O tráfico de seres humanos para trabalho escravo, exploração sexual, remoção de órgãos, mendicância forçada, adoção ilegal e casamento forçado é um dos crimes mais lucrativos do mundo. Apesar disso, ele ganha muito menos destaque nos noticiários brasileiros do que o tráfico de drogas ou de armas.
Ao mesmo tempo, nós jornalistas cobrimos mal o tema, sendo pautados pelo governo, Justiça, polícia ou novelas e não tomando a dianteira em propor análises e investigações por conta própria. Isso sem contar que, involuntariamente, por causa da falta de formação e informação, acabamos por perpetuar determinados preconceitos. Preconceitos como: apenas mulheres são vítimas de tráfico para exploração sexual, esse problema envolve apenas brasileiras no exterior, só grandes máfias controlam o comércio de gente, somente pessoas pobres e ingênuas tornam-se vítimas ou todo boliviano trabalhando em oficina de costura de São Paulo é vítima de trabalho escravo.
É o que aponta a pesquisa “Tráfico de pessoas na imprensa brasileira”, desenvolvido pela Repórter Brasil, em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e o Ministério da Justiça. Ela foi lançada, nesta sexta (11), junto com um guia para jornalistas com referências e informações sobre o enfrentamento ao problema para ajudar jornalistas e profissionais de comunicação do poder público, empresas e organizações não-governamentais a tratarem do tema.
Realizado no auditório da Secretaria de Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, no Centro de São Paulo, o lançamento contou com um debate entre representantes, além da própria secretaria, do Ministério da Justiça, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, do Ministério do Trabalho e Emprego, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, da Assembleia Legislativa, da Unodc, da Organização Internacional do Trabalho e de organizações da sociedade civil, entre outros.
A pesquisa “Tráfico de pessoas na imprensa brasileira” (versão digital em PDF) teve como base a análise de 655 textos publicados entre 1º de janeiro de 2006, ano de lançamento da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, e 1º de julho de 2013, ano do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
O estudo indica que o tema ainda não recebe atenção suficiente por parte da mídia. Em 57% dos textos analisados, o tráfico de pessoas é apenas mencionado, não raro de forma equivocada, misturando conceitos e interpretações. Entre os 43% restantes, a maioria (54%) não trata de causas ou contextualiza a questão e boa parte (44%) é focada apenas no tráfico para fins de exploração sexual.
A cobertura se baseia na agenda governamental ou em ações policiais e em muitos casos limita-se a aspectos criminais, sem os aprofundamentos necessários para tratar de um fenômeno complexo, multifacetado e dinâmico, com diferentes modalidades, causas e consequências.
O “Guia para jornalistas com referências e informações sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas” (versão digital em PDF), baseado em entrevistas com especialistas, entre autoridades, acadêmicos e representantes da sociedade civil, reúne recomendações para a cobertura e acompanhamento, incluindo sugestões de fontes, datas importantes e o marco legal, com indicações da legislação e de tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
A publicação elucida que as definições previstas no Protocolo de Palermo são as mais amplas sobre o problema e destaca que o o Brasil é um país de origem, trânsito e destino de tráfico de pessoas, o que torna a cobertura complexa, delicada e relevante.
Aos jornalistas preocupados em acompanhar a questão, o guia recomenda focar direitos humanos, contextualizar acompanhar políticas de prevenção, diversificar fontes, a ter atenção para identificar novas modalidades de tráfico.
Por se tratar de um fenômeno clandestino e de difícil mensuração, a publicação sugere cuidado com números e estatísticas, e com os mitos e estereótipos que ainda são comuns e mais atrapalham do que ajudam no entendimento sobre o tema. A publicação propõe uma abordagem integral, e destaca que não existe um perfil único de vítimas; em tese, qualquer pessoa pode ser traficada. Ao aprofundar a questão é preciso sensibilidade com vítimas, que não devem ser tratadas como coitadas, inocentes, ignorantes, mas como sujeitos de direitos que merecem respeito.
Também vale cuidado redobrado em casos que envolvem crianças e adolescentes, e estar atento a termos inadequados (o guia traz diversos exemplos). Outras recomendações são ter a perspectiva de gênero e lembrar que diferenças sexuais são produtoras de desigualdades sociais; entender migração como um direito humano; e considerar que a prostituição não é crime no Brasil. Há análises específicas sobre cada um desses pontos na reportagem.
*Com informações de Daniel Santini, Repórter Brasil.