“Estamos entregando quase gratuitamente o valioso patrimônio genético nacional. Com a aprovação do Projeto de Lei, a biodiversidade será utilizada como matéria-prima baratíssima, sem contrapartidas de soberania tecnológica, para um dos setores econômicos que mais geram riqueza no planeta”, alerta o advogado
Por Patricia Fachin – IHU On-Line
“Com a aprovação do Marco da Biodiversidade, no que concerne à exploração do patrimônio genético nacional, o Brasil tornar-se-á uma colônia em que participará do contexto econômico internacional como exportadora de matéria-prima barata e importadora de produtos biotecnológicos acabados”, adverte André de Paiva Toledo à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
De acordo com ele, se os senadores aprovarem o Projeto de Lei 7735/14, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e que deve substituir a Medida Provisória 2186/2001, o Brasil perderá “uma excelente oportunidade de colocar a utilização soberana dos recursos da diversidade biológica no centro do processo de desenvolvimento socioeconômico, erradicação da pobreza e sustentabilidade”.
Ao ler o texto do PL, Toledo comenta que a “impressão que se tem é que o Marco da Biodiversidade foi elaborado para atender aos interesses dos grandes conglomerados biotecnológicos estrangeiros”, visto que a atual proposta sugere a “isenção de toda e qualquer partilha de benefícios por parte das microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais”, permite que “as empresas bioindustriais só começarão a dar algum retorno ao país após o produto final entrar em fase de comercialização” e aceita que, caso venha a surgir algum produto que possa ser comercializado, “a partilha de benefícios se resumiria ao pagamento de royalties entre 0,1% e 1,0% da renda líquida com a comercialização”.
Na avaliação do pesquisador, o PL do Marco da Biodiversidade reforça um contexto de neocolonialismo e, embora mencione a participação das comunidades tradicionais na gestão dos recursos genéticos da biodiversidade, tem sido desenvolvido sem a participação direta das comunidades indígenas e tradicionais, o que contraria a Convenção 169da Organização Internacional do Trabalho. Diante desse cenário, Toledo questiona: “Voltamos ao velho pacto colonial, em que se entregava quase de graça a matéria-prima dos trópicos à metrópole para, em seguida, comprar suas manufaturas produzidas a um valor muito maior?”
A proposta do Marco da Biodiversidade surge para que o Brasil cumpra as metas estabelecidas na Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992, da qual o país é parte. Contudo, o PL está recebendo muitas críticas, entre elas, por se contrapor ao artigo 15, parágrafo 6o da Convenção, “que obriga que as pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos tenham a plena participação de todas as partes contratantes e, na medida do possível, no território dessas mesmas partes”. Na entrevista a seguir, Toledo explica quais são os principais pontos polêmicos do projeto e enfatiza que “ao prever apenas a contrapartida financeira, o PL não cumpre o disposto nos parágrafos 3o e 4o do artigo 16 da Convenção, que garante o acesso à tecnologia ao Estado fornecedor dos recursos genéticos e sua transferência, incluindo tecnologia protegida por patentes e outros direitos de propriedade intelectual”.
André de Paiva Toledo é doutor em Direito pela Université Panthéon-Assas Paris II e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara. É autor dos livros Amazônia: soberania ou internacionalização e Direito Internacional & Recursos Biológicos. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste o Marco da biodiversidade (Projeto de Lei 7735/14) aprovado na Câmara dos Deputados?
André de Paiva Toledo – A Constituição brasileira, na parte referente à ordem social, dedica o artigo 225 ao meio ambiente. Este dispositivo constitucional, dentre outros aspectos, no que nos interessa aqui, atribui ao Poder Público a obrigação de preservar a integridade e a diversidade do patrimônio genético brasileiro, assim como de fiscalizar as instituições de pesquisa que eventualmente trabalhem com componentes desse patrimônio. Vê-se assim que se está diante do princípio da soberania nacional sobre os recursos naturais segundo o qual o Estado titular tem a competência exclusiva de determinar a maneira como será feita a utilização dos recursos biológicos encontrados naturalmente em seu território. Essa determinação se faz por meio de atos administrativos e da legislação, isto é, o Estado, no exercício de sua competência administrativa e legislativa, impõe a todos aqueles que se encontram em seu território, conforme o princípio da igualdade, um sistema uniforme e geral de ação. Em conformidade com os fundamentos do Direito Público, os atos administrativos, embora signifiquem a forma mais patente de exercício do Poder Público, só geram efeitos jurídicos na medida em que se encontram fundados em uma lei. Trata-se do princípio da legalidade, tão importante para se compreender os limites de ação da Administração Pública.
