José Mujica diz que, sem regulamentação, guerra contra narcotráfico será perdida

Evento na Uerj reuniu ao menos 6 mil pessoas, na maioria jovens, que foram ver o líder uruguaio

Por Sérgio Matsuura  e Thiago Jansen, O Globo

Apesar da ameaça de chuva, milhares de pessoas se acotovelaram no início da noite desta quinta-feira na Concha Acústica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para assistir a uma conferência com o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica. Programado para ter início às 18h, o encontro atrasou uma hora, mas o público, formado em sua esmagadora maioria por jovens, manteve a animação com “olas” e gritos a favor da legalização da maconha e do aborto. Como um popstar, o político, atual senador do Uruguai, foi ovacionado ao subir ao palco e retribuiu o esforço dos “fãs” deixando uma mensagem de desprendimento e integração latino-americana.

— Recebam vocês o meu agradecimento. Tenho 80 anos, mas uma vez fui jovem — brincou o ex-presidente uruguaio. — A minha geração não conseguiu, mas vocês têm que seguir levantando a bandeira da igualdade.

Mujica falou sobre a importância da integração entre os povos.

— É para se pensar como espécie, não como países. Os povos da África não são da África, são nossos. Os que morrem tentando atravessar o Mediterrâneo são nossos — disse Mujica. — Sem solidariedade, não há civilização.

A organização do evento não divulgou o público estimado, mas a segurança da universidade informou que o espaço comporta até seis mil pessoas. Um telão foi montado no estacionamento da instituição para que todos pudessem assistir ao discurso de Mujica. E, nas varandas do prédio principal da Uerj, centenas se aglomeraram para ver, mesmo de longe, o político que se transformou em um ícone para os grupos e partidos de esquerda.

Pelas redes sociais, a mobilização foi grande. O evento oficial teve mais de dez mil confirmações no Facebook. Na convocação feita pelo coletivo Marcha da Maconha, na mesma rede social, mais de 11 mil marcaram presença. Inicialmente, o evento seria realizado no Teatro Odylo Costa, Filho, com capacidade para 950 pessoas, mas, devido à grande demanda, foi transferido para a Concha Acústica, um anfiteatro a céu aberto.

DEBATE SOBRE DESCRIMINALIZAÇÃO

Era inevitável que o tema da descriminalização das drogas fosse abordado. Durante o governo de Mujica, em 2013, o Uruguai aprovou uma política de regulação da produção e distribuição legal da maconha, o que o levou a se tornar mundialmente conhecido. Segundo o ex-presidente, a iniciativa não é um incentivo para o consumo, mas uma forma de possibilitar o tratamento dos viciados, sem que haja o encarceramento de milhares de pessoas.

— Não é para dar ao filho e dizer: “use”. É uma praga — ressaltou Mujica. — Mas não podemos vencer o narcotráfico sem essa regulamentação. Estamos perdendo a guerra. Vai dar resultado? Não sabemos. Mas o que sabemos é que temos uma montanha de presos que não precisávamos ter.

A estudante Luísa Rezende, do 3º ano do ensino médio do Colégio Pedro II, saiu direto da aula, por volta do meio-dia, para a Uerj. Ainda com o uniforme da escola, ela e sua amiga Gabrielle Loyola não queriam perder a oportunidade de ver de perto o “visionário” Mujica.

— Nossa juventude está muito conservadora, e o Mujica é o contrário disso. Ele quebrou tabus durante o seu governo — destacou Luísa.

A vinda do político coincide com o momento em que se discute a política de drogas do Brasil. Um julgamento iniciado no Supremo Tribunal Federal (STF) este mês pode resultar na descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal no país, caso a maioria dos ministros da Corte decida que criminalizar o uso de entorpecentes é inconstitucional. O julgamento começou com o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso, a favor da descriminalização. Outros dez membros do Supremo ainda precisam divulgar seus votos. O próximo a decidir será o ministro Edson Fachin, que deve apresentar sua posição até dia 31.

De início, Mujica viria ao Rio apenas para a cerimônia de entrega do prêmio Personalidade Sur 2015, concedido pela Federação de Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul (Federasur), na manhã de ontem. Porém, o próprio uruguaio pediu para ter um encontro com brasileiros, especialmente com jovens universitários.

“O TRÁFICO É PIOR QUE A DROGA”

Logo depois da homenagem da Federasur, em evento fechado na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Mujica enfatizou que o narcotráfico é um problema maior do que a droga em si.

— Começamos fazendo um experimento no Uruguai (com a legalização). Não sabemos o resultado que ele vai dar. O que sabemos é que o que fazíamos não estava dando resultado. Se você quer uma mudança, não siga fazendo sempre o mesmo — afirmou ele. — O que queremos é o fim do tráfico de drogas, porque ele é pior que a droga.

Mujica explicou que, com a regulamentação, aumentam as chances de o cidadão que for diagnosticado como viciado ser tratado.

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— Quando digo regulamentar, quero dizer nos assegurarmos que o consumidor tem a opção de comprar sem precisar recorrer ao narcotráfico. Porque, se ele precisa fazer isso, aí sim é um inferno. Se temos um mundo clandestino, quando se identifica a pessoa que está com vício, já é tarde. Já não podemos tratá-la apenas como doente.

Na saída do evento na ABI, Mujica foi almoçar num pé-sujo na Praça da Bandeira, onde comeu feijoada e rabada com agrião e tomou caipirinha e cerveja.

Imagem: José Pepe Mujica na UERJ, dia 27 de agosto de 2015. Foto: Filipe Peçanha.

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