Brasil assiste a uma escalada de linchamentos e espancamentos coletivos. Para especialistas, a onda revela descrença na Justiça e se alimenta da divulgação
Por Alessandra Mello, em EM
Osvaldo Bachinam, de 32 anos, e os irmãos Ivacir Garcia dos Santos, de 31, e Arci Garcia dos Santos, de 28, mantiveram refém, sob a mira de um revólver, uma família em Matupá, cidade de 14 mil habitantes, no Mato Grosso. Depois de horas de negociação eles se renderam. Mas não chegaram a ser presos, muito menos condenados pela Justiça. Foram linchados pela população da cidade. Um cinegrafista amador, que vivia de filmar casamentos, gravou toda a violência. As cenas são chocantes. Depois do espancamento, um homem joga gasolina nos três. Em seguida, alguém ateia fogo. Um deles, ainda vivo, se debate enquanto tem o corpo incendiado. O crime aconteceu no fim de 1990. Poucos meses depois, as imagens vieram a público e correram o mundo. E o número de linchamentos no Brasil bateu recorde. Foram 148 casos em 1992, contra 48 do ano anterior, segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP).
A dinâmica “notícia de linchamento-explosão de casos” parece se repetir este ano. No rastro da metodologia adotada nas pesquisas do NEV/USP, cujos dados são baseados em notícias publicadas na imprensa, a reportagem do Estado de Minas levantou, por meio de informações divulgadas em portais de notícias, 36 casos de linchamentos e espancamentos coletivos neste ano em 15 dos 26 estados e no Distrito Federal. Dezenove deles resultaram na morte da vítima. A média é de um caso a cada oito dias. A maioria absoluta aconteceu a partir de fevereiro, logo depois que um adolescente foi espancado por cerca de 15 homens e amarrado nu a um poste no Bairro Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 31 de janeiro, com repercussão nos portais de notícias e redes sociais.
Para a socióloga e pesquisadora do NEV/USP Ariadne Natal, autora de uma tese de mestrado sobre linchamentos em São Paulo, é preciso ter cuidado ao falar de aumento ou decréscimo de casos ao longo do tempo, pois a variação no total de notícias pode ser decorrência somente de um maior ou menor interesse da imprensa pelo tema em determinado momento. Uma elevação nos registros pode, ainda, segundo a pesquisadora, resultar da maior publicidade dos casos, que teria como efeito colateral a difusão do linchamento no imaginário da população como um recurso de justiça em situações de aumento de criminalidade e fraca resposta do Estado.
Ariadne Natal ressalta, entretanto, que independentemente dos motivos, não há dúvida de que multidões fazendo “justiça com as próprias mãos” revelam um descrédito da população com as instituições responsáveis pela manutenção do estado de direito. “A linguagem do linchamento é pública. A intenção é ir ao extremo da violência para mostrar descontentamento com o Estado, por isso não basta espancar, matar. Tem que expor o corpo em praça pública e, nos tempos atuais, nas redes sociais”, analisa. Isso explica, segundo a pesquisadora, o fato de muitos casos de linchamento serem fotografados e filmados e depois compartilhados nas redes sociais.
Dados sobre linchamentos levantados pelo NEV/USP em uma série histórica que cobre os períodos de 1980 a 2006 são praticamente os únicos disponíveis no Brasil com abrangência nacional. No período estudado, ocorreram no país 1.179 casos de linchamentos, definidos pelo núcleo como ações coletivas de justiçamento, mesmo em casos em que a violência não resulta em morte. Em 2006, foram seis registros. Os dados mais atuais são de São Paulo, onde a série histórica do núcleo seguiu até 2010, quando ocorreram 10 casos no estado, com três mortes. Os números, entretanto, não são precisos, uma vez que linchamentos e espancamentos coletivos não são caracterizados como um tipo penal (descrição pela legislação de um ato ilícito) e, por isso, não fazem parte das estatísticas de crimes feitas pelos órgãos de segurança.
Milícias
Segundo o Índice de Confiança na Justiça, elaborado pela Fundação Getulio Vargas, só 5% dos cidadãos confiam nos partidos políticos. No Poder Judiciário (42%), no Congresso (40%) e no governo federal (40%) a confiança é maior, mas o descrédito é majoritário. O sociólogo e ex-secretário-adjunto de Defesa Social de Minas Gerais Luis Flávio Sapori também corrobora a tese de que esse tipo de violência é uma “sinalização clara da sociedade, em todos os sentidos, de que a segurança pública e a Justiça estão em xeque”.
Veredicto
Durou 21 anos, mas os acusados da morte de Ivacir e Arci Garcia dos Santos e de Osvaldo Bachinan foram condenados pelo Tribunal do Juri em 2011. Em um julgamento que durou quatro sessões, Luiz Alberto Donin recebeu a pena de cinco anos e quatro meses de reclusão, em regime inicial semi-aberto, e Mario Nicolau Schorr de quatro anos e oito meses de reclusão, em regime semi-aberto. Valdemir Pereira Bueno, que admitiu ter jogado combustível nas vítimas, foi condenado a oito anos de reclusão em regime inicialmente fechado. Os outros 15 réus foram inocentados por falta de provas. O caso ficou conhecido como a “Chacina de Matupá”.