Visto isso, conclui-se que a lei assume uma posição de destaque em termos de referência para a realização de fatos jurídicos em um determinado território nacional. É pela vontade do Estado expressa por meio do Poder Legislativo que se impõem à sociedade os limites à liberdade, que se confundem com a ideia de responsabilidade. A confirmação de que é pela lei que o Estado exerce sua soberania concretamente, de modo a obrigar a prática de determinados atos ou o abandono de determinadas práticas dentro dos limites territoriais de sua competência política, pode ser encontrada no mesmo artigo 225 da Constituição que, no que concerne à utilização do material genético, determina que a utilização do patrimônio nacional far-se-á exclusivamente na forma da lei, dentro de condições que realizem os objetivos definidos soberanamente pelo Estado.
Marco da Biodiversidade: primeiro aspecto
O Marco da Biodiversidade (Projeto de Lei 7735/2014) consiste em se tornar a lei, isto é, um ato de vontade de poder por parte do Estado cujo objetivo é regulamentar o dispositivo constitucional mencionado. É pelo Marco da Biodiversidade que o Brasil pretende conservar o patrimônio genético e fiscalizar as entidades de pesquisa que trabalham com esse patrimônio, assegurando a preservação do meio ambiente como um todo. Essa é a primeira feição do Marco da Biodiversidade, mas não a única. Além do diálogo constitucional, não se pode deixar de mencionar a necessidade de se acoplar sistematicamente o Marco da Biodiversidade com o principal instrumento normativo internacional sobre o tema, que ainda é a Convenção sobre a Diversidade Biológica de 1992, da qual o Brasil é parte. Isso significa que, da mesma forma que a Constituição imputa ao Poder Público a obrigação de preservar o patrimônio genético, o Estado brasileiro, enquanto sujeito de Direito Internacional, também é obrigado a cumprir determinadas normas relativas à utilização da biodiversidade local.
No que se refere ao patrimônio genético, alguns dispositivos específicos da Convenção sobre a Diversidade Biológica devem ser atendidos por todos os Estados que a assinaram e ratificaram. Esta Convenção reconhece, já no preâmbulo, que os Estados têm direitos soberanos sobre os recursos biológicos de seu território ao mesmo tempo que são responsáveis por sua preservação e sua utilização sustentável. Vê-se que estamos diante dos mesmos critérios jurídicos impostos pela Constituição ao Poder Público.
A Convenção inova, por sua vez, em duas questões importantíssimas:
(a) estabelece que o desenvolvimento socioeconômico e a erradicação da pobreza são as prioridades elementares e absolutas dos Estados em desenvolvimento — não por coincidência, sempre ricos em biodiversidade; e
(b) reconhece a estreita dependência de recursos biológicos por parte das muitas comunidades locais e indígenas com estilo de vida tradicional, assim como a importância dessa vida tradicional para o conhecimento de práticas relevantes à preservação ambiental e ao desenvolvimento sustentável.
Patrimônio biológico e o combate do subdesenvolvimento
Isso significa que o patrimônio biológico é tratado não apenas como um objeto a ser preservado no sentido mais ambientalista do termo, mas que ele deve ser utilizado em favor do combate ao subdesenvolvimento, que ainda persiste em inúmeros países ricos em biodiversidade. É por isso mesmo que não podem ser excluídas das análises jurídicas sobre a biodiversidade as implicações culturais existentes entre esse patrimônio e as comunidades locais e indígenas.
Marco da Biodiversidade: segundo aspecto
A Convenção apresenta-nos então como seus objetivos primordiais, além da preservação ambiental e da utilização sustentável — o que também está previsto na Constituição —, a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização do patrimônio genético de forma a garantir aos Estados em desenvolvimento a possibilidade de resolver definitivamente a pobreza, a dependência econômica, a desigualdade social. A própria riqueza biológica deve ser utilizada em favor do desenvolvimento econômico e social. Nada mais justo.
Diante do Direito Internacional, o Marco da Biodiversidade possui também uma segunda feição: ser o instrumento normativo nacional de proteção do conhecimento tradicional associado aos recursos biológicos e de determinação do sistema de acesso ao patrimônio genético brasileiro, que cumpra o princípio do consentimento prévio informado e garanta a efetiva e justa partilha dos benefícios obtidos com as pesquisas biotecnológicas realizadas com matéria-prima brasileira.
