Por Sergio da Motta e Albuquerque*, em Observatório da Imprensa
Eu li com certo cuidado o comentário não assinado e publicado em vários periódicos e revistas da imprensa brasileira, que informa aos leitores que Pelé suavizou o caso de racismo contra Daniel Alves no jogo contra o Villareal. O Globo, em sua versão impressa, publicou a notícia (3/5, pág. 36) no caderno de esportes. A notícia ficou escondida, quase ao pé da página. Na web, foi publicado na véspera. Sem assinatura ou referência mais específica, ela diz: “‘Racismo não é no futebol, tem em todos os setores da sociedade. Não dá para pegar uma coisa tão banal de uma carinha que jogou uma banana, e fazer do limão uma limonada’, afirmou Pelé, para quem ‘não há tantos casos de preconceito no futebol’”.
A revista Veja publicou a mesma notícia um dia antes (2/5), e afirmou que a declaração foi feita durante uma “visita a Ribeirão Preto”. E adicionou uma matéria com um título ingênuo e absurdo: “Como Daniel Alves derrotou o racismo”. O subtítulo explica que o lateral brasileiro tratou a ofensa com “fina ironia” e desbaratou o “primitivismo nos estádios de futebol de todo o mundo”. O jogador comeu a banana e venceu o racismo no planeta apenas engolindo um pedaço dela. Simples assim. Comeu a banana e destruiu o racismo na terra. Isso eu chamo de “jornalismo Peter Pan”: ele é infantil e recusa-se a crescer e ver o mundo como ele é.
É muito difícil e duro acreditar que em um momento tão grave para o futebol (que passou a ser o maior palco para demonstrações de racismo no mundo), ainda persistam as tentativas de minimização de insultos e preconceitos étnicos. No caso do Daniel Alves, tudo aconteceu errado desde o início, quando a fruta foi atirada em sua direção. Daniel comeu a banana da humilhação. Ele pode. Ele ganha milhões. Ele pode desqualificar quem o humilha na Espanha, mas na realidade o lateral troca a qualidade de sua vida por dinheiro. Daniel declarou que vive o racismo há 11 anos e que sempre foi assim na Espanha. O que dizer diante disso?
Alienação delirante
A Veja tentou explicar a bizarra solidariedade de Neymar ao seu colega de profissão, time e seleção. Foi o único mérito da matéria. Essa campanha foi resultado da preocupação com o comportamento do atacante da seleção brasileira. Que há poucos anos atrás não apresentava sinais de identificação com sua origem étnica. A reportagem da revista explicou que dois homens, o pai do jogador e um de seus assessores, Eduardo Musa, procuraram a agência de publicidade Loducca, de São Paulo. Desta vez, Neymar iria responder a ofensa com vigor: através de um infeliz hashtag criado pelo sócio e vice-presidente de criação da agência. Foi ele quem teve a ideia de assimilar o insulto com humor, resignação e oportunismo. Tudo na base do pro bono, disse o empresário à revista.
Os dois foram atendidos pela agência, que criou o hashtag #somostodosmacacos, a mais infeliz entre todas as campanhas gratuitas no Twitter. Em pouco tempo, a indigna, incorreta e perigosa mensagem ganhou mundo. O presidente da Itália comeu uma banana. E foi imitado por artistas, celebridades e formadores alienados de opinião. Seu impacto nas redes sociais foi grande e paradoxal: o jogador aparece com uma banana na mão ao lado de seu filho louro. O que se pode concluir daí? Que o racismo com Neymar “não cola” porque ele tem um filho de cabelos claros?
A coisa terminou mal: Neymar tentou amenizou o insulto transferindo-o para todo o povo brasileiro como piada no Twitter, publicada em quatro línguas: inglês, espanhol, português e catalão. Muita gente boa caiu no conto e aceitou a injúria. Essa campanha do Neymar no Twitter foi um insulto a todos que querem ver o mundo e o futebol livres do racismo. A quem não aceita rir ou conviver com ele. Racismo não pode ser combatido com gracejos ambíguos, ou derrotado por “fina ironia”. Ativistas afrodescendentes e outros inimigos do racismo denunciaram o cinismo de Neymar e a alienação delirante de Pelé. Que acredita que a imprensa exagera quando expõe o óbvio crescimento do racismo no futebol.
