seja tão grande quanto aquele de que foram vítimas, quanto os pesadelos que lhe atormentaram a infância, quanto o indizível. E, se assim for, e se ainda houver tempo de impedir um massacre, se alguém olhar a menina nos olhos e tratar de ampará-la, quiçá o horror encontre seu fim e deixe de propagar-se.

Um soldado saltou do tanque, e com a manga secou o suor represado pelas veias dilatadas da fronte. Esperou um instante até que a nuvem de poeira baixasse, e seu caminhar não foi retido por qualquer lente, não foi detido por qualquer máquina. Enquanto se aproximava das grades, levou devagar uma das mãos ao quadril e começou a traquejar contra o cinto, tentando a ruídos metálicos desatarraxar alguma coisa. A ponta prateada do cantil cintilou sob a luz do sol e a cegou por quase um segundo, mas logo a menina se soube aliviada. Estendeu as mãos em concha e recebeu a primeira dose d’água, com que refrescou cada poro do rosto e molhou os lábios. Depois tomou-lhe da mão a garrafa e bebeu a goles vastos. O soldado ainda mensurou a largura das grades ponderando se atravessava o braço e lhe oferecia um afago, mas julgou paternal demais o gesto imaginado.

Quando a garota desapertou as barras de ferro e deu as costas ao muro, foi como se a vida de súbito abrandasse. Nada estava resolvido, isso era claro, mas voltava a confiar nos músculos das panturrilhas e das coxas e agora podia até esquecer panturrilhas e coxas, pois seu corpo recobrava uma benquista integralidade. Mesmo o povoado, a uma pequena distância, parecia sobrelevar o caos e as tragédias dos últimos dias e mostrar-se harmônico em sua simplicidade, um vilarejo bucólico em vez do campo de refugiados em que se tornara. Agora, ao menos pelas próximas horas, podia ajudar as pessoas com seus móveis e suas lágrimas. Num empenho coletivo, e com o fim prenunciado dos ataques, eles seriam, ainda que ainda outros, capazes de reconstruir suas cidades. E, enquanto a garota estava imersa em suas novas ideias, ensejando algo que não demoraria em se tornar um sorriso, um susto acudiu-lhe aos olhos e revelou a urgência de colocá-las em prática. Subsumido na sombra de um pavilhão bombardeado, um vulto parecia estirado ao chão em meio às pedras, a mão estendida pedindo para ser alçada, o momento perfeito para que o gesto cumprisse todo seu valor simbólico, para que patenteasse enfim o recomeço esperado. Mas os dedos se deixaram espremer em meio aos seus, dedos inertes e pegajosos e manchados de sangue, e a mão leve demais se deixou arrastar sem resistência, a mão que não era de um, não era de outro, não era de ninguém.

*Julián Fuks é autor de livros como Histórias de Literatura e Cegueira e Procura do Romance. Conto originalmente publicado no livro Primos – Histórias da herança árabe e judaica (Record).

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