IHU On-Line – Quais são os pontos positivos e negativos do projeto?
André de Paiva Toledo – O ponto positivo que podemos mencionar de pronto é o simples fato de existir o Marco da Biodiversidade. Só de ser promulgada uma lei que tenha a pretensão de assegurar a preservação ambiental, a conservação do patrimônio genético, a utilização sustentável desse patrimônio, o respeito aos interesses das comunidades tradicionais e indígenas e a partilha justa e equitativa dos benefícios advindos da pesquisa biotecnológica, é algo a se indicar como ponto positivo. É impressionante que um país considerado dos mais ricos em biodiversidade, como o Brasil, onde se encontram ecossistemas cultural e biologicamente complexos como a Amazônia, o Pantanal e o próprio Cerrado, esteja na segunda década do século XXI sem possuir um instrumento normativo debatido e criado no âmbito do Poder Legislativo.
Embora o Marco da Biodiversidade ainda esteja sendo discutido no Congresso Nacional, o que impede que tratemos o texto do Projeto de Lei como definitivo, do que nos foi apresentado até aqui podemos mencionar como ponto positivo o fato de que o patrimônio genético do Brasil é tratado ali como bem de uso comum do povo, o que reforça a ideia de impossibilidade jurídica de sua privatização, o que não é um detalhe, em tempos de imposição dos ideais do neoliberalismo com suas troikas obcecadas por atender os pretensos anseios de uma entidade mercadológica.
Ainda dentro deste ponto positivo referente à conceituação do patrimônio genético, podemos mencionar também o fato de que as espécies domesticadas são elencadas como partícipes desse conceito, assim como aquelas que se encontram em condições ex situ, isto é, fora do território brasileiro, desde que coletadas em condições in situ (território terrestre, mar territorial, espaço aéreo, plataforma continental e zona econômica exclusiva).
Tem-se aqui, mais uma vez, a reafirmação dos direitos soberanos do Estado sobre os recursos biológicosencontrados naturalmente em seu território, com um adendo importante: uma espécie que se encontra fora do território brasileiro pode ser considerada como componente do patrimônio nacional. Trata-se daquela espécie encontrada em condição ex situ após ser coletada in situ. Percebe-se aqui um interessante efeito extraterritorial dos direitos territoriais, que podemos — de uma maneira simplificadora, mas que temos trabalhado em nossas pesquisas — associar com a ideia de soberania permanente sobre os recursos naturais, um dos pilares da chamada Nova Ordem Econômica Internacional, positivado internacionalmente nos anos 1960 com a onda de descolonização dos países africanos e asiáticos.
Conhecimento tradicional
Outro ponto positivo a ser mencionado é o tratamento que o Marco da Biodiversidade dá ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, integrando-o ao patrimônio cultural brasileiro, que deve ser protegido enquanto riqueza nacional, mesmo que praticado de maneira pontual e específica por comunidade tradicional ou indígena brasileira. Em contradição a esta nacionalização do conhecimento tradicional associado à diversidade biológica, o que é um ponto positivo a nosso ver, percebe-se como ponto negativo a decisão do Legislador de adotar o termo povos indígenas ao invés de populações indígenas ou comunidades indígenas.
Em termos da teoria geral do Direito Internacional, o povo é um dos elementos constitutivos do Estado, junto com o território e a soberania. Se o objetivo do Poder Legislativo é inserir a questão indígena como uma questão de importância nacional, houve um equívoco terminológico, que pode até não ter grandes implicações na interpretação e aplicação desta norma especificamente, mas que, em termos sistêmicos, pode atrapalhar o avanço de outras questões importantíssimas relativas aos indígenas brasileiros, como é o caso da demarcação das terras indígenas.
Desarticular qualquer associação das demarcações de terras indígenas com a ideia de território (outro elemento do Estado) é importante para fazer com que esse debate avance nas instâncias estatais. Aqui vale lembrar a polêmica Proposta de Emenda Constitucional 215/2000, que altera o sistema de demarcação de terras indígenas, possibilitando inclusive a revisão daquelas já demarcadas, ameaçando diretamente não apenas uma conquista do Estado Democrático de Direito, mas o próprio ato jurídico perfeito, protegido pela Constituição.
A nosso ver, teria agido melhor o Legislador se houvesse deixado o termo povo de lado, ainda mais quando se declara ser patrimônio nacional o conhecimento tradicional associado aos recursos genéticos. Apesar da nacionalização do conhecimento tradicional, o Estado brasileiro não é a única parte legitimada em consentir com o acesso ao conhecimento tradicional associado. Este acesso está condicionado também à obtenção do consentimento prévio informado da comunidade que o desenvolveu e o detém.
Contudo, nos termos do Projeto de Lei, este consentimento só é obrigatório se o conhecimento tradicional tiver origem identificável, pois, se for não identificado, independe de consentimento prévio de comunidade tradicional ou indígena. A pergunta que não é respondida pelo Marco da Biodiversidade refere-se à demonstração da possibilidade de identificação ou não do conhecimento tradicional. O grande temor é que um conhecimento tradicional de origem identificada se passe por não identificada ao sabor dos interesses dos agentes envolvidos, em detrimento evidentemente dos direitos das comunidades tradicionais e indígenas.
De qualquer forma, em caso de ser o conhecimento tradicional de origem identificada, as populações indígenas e as comunidades tradicionais que a criam, desenvolvem, detêm ou conservam são titulares do direito de perceber os benefícios da exploração econômica feita por terceiros, direta ou indiretamente. Além disso, devem essas comunidades participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios decorrente desse acesso.
As comunidades tradicionais e indígenas são chamadas a participar do sistema nacional de acesso ao patrimônio genético antes (consentimento), durante (decisão sobre assuntos relacionados) e depois (benefícios) do acesso a seus conhecimentos tradicionais. Esse protagonismo comunitário é também um ponto positivo do Marco da Biodiversidade. Por conta disso, a fim de tornar eficaz a obrigação de obtenção do consentimento prévio e acertar a partilha justa e equitativa de benefícios, é necessária a apresentação do Acordo de Repartição de Benefícios antes de se iniciar, no Brasil, a exploração econômica do produto obtido do acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, mesmo que produzido no exterior.
Combate à biopirataria
Eis que surge outra pergunta: pode ser iniciada no exterior a exploração econômica do produto sem a apresentação prévia do Acordo de Repartição de Benefícios? Infelizmente, sim, visto que o Marco da Biodiversidade é aplicável nos limites territoriais do Brasil, segundo o princípio da soberania do Estado. Nenhuma lei possui efeitos extraterritoriais, salvo se houver acordo internacional a respeito, o que é a exceção à regra. Logo, esta lei, se e depois de promulgada, só será capaz de regular os atos e fatos ocorridos no Brasil. Daí advém a importância do Direito Internacional para tornar efetivo o combate à biopirataria.
Por falar em biopirataria, o Marco da Biodiversidade proíbe todo acesso ao patrimônio biológico e cultural nacional por pessoa natural estrangeira, a fim de evitar as práticas mais elementares e caricaturais de biopirataria em território brasileiro, levadas a cabo por ecoturistas, missionários religiosos ou membros de organizações não governamentais. Qualquer acesso à biodiversidade por pessoa natural estrangeira é considerado ilícito. Visto isso e tendo em vista os termos do artigo 12 do Projeto de Lei, que em nossa opinião é o dispositivo mais importante relacionado à biopirataria, conclui-se que são sujeitos autorizados a ter acesso ao patrimônio genético ou aos conhecimentos tradicionais associados às pessoas naturais ou jurídicas nacionais, sejam estas públicas ou privadas.
Pessoa física estrangeira terá acesso a recursos genéticos
Apesar de ser proibido o acesso por parte de pessoa natural estrangeira, o Marco da Biodiversidade permite o acesso por pessoa jurídica sediada no exterior. Entenda-se aqui companhia biotecnológica sediada fora do Brasil. Isso significa que é possível, segundo o projeto de legislação brasileira — se forem mantidos os termos do projeto de lei —, que uma pessoa jurídica estrangeira tenha acesso direto ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais brasileiros. Para tanto, é necessário o consentimento prévio e expresso por parte do Estado brasileiro. Apesar das significativas tentativas de proteção dos interesses nacionais contra a biopirataria, o Marco da Biodiversidade erra gravemente ao prever a possibilidade de acesso in situ e remessa de amostra para o exterior em favor de pessoa jurídica estrangeira (artigo 12, IV e artigo 13, II). Isso corresponde a duas situações:
(a) uma pessoa brasileira (natural ou jurídica) pode remeter para o exterior componentes da biodiversidade, bastando fazer um cadastro prévio;
(b) uma pessoa jurídica estrangeira pode remeter para o exterior os mesmos componentes, exigindo-se aqui uma autorização prévia.