Espetáculo degradante
A campanha foi exposta. O pequeno jornal socialista A Verdade (3/5) acusou a Daniel e Neymar de banalizarem o racismo: “Desde pequenos, somos ensinados a tratar insultos racistas como piada, a ‘levar na esportiva’, a considerar tudo uma grande ‘brincadeira’ e, portanto, ‘normal’. Prova disso foi o que fez Pelé, grande parceiro da Fifa e das mega corporações esportivas internacionais, ao afirmar que ‘Daniel Alves foi vítima de ato banal’. Não, Pelé, racismo não é algo banal; é uma coisa muito séria. Causa sofrimento e mortes em todo o mundo. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de atletas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: banalizar o real significado do racismo em nossa sociedade, o que dá mais força pra que ele continue existindo.”
A reação dos militantes afrodescendentes não teve muita atenção na mídia. Não encontrou espaço equivalente a sua importância na imprensa. A maior parte dela aceitou bem a ofensa. Gostou da brincadeira de forma despicienda. A crítica ficou restrita a instituições civis ou blogs de ativistas dos movimentos negros e de direitos humanos. Que assinalaram o estrago que Pelé e Neymar trouxeram aos anos e anos de lutas no combate ao racismo, e trouxeram as vozes daqueles que lutam pela união de todas as etnias sem discriminação ou preconceito, e de todos que anseiam por um mundo melhor onde seja possível a convivência na diversidade.
O Instituto da Mulher Negra (28/4) publicou o contundente artigo de Higor Faria. Que não aliviou nada para o Neymar:
“Neymar ‘tá’ empurrando para o lixo anos e anos de luta antirracista. E nem acho que ele esteja ligando muito para a m***a que fez. O racismo nos campos de futebol sempre existiu e agora têm ganhado bastante espaço na mídia. Os veículos até então não tinham encontrado um rosto que estampasse a luta contra esse tipo de discriminação sem afetar seus interesses. Neymar percebeu a oportunidade, agarrou como a banana na foto e provavelmente será esse (sic) rosto: mais visibilidade para o afroconveniente de ouro.”
Faria matou a charada: a campanha de Neymar foi bastante conveniente para a Fifa, que precisava de um rosto amistoso e atitude submissa naquele momento delicado. Alguém capaz de rebater o racismo de forma branda para não assustar ainda mais os anunciantes e o público que o Brasil espera trazer para a Copa.
Racismo não se combate com gentilezas, ironias sutis e piadas. Nem mesmo a ciência é suficiente para provar a certas pessoas que somos uma só espécie e que “raça” não é uma categoria científica. Que o ser humano não tem subespécies e nossas diferenças aparentes são produto do maior ou menor grau de isolamento geográfico que os diferentes grupos étnicos experimentaram ao longo da história. Insultos racistas não podem ser minimizados e tratados como brincadeira, ou como algo que podemos viver e esquecer como se fosse apenas uma brincadeira trivial. O futebol mundial não pode ser transformado em uma praça de exibição de comportamentos, ofensivos à dignidade humana. O esporte que já foi chamado de “jogo bonito” não pode transformar-se em um espetáculo que degrada e diminui a condição humana.
Um morto e três feridos
Infelizmente, as coisas não estão melhorando no futebol brasileiro. Eu já estava a fechar a matéria, quando levantei da cadeira e fui buscar o jornal de domingo (O Globo, 4/5). Foi quando notei a curiosa nota, mais uma vez impressa em local de difícil acesso visual: na capa, mas lá em baixo. Muito em baixo. Pouca gente deve ter lido o curioso título: “Vaso sanitário mata torcedor”. O subtítulo informava que “um torcedor morreu ao ser atingido por um vaso sanitário atirado de Estádio do Arruda, em Recife”. Procurei pela matéria (pg.39), e li que dois vasos sanitários foram atirados de uma altura de 24 metros sobre torcedores, depois da partida entre Santa Cruz e Paraná. O jovem Paulo Ricardo Gomes da Silva, de 26 anos, foi “atingido no meio da rua”, informou o jornal. Ele estava tentando fotografar o confronto da torcidas rivais do Sport e do Santa Cruz no “Arrudão”(o estádio do Santa Cruz), quando os dois vasos sanitários foram atirados do alto do estádio. Um deles atingiu Paulo Ricardo. Que morreu na hora.