Cenas de Injustiça e Dor
O soldador Jevanilson Rios Santos, de 20 anos, carinhosamente chamado pela família de Sinho, chegou do trabalho e resolveu tarde da noite ir atrás de um moça que tinha conhecido havia pouco tempo em um povoado perto da cidade onde ele mora com a família. Um amigo deu carona de moto para ele e ficou de buscá-lo mais tarde. Como Jevanilson não apareceu no local combinado, ele resolveu procurá-lo. Encontrou o soldador desacordado, sangrando e deformado por chutes e pancadas em todo o corpo. Segundo a mãe do rapaz, a dona de casa Zenilda Rios, de 42, ele foi espancado por moradores que o confundiram com um assaltante. Segundo informações da Polícia Militar repassadas à família, na localidade conhecida como Humildes, distrito do município de São Gonçalo dos Campos, a 108 quilômetros de Salvador, estavam ocorrendo diversos roubos de motocicletas, e a população, ao ver uma pessoa desconhecida no povoado, suspeitou que ele pudesse ser o responsável pelo crime e o espancou barbaramente. Sinho está internado no Hospital Cleriston Andrade, em Feira de Santana, cidade onde mora com a família.
Dona Zenilda não se conforma com o que ela classifica como “barbaridade”. “Sinho ficou deformado. Não fala e não se mexe. A maioria dos chutes e pauladas que ele levou foi na cabeça. Uma violência que nunca vi na vida e contra um menino muito bom.” Segundo ela, seu filho nunca teve passagem pela polícia, começou a trabalhar aos 16 anos e, no ano passado, concluiu o ensino médio e começou a trabalhar de soldador em uma empresa de Feira de Santana. “Ele nunca me deu trabalho, não tenho uma reclamação, sempre foi um ótimo filho”, conta a mãe, que disse estar “sofrendo muito” com o que aconteceu. “Aonde isso vai? Aquilo não poderia nunca ter acontecido com ninguém. Nem com um inocente, nem com um bandido. Não é assim que se faz justiça”, defende a dona de casa.
Ela conta que os médicos não têm previsão de alta da unidade de tratamento intensivo nem sabem dizer se ele terá sequelas. Ele teve fraturas, passou por uma traqueostomia e uma cirurgia. A assessoria de comunicação do hospital não dá detalhes do quadro dele. Diz apenas que seu estado de saúde é “estável”. De acordo com dona Zenilda, a delegada que investiga o caso, Cristiane Oliveira, disse que na semana que vem terá novidades sobre o caso. “Mas ela pediu paciência, pois é uma investigação difícil.” É que, de acordo com Ariadne Natal, socióloga que estuda linchamentos no Brasil, os casos não costumam ter desfecho, pois a justiça é feita com a descrição individual das condutas de homicídio, tortura e lesão corporal, que é como são definidos os casos de linchamento na legislação brasileira. “Isso também favorece condutas desse tipo”, destaca.
Jevanilson está em estado grave, mas tem chances de sobreviver e se recuperar da barbaridade. Quatro anos mais velho que o baiano, Isaias dos Santos Novaes, morador de Nova Crixás, a 380 quilômetros da capital, não. No dia 5, ele foi preso, acusado de estupro, e levado pela polícia para fazer exame de corpo de delito no hospital. A população revoltada invadiu e quebrou o hospital, pegou Isaias, espancou-o e o esfaqueou até a morte. Tudo foi filmado e colocado nas redes sociais. Outros casos como esse foram registrados em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Acre, Ceará, Maranhão, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
JUSTIÇAMENTO EM GRUPO
O QUE É
Os linchamentos são ações que contam com a participação de um grupo efêmero e sem organização prévia, que age geralmente em local público, com o objetivo de fazer justiçamento sumário, sem a mediação do Estado, contra pessoas suspeitas de cometer crimes e violências de toda sorte. No estudo do Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) são considerados linchamentos inclusive os casos em que as vítimas não morreram, mas em que houve espancamentos e agressões coletivas.
ORIGEM DA PALAVRA
Há controvérsia sobre a origem da palavra linchar. Surgida nos Estados Unidos, ela deriva do nome Lynch, que pode ser uma referência ao coronel Charles Lynch, que fazia justiça com as próprias mãos, por volta de 1782, durante a guerra da independência, ou uma derivação do nome do capitão William Lynch, que mantinha um comitê independente encarregado de preservar a ordem e a justiça em um condado no estado da Virgínia, no período de 1870. Nos EUA, o termo é usado somente quando o espancamento resulta em morte.
ESTATÍSTICAS NO BRASIL
- De 1980 a 2006 foram registrados 1.179 casos de linchamento no Brasil
- O auge desse tipo de ação foi em 1991, quando ocorreram 148 casos. Naquele ano, um caso de linchamento em Matupá, no Mato Grosso, teve repercussão nacional
- O menor número de registros foi em 2006, com cinco casos
- Em todos os outros estados, foram registrados menos de 15 casos entre 1980 e 2006
- No estado recordista de casos, São Paulo, os principais motivos de linchamento foram roubo/sequestro, homicídio e estupro e atentado violento ao pudor envolvendo crianças
- Números mais recentes do NEV/SP trazem dados apenas de SP e RJ
- Em SP, em 2010, foram 10 casos
- No RJ, no mesmo período, foi registrado um caso
Fonte: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade Federal de São Paulo
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.