Há anos, o americano James Green se dedica ao ensino de história do Brasil na Universidade Brown, um dos principais núcleos estrangeiros de estudos sobre o país. Há cerca de um mês, ele desembarcou no Rio para o que seria apenas mais um simpósio internacional, na Fundação Casa de Rui Barbosa, mas foi surpreendido pela magnitude das manifestações de rua que tornariam junho um mês histórico, com milhares de pessoas mobilizadas por diferentes demandas em 12 capitais. Green não teve dúvidas: com as atividades da conferência suspensas um pouco mais cedo, decidiu ouvir de perto as vozes das ruas, junto com um grupo de estudantes de Brown e da Universidade Princeton. Foi para o Largo São Francisco, de lá caminhou até a Candelária e chegou à avenida Presidente Vargas. “Eu queria sentir na pele e [ver] na prática quem estava lá”, diz
Vanessa Jurgenfeld – Valor
Assim como Green, outros brasilianistas passaram pelo país nos últimos dias. O historiador Bryan McCann, da Universidade Georgetown, veio no início de junho e o economista Werner Baer, da Universidade de Illinois, chegou há cerca de 15 dias. Aproveitando as férias de verão nos Estados Unidos e o recesso das aulas, visitaram o Brasil para tocar pesquisas sobre assuntos como favelas no Rio e infraestrutura. Depararam-se, porém, com as manifestações, e agora tentam interpretar suas causas e possíveis consequências.
Green faz ressalvas a comparações internacionais. Critica algumas análises, inclusive as publicadas em jornais americanos, por terem feito comparações apressadas com conflitos organizados por redes sociais em outros países. Para ele, os pesquisadores têm grande dificuldade para analisar os fatos de fora porque, muitas vezes, não entendem as complexidades internas dos países. “Achei inadequadas as análises que imediatamente fizeram analogias com o Oriente Médio. Acho que não tem muito a ver. Isso foi feito por pessoas que não pensaram duas vezes. A única coisa em comum é que se usou o mesmo meio [o Facebook] para a mobilização.” Segundo ele, as ansiedades e as preocupações dos manifestantes são totalmente diferentes. “Não dá para comparar o regime autoritário que estava no Egito antes da ‘Primavera Árabe’ com o Brasil, que antes das manifestações tinha um governo com 70% de aprovação.”
Green faz a mesma crítica àqueles que vincularam os protestos no Brasil às manifestações da praça Taksim, na Turquia. “Lá, são mobilizações complicadas, porque setores modernizantes da sociedade se opõem a um regime ultraconservador e religioso”.
Diferentemente de Green, McCann e Baer acreditam que a onda global recente de protestos indica que o Brasil pode não ser um caso único. No princípio de junho, enquanto finalizava uma pesquisa sobre favelas, no Rio, McCann acompanhou os primeiros protestos contra o sistema de transporte. Para ele, comparações com os episódios recentes na Turquia e mesmo com o movimento Occupy Wall Street, que ocorreu nos Estados Unidos em 2011, são pertinentes. “Certamente, as características brasileiras são um pouco diferentes. Mas as manifestações deixam claro que a mídia social e a comunicação instantânea ajudam a espalhar um modo de agir, ajudam a levantar pessoas.”
Numa comparação com a Turquia, McCann diz que, embora o Brasil seja “muito mais democrático”, o perfil dos manifestantes é similar. “É uma faixa parecida da população – os jovens -, e o que se poderia chamar de nova classe média. São manifestações de consumidores e de cidadãos que estão exigindo um nível melhor de serviços do governo e de transparência.”