A notícia correu o mundo: a BBC publicou, o Huffington Post também. Além do tabloide inglês The Daily Mail, a CNN, o Sydney Morning Herald, da Austrália, e outros periódicos esportivos importantes. A BBC (3/5) informou que “no início deste ano torcedores do Santa Cruz arremessaram vasos sanitários contra seus rivais locais do Sport”. O que há com esses torcedores alucinados? Estão tentando inventar mais um “esporte radical”, o arremesso de privadas?
O site da BBC cometeu um erro muito comum em jornalismo: segundo o autor da matéria, “outras três pessoas foram supostamente feridas”. Como assim “supostamente”? Este advérbio não cabe aí. É uma suposição. Seu uso denota incerteza, ambiguidade ou descompromisso com o assunto abordado. Não é assim que se informa. O site do Globo Esporte (2/5) de Pernambuco acabou com a insegurança da emissora inglesa: “Além da vítima fatal (sic), outras três ficaram feridas. Uma em estado grave. Vanderson Wilderlan Gomes, nascido em 1992, sofreu cortes na cabeça e nas pernas e foi encaminhado para o Hospital da Restauração, zona central do Recife. O quadro dele inspira cuidados, mas não corre risco de morte. José e Adrien Ferreira de Lima, nascido em 1993, e Tarkini Kauã Gonçalves de Araújo, nascido em 1994, machucaram as pernas e seguiram para o Hospital Getúlio Vargas.”
Hora de acabar com a Fifa
O Huffington Post (5/3) informou que nenhum jogo da Copa do Mundo acontecerá naquele estádio. Os cinco jogos programados para Recife serão disputados na Arena Pernambuco, que foi construída para hospedar os jogos do certame. O site noticioso também comentou a violência no futebol brasileiro: “Violência envolvendo grupos de torcedores é comum no Brasil, e o número de incidentes aumentou ano passado. A Fifa e as autoridades brasileiras têm minimizado as preocupações sobre violência dentro dos estádios durante a Copa do Mundo, dizendo que a segurança será reforçada e que esses incidentes estavam relacionados principalmente a jogos entre clubes.”
Eu não poderia deixar de fora a cobertura detalhada e meio sanguinária de um tabloide inglês. Que apresentou uma foto do jovem morto, cercado de pedaços da porcelana do vaso despedaçado que lhe tirou a vida. De acordo como Daily Mail Online (4/5), a imprensa local informou que o rapaz esteve envolvido em disputas com a torcida rival, Cita como fontes emissoras locais.
Eu encontrei uma reportagem do Jornal do Comércio de Pernambuco (3/5), publicada com o apoio da Rádio Jornal, onde está registrada a presença de Paulo Ricardo entre a torcida do Paraná. Ele fez uma foto onde exibiu uma bandeira de uma torcida organizada do Sport, a “Fúria”, durante o jogo, e na torcida do adversário. Coisa grave. O periódico informou que “o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa está investigando o caso”.
A morte do jovem torcedor pernambucano não foi associada de forma direta a violência durante a Copa. As dúvidas que a mídia estrangeira tem expressado são a mesmas de sempre. O mundo todo conhece a violência do nosso país e de nossos torcedores. Mas todos também conhecem a segregação por renda, e o preço salgado dos ingressos, somado ao espetacular aparato de segurança ao redor dos estádios durante os jogos devem garantir a realização dos jogos da Copa do Mundo. Que antes mesmo de começar já é a mais estranha e estigmatizada da história do futebol.
Será que não é hora de acabar com a Fifa e seus torneios enormes, extravagantes e fora do lugar em nossos tempos? Não chegou a vez de criarmos outra organização que substitua a Fifa viciada e corrupta, e que organize torneios menores, menos danosos e comprometidos com interesses do comércio mundial e sua sede de lucros? Eu não tenho as respostas, mas uma coisa eu garanto: nunca pensei que estaria tão desapontado e desanimado quando o Brasil hospedasse outra Copa do Mundo.
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*Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor