Camila Nobrega
Do Canal Ibase
Nesta segunda-feira, 9 de março, o Largo da Carioca se transformou em extensão da Câmara dos Deputados, porém, deixando de lado o conservadorismo. No primeiro dia útil após o 8 de março – Dia Internacional da Mulher – a legalização do aborto foi posta em pauta ali, em praça pública. Mas só depois de mais de cem mulheres passarem por cima de um boneco representando o maior inimigo do movimento que pretende pôr o assunto de fato em debate: Eduardo Cunha (PMDB), presidente da Câmara. No mês passado, logo após assumir o cargo, ele afirmou que o aborto legal só iria à votação por cima do cadáver dele. Juntando crítica e humor, as mulheres andaram, batucaram, sapatearam e dançaram até coco (ritmo pernambucano) e funk em cima do boneco que construíram para a data. O objetivo foi levar às ruas esse assunto tão árido, silenciado pela sociedade, embora seja responsável por complicações na saúde de mais de meio milhão de mulheres brasileiras todos os anos e leve à morte dezenas delas.
Houve manifestações contrárias, houve quem passasse e gritasse contra a legalização do aborto. As argumentações religiosas foram as mais recorrentes. No entanto, a atividade transcorreu com alegria e uma multiplicidade de perspectivas feministas. Curiosas, várias mulheres e homens olhavam de longe, alguns se aproximavam: “É, eu nunca tinha pensado assim como ouvi a menina falar no microfone. Eu não faria aborto, tive quatro filhos. Mas não tenho nada a ver com a decisão das outras, né?”, questionou-se a aposentada Deusa Aguiar que passava pelo local e resolveu parar um pouco para entender melhor o assunto.
Uma batucada feminista com representantes de diferentes coletivos se apresentou várias vezes durante a atividade, que contou também com uma esquete com atores do Centro de Teatro do Oprimido, uma roda de coco e a apresentação da cantora Nina Rosa, do bloco Comuna que Pariu.
O tabu do aborto
Somos filhas de tabus. A sexualidade das mulheres, desde meninas, talvez seja o maior deles. O menor sinal de que ela existe e pulsa em muitos casos leva a constrangimentos, ao contrário do que costuma acontecer com os meninos. Pouco mais tarde, à menstruação atribuem nomes como “regras”, “aqueles dias” e algumas aprendem a dizer que estão “incomodadas”. A linguagem faz ali o papel entre o sentir e o sentido, constrangendo, mais uma vez. Todas essas intromissões crescem em nós. E chegam a pontos alarmantes. É o caso do momento de decisão sobre um aborto, escolha que cabe a dois, mas recai apenas sob o corpo da mulher. E que socialmente é encarado como caso de polícia, em vez de saúde pública.
No final de fevereiro, um caso gerou polêmica nacional. Uma jovem de 19 anos buscou o Hospital São Bernardo, no ABC Paulista, após sofrer complicações de uma tentativa de aborto com uso de medicamentos em casa. O médico fez o atendimento, a examinou e chamou a polícia, denunciando a jovem pela prática ilegal do aborto. Ela ficou detida no local, vigiada por policiais e teve que pagar uma fiança de R$ 1 mil. Como ela, 33 mulheres foram presas em 2014 por terem abortado, segundo levantamento da revista Exame. No que diz respeito à saúde, os dados são ainda mais graves. Do total de um milhão de abortos realizados no Brasil por ano, como é estimado, aproximadamente a metade gera complicações que fazem as mulheres buscarem um posto de saúde, em decorrência de procedimentos malfeitos e sem a higiene devida. A maioria dessas mulheres são pobres que não tiveram a possibilidade de pagar por um atendimento de qualidade para interromper a gravidez.
“Toda mulher tem uma tia, mãe, madrinha, irmã ou amiga que um dia fizeram um aborto. Acompanhando as situações de perto, vocês acham que essas pessoas deveriam ser presas? E é justo que as mulheres morram ao recorrer à essa prática, pela falta de estrutura de saúde que possa recebê-las? As mulheres antigas tomavam chá de canela, chá de carqueja. Todo mundo sabe disso. Uma política pública não pode ser definida no campo das religiões e uma decisão individual como essa não pode estar submetida ao Estado”, afirma Rogéria Peixinho, membro da Frente Nacional pelo Fim da Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto no Rio de Janeiro.