Assim como no Occupy Wall Street, McCann identifica nas manifestações no Brasil uma insatisfação com a distribuição de renda e o entendimento de que o crescimento econômico em si não é bom para todo mundo. “No Occupy […] está mais clara a questão da preocupação com a desigualdade. E a desigualdade nos Estados Unidos cresce. No Brasil, apesar de a desigualdade cair nos últimos 20 anos, o fato é que alguns enriquecem muito mais rapidamente e de forma mais expressiva do que a maioria, que continua com problemas cotidianos de saúde e transporte público, e não vai comprar mais a ideia de que tudo está ótimo porque tem as Olimpíadas e a Copa do Mundo.”
Ex-professor do presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, Baer concorda que as manifestações no Brasil não devem ser vistas de maneira isolada. Mas diz que aqui parece existir insatisfação com questões específicas, como o reaparecimento da inflação e os atrasos em obras de infraestrutura. “É uma mistura de fatos que deixou a população insatisfeita. Não tenho uma teoria nova, são as mesmas especulações que todo mundo está fazendo. Combinando essas insatisfações em geral com o acesso à rede social, resulta esse tipo de acontecimento.” Mas o que o deixou um pouco surpreso é que, embora haja uma taxa de crescimento baixa da economia brasileira, o desemprego – que vem sendo objeto de manifestações em diversos países desenvolvidos – não aumentou. “Então, é muito difícil saber exatamente o que acontece. Acho que ninguém tem uma teoria certa. Nenhuma pessoa honesta pode dizer exatamente: ‘eu sei a causa de tudo isso'”.
Os brasilianistas observam diferenças nas atitudes dos governos dos diferentes países frente às manifestações. “De certa maneira, o governo brasileiro está reagindo”, diz Baer. “Parece que a presidente Dilma Rousseff sabe que alguma coisa precisa ser feita para atender às reivindicações. No Brasil, há tentativas de se reagir positivamente, como o plebiscito. A percepção que se tem no exterior é que o Brasil é uma sociedade aberta, em que se podem fazer manifestações sem a repressão que existe em outros países, como na Turquia.”
Baer diz que simpatiza com a ideia de plebiscito, mas coloca em questão se este é o momento adequado para fazê-lo. “Acho que plebiscito seria uma resposta lógica, mas como organizá-lo? O país estaria pronto em um mês para fazê-lo sem antes discutir amplamente as questões? [a serem colocadas na consulta à população]. Acho que plebiscito apressado pode não resolver a insatisfação.”
McCann concorda que o governo brasileiro procura responder aos protestos, diferentemente do que faz o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, “que está tapando os ouvidos”. A presidente Dilma, segundo ele, está acenando para o movimento popular. “Se vai dar em alguma coisa, não sei. A reforma política é necessária e isso está claro há uns dez anos. Mas não sei se o plebiscito vai realmente avançar. Todo plebiscito tem um risco de não resolver nada, de não ter eficácia.”
Enquanto estava no Rio, McCann conversou com amigos sobre as remoções de pessoas, nas favelas, por causa de construções para os grandes eventos esportivos que o país abrigará nos próximos anos. Pensava, então, que essa ação poderia gerar uma mobilização popular, o que ele ainda não descarta. Não imaginava que surgiria de repente uma mobilização em torno do aumento da tarifa do transporte e que, depois, a repressão policial provocaria uma manifestação maior. “Isso indica muita coisa”, afirma. “É claro que há uma insatisfação grande e compreensível com o transporte, mas isso gerou uma mobilização em combinação com outros fatores, como violência policial e evidências amplas de corrupção. Fiquei muito surpreso, porque não esperava que cresceria tanto. É um momento complicado, difícil de resumir. Mas, de um modo geral, acho positivo. Os brasileiros estão cobrando melhores serviços, mais transparência e menos corrupção.”
A surpresa dos observadores internacionais com as manifestações talvez tenha sido maior do que a de muitos brasileiros. Nos últimos cinco anos, pesquisadores estrangeiros mostravam-se muito menos críticos em relação ao Brasil do que costumavam ser 30 anos antes.
Baer diz que, até há pouco tempo, o Brasil tinha uma reputação internacional melhor até do que merecia. “Todo mundo falava: ‘o Brasil é um grande país, o futuro chegou’. Muita gente dizia que o país era a grande esperança dos Brics” [grupo de países que inclui Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. As manifestações mostram que as pessoas estão se dando conta de que as coisas não andam como deveriam andar.” Ele observa, por exemplo, que, apesar dos estímulos naturais esperados de eventos como a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016, a taxa de investimento não aumentou de forma significativa. “Há uma morosidade incrível nos investimentos públicos.” E cita como consequência o crescimento baixo da economia em 2012, quando o PIB aumentou somente 0,9%.
Embora acredite que ainda é boa a imagem do Brasil no exterior, McCann diz que as manifestações acabaram com a visão de que todos os problemas estão resolvidos. “As notícias no exterior eram altamente positivas sobre o Brasil, enquanto os brasileiros já se davam conta de que o crescimento econômico não levara aos resultados utópicos de que algumas pessoas falavam. O Brasil cresceu rapidamente, mas isso não resolveu todos os problemas. Até deixou outros problemas mais claros.”
Green argumenta que, para se compreender o encadeamento de protestos no Brasil, é preciso pensar na relação com “as promessas de uma social-democracia justa e ampla que não estão sendo cumpridas por um governo que diz que tudo está melhorando”. Ele lembra que, enquanto lia os cartazes levantados nas manifestações e tentava entender qual era o sentimento das pessoas, o que mais lhe chamava a atenção era o contraste entre as expectativas dos últimos anos de os governos Lula e Dilma solucionarem grandes problemas sociais e o reconhecimento de que isso não está sendo resolvido rapidamente, nem facilmente. “Acho que havia nas manifestações essa tensão entre expectativa e decepção.” O mesmo se poderia dizer, segundo Baer, da euforia do passado recente, quando o crescimento do PIB foi de 7,5%, em 2010, e da decepção posterior com o fraco avanço da economia.
Certos aspectos das manifestações talvez possam contribuir para o Brasil sair em vantagem na comparação com o que são as reivindicações em outros países. “Uma coisa que me chamou a atenção”, diz Green, é que nenhuma pessoa reivindicava mais emprego”, a grande bandeira levantada em países da Europa. Em sua opinião, a ausência desse tipo de cobrança nas ruas indica que houve mudanças para melhor na economia brasileira em anos recentes.
O fato de as manifestações se terem dado em ambiente de caráter plenamente democrático é visto como bastante positivo por McCann. Ele entende que o Brasil vive uma nova fase da redemocratização, e agora partidos e governantes precisam saber conviver com uma cobrança mais constante dos cidadãos.
“Interessante é que hoje há uma rejeição muito maior da corrupção, como aconteceu com o episódio de políticos que usaram aviões [da FAB] para fins pessoais. Isso era algo totalmente comum nos últimos 25 anos, mas agora as pessoas não toleram mais.”
A energia política liberada nas ruas, em diferentes manifestações de insatisfação, precisaria, num processo de desdobramento natural, ser combinada com um vigor correspondente na realização das mudanças reclamadas. Contudo, Green acha difícil que a reforma política aconteça. “Grande parte da coalizão [que dá sustentação ao governo no Congresso] é garantida pelo PMDB, um dos partidos mais oportunistas que existem no mundo, e que não está interessado em nenhuma reforma de nada que possa prejudicar o privilégio de políticos que vivem só de barganhas.”
Na opinião de McCann, as manifestações servem ao menos para que os grandes partidos políticos reavaliem suas plataformas. “Os brasileiros mais jovens, da nova classe média, não sentem nenhum apego ao PT nem ao PSDB e muito menos a qualquer um dos outros partidos.”
Os protestos poderão incentivar uma disputa mais acirrada na próxima eleição presidencial. “Acho que a percepção é de que vai haver mais competição política e que a reeleição de Dilma não está garantida. Agora há realmente um debate, o que também é algo positivo”, diz McCann.