Rogéria é também da Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB), uma das participantes da atividade realizada no Largo da Carioca.
Mulheres mais pobres enfrentam riscos maiores
A escolha do aborto como eixo principal se dá em um momento difícil para os movimentos sociais, tendo em vista a composição das Casas Legislativas do País. A eleição de Eduardo Cunha (PMDB) para presidente da Câmara dos Deputados apresenta uma ameaça de retrocesso em temas fundamentais para a garantia de direitos da mulher. Na prática, isso significa risco ainda maior às mulheres mais vulneráveis na lógica social e econômica atual. No que diz respeito ao aborto é simples e claro: quem tem dinheiro paga, busca até outra cidade ou Estado, mas faz um procedimento um pouco mais seguro. Muitas dessas mulheres até preferem manter o assunto em silêncio, para não se exporem. Já as mulheres mais pobres correm um risco muito maior, são expostas a condições precárias em clínicas clandestinas e mal atendidas em postos de saúde e hospitais públicos. Essas não têm escolha, elas já estão expostas. E estarão cada vez mais, se a sociedade não encarar o tema como caso de saúde pública e não de polícia.
Luciene Lacerda, do Instituto Búzios e psicóloga especializada em Saúde Coletiva, vai direto ao ponto: “A sociedade escolha quem pode morrer. E é uma via injusta de vários lados, porque, se a mulher pobre opta por ter um filho, o Estado também não garante creche, escola próxima de qualidade, moradia digna”.
O aborto é mantido em silêncio, então, por quem pode mantê-lo. E, para entender as mulheres mais impactadas, não basta um recorte econômico. É preciso perceber que há também uma questão racial marcada, como ressaltou Luciene no dia da entrevista, em meio ao lançamento da Marcha das mulheres Negras no Rio de Janeiro. Jurema Werneck, também integrante da Marcha, além da ONG Criola, que luta pelo fortalecimento da mulher negra, trouxe a pauta do racismo como um dos pontos centrais a serem trazidos nas comemorações do dia 8 de março: “O racismo é tão naturalizado no Brasil que acaba sumindo em meio a alguns assuntos. Da hora em que a gente acorda até ir dormir, a mulher negra sente a diferença pela cor da pele. Sente o peso da dificuldade de dar comida ao filho, sente o preconceito em cada espaço público, em cada negativa do poder público.”
Embalada pela batucada durante o evento no Largo da Carioca, Larisse Rodrigues, da Liga Brasileira de Lésbicas, também ressaltou o preconceito devido à orientação sexual: “A lesbofobia é muito grave e faz parte de todo esse debate do direito ao nosso corpo”, afirmou, lembrando também o contexto atual do tema no Rio de Janeiro: “Aqui se vive algo dual. Se por um lado há muitos coletivos feministas e deputados que pautam a causa, há também um conservadorismo muito forte, também representado na eleição de deputados. É um desafio ultrapassar tudo isso para levar a questão a sério. Se o preconceito é grave na Zona Sul e no Centro, são as mulheres da periferia que sofrem ainda mais.”
As violências contra a mulher são múltiplas, como ressalta Iara Amora, da Camtra e membro do Fórum de Combate à Violência contra a Mulher no Estado do Rio de Janeiro. “O aborto foi escolhido como pauta este ano, porque nenhum outro movimento leva este tema à frente, senão o feminista. É considerado problema das mulheres, como se só afetasse a elas. A cada dois dias uma mulher morre no nosso país vítima de aborto. Vamos mesmo nos calar sobre isso?”
O aborto é apenas um exemplo direto das violências múltiplas praticadas contra as mulheres. Ainda hoje, 602 milhões de mulheres vivem em países onde a violência contra elas não se considera delito, segundo relatório das Nações Unidas. Mais de 70% das mulheres de todo o mundo sofreram uma experiência física ou sexual que consideraram violenta. E 60 milhões de meninas com menos de 13 anos estão casadas compulsoriamente.
–
Foto: Mulheres “pisam” em Eduardo Cunha / Thauanne Gonçalves