Se eventualmente o país não detivesse a tecnologia suficiente para manipular a riqueza biológica nacional, o que é falso, tendo em vista o grau de excelência de diversas universidades públicas e privadas brasileiras, seria estratégico e não colonialista, que as instituições estrangeiras (companhias biotecnológicas), associadas ou não a instituição nacional, fossem obrigadas a vir ao Brasil para fazer aqui o que seria feito no exterior. Com isso, seria possível induzir uma conjuntura de rápida modernização dos laboratórios e institutos de pesquisa do Brasil, condição sine qua non de autonomia biotecnológica.
Pela autonomia tecnológica qualquer Estado é capaz de desenvolver livremente alternativas de desenvolvimento socioeconômico e erradicação da pobreza, nos termos da Convenção sobre Diversidade Biológica. Ao contrário, o Estado brasileiro parece querer adotar a via mais fácil, cômoda e por isso mesmo economicamente dependente. Pretende-se simplificar o sistema, facilitando a remessa do patrimônio biológico ao exterior, dificultando a instalação de bases biotecnológicas no Brasil e reforçando as dependências internacionais. Teremos que contar essas perdas no futuro, quando fizermos o balanço dos prejuízos de decisão tão equivocada. Devíamos, ao contrário, traçar regras para o desenvolvimento biotecnológico nacional tendo em vista a emancipação social do povo brasileiro, e não para atender a interesses econômicos imediatos que pouca ou nenhuma importância dão para esta questão.
Biodiversidade como componente econômico
A biodiversidade precisa urgentemente ser vista pelo Estado brasileiro como um componente econômico tão estratégico quanto o são o petróleo, os minérios e a água. O Marco da Biodiversidade vai em sentido contrário ao prever a modalidade exclusivamente monetária da repartição de benefícios. Para piorar, as alíquotas dos repasses implicam em apenas 1% da receita líquida anual obtida com a exploração econômica, podendo chegar a 0,1%, a fim de garantir a competitividade — de quem? Estamos entregando quase gratuitamente o valioso patrimônio genético nacional. Com a aprovação do Projeto de Lei, a biodiversidade será utilizada como matéria-prima baratíssima, sem contrapartidas de soberania tecnológica, para um dos setores econômicos que mais geram riqueza no planeta.
IHU On-Line – Como tem sido feita a exploração do patrimônio genético de plantas e animais nativos no país atualmente? Qual é a legislação que rege esse processo?
André de Paiva Toledo – A norma que rege atualmente a utilização do patrimônio genético brasileiro é ainda a Medida Provisória 2186/2001, cujo objetivo é exatamente o mesmo do Projeto de Lei 7735/2014, qual seja, a regulamentação de dispositivos do artigo 225 da Constituição e da Convenção sobre Diversidade Biológica. O acesso a componentes desse patrimônio biológico é feito, mediante tão somente a autorização do Poder Público, requerido por pessoa jurídica nacional, seja ela pública ou privada. Veja como aqui já se percebe um caráter mais nacionalista da Medida Provisória em comparação com o Projeto de Lei: não há possibilidade de acesso direto de pessoa jurídica estrangeira a elementos da biodiversidade nacional. Só é autorizada a participação de pessoa jurídica estrangeira em expedição para acesso ao patrimônio biológico em parceria com instituição pública brasileira, sendo que a coordenação das atividades de bioprospecção fica sempre a cargo desta. Ademais, embora não seja uma obrigação estrita, a Medida Provisória estabelece, com razão, que todas as pesquisas relacionadas a componentes da biodiversidade brasileira devem ser realizadas de preferência no Brasil.
É lamentável que o Projeto de Lei não tenha previsto e defendido a importância de o território brasileiro ser a sede das pesquisas biotecnológicas feitas com matéria-prima nacional. Pela norma em vigor, é possível a remessa de componente do patrimônio genético de pessoa jurídica brasileira para pessoa jurídica estrangeira, desde que autorizada previamente pelo Estado. De toda forma, é necessária a participação ativa de instituição nacional. Não é possível que pessoa jurídica estrangeira remeta ao exterior componentes da biodiversidade brasileira sem a participação de um nacional. Caso haja conhecimentos tradicionais associados aos componentes do patrimônio genético objeto de interesse, é evidentemente necessária a autorização prévia do Brasil, isto é, a expressão do consentimento prévio informado e fundamentado. Contudo, só a autorização do Poder Público não basta. Aqui, o acesso só será considerado regular quando houver também a anuência prévia da comunidade tradicional ou indígena titular dos referidos conhecimentos tradicionais.
Em se tratando de comunidades indígenas, o regime de 2001 obriga a intervenção da Funai. Isso significa em termos jurídicos que, mesmo em caso de conhecimento tradicional, quem dá a última palavra é o Estado brasileiro, ficando a comunidade indígena com o direito tão somente de anuir, mesmo assim sob a tutela do órgão indigenista oficial. Se houver a possibilidade de uso comercial do produto acabado a partir da manipulação de componentes biológicos, o acesso a este patrimônio genético e conhecimento tradicional associado fica condicionado à assinatura do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios. Em termos de repartição de benefícios, a instituição estrangeira que receber amostra de componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado deve facilitar o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia à instituição nacional responsável pelo acesso e remessa da amostra e da informação sobre o conhecimento, ou à instituição por esta indicada. A questão tecnológica é o grande trunfo dos acordos de acesso, merecendo um capítulo próprio dentro da legislação. O aspecto monetário, embora seja previsto em termos de divisão de lucros e pagamento de royalties, não ocupa uma posição prevalente, isto é, não é possível apenas o benefício financeiro. Este deve sempre se articular com a transferência de tecnologia.
IHU On-Line – Em que aspectos o Marco da Biodiversidade estabelece novas regras à pesquisa e exploração do patrimônio genético de plantas e animais nativos no país? Que mudanças o texto propõe em relação à legislação anterior?
André de Paiva Toledo – O Marco da Biodiversidade traz algumas inovações ao sistema vigorando desde 2001 sobre a utilização dos componentes do patrimônio genético de plantas e animais nativos do Brasil. Podemos mencionar algumas delas. Primeiro, a distinção entre autorização e cadastro. Não havia esta última figura no regime de 2001.
Todo acesso e qualquer remessa de componentes da biodiversidade brasileira deviam — devem ainda, pois o Marco da Biodiversidade não está em vigor — ser autorizados, isto é, ser objeto de um ato administrativo permitindo, sob condições específicas, o acesso e a remessa de patrimônio genético.
Com o regime de 2015, surgiu a figura do cadastro de acesso ou remessa de patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado, que é instrumento declaratório obrigatório das atividades de acesso ou remessa de patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado. Para alguns casos não é mais necessária a autorização, mas simples cadastro. Quais são esses casos?
São aqueles referentes a acesso e remessa de patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado:
(a) praticados por pessoa jurídica estrangeira associada à instituição nacional;
(b) praticados por pessoa natural ou jurídica nacional, pública ou privada.
No regime de 2001, eram juridicamente proibidos o acesso e a remessa ao exterior realizados por pessoa jurídica estrangeira, mesmo que associada a instituição nacional. O que se permitia era a remessa de pessoa jurídica brasileira à instituição estrangeira associada a ela. Agora, basta a associação com pessoa jurídica brasileira para que a pessoa jurídica estrangeira possa remeter componentes da biodiversidade para o exterior com o mero cadastro. Se a mesma pessoa jurídica não estiver associada a qualquer instituição nacional, mesmo assim ela poderá remeter para fora do país os componentes biológicos. Para tanto, há que se obter uma autorização, única figura existente no regime da Medida Provisória. Em 2001, a autorização era essencial para a remessa por parte de pessoa jurídica brasileira associada. Em 2015, a autorização será essencial para a remessa por parte de pessoa jurídica estrangeira sem qualquer vínculo com o Brasil.
Autonomia ou perda de direitos?
Outra inovação diz respeito ao conhecimento tradicional associado. De acordo com o regime de 2001, o Estado reconhece o direito das comunidades para decidir sobre o uso de seus conhecimentos, que comporá o patrimônio cultural brasileiro. Mas seu acesso só será autorizado pelo Estado à instituição nacional após a anuência prévia da comunidade indígena envolvida, ouvido o órgão indigenista oficial.
Agora, no regime de 2015, o Estado continua a reconhecer o direito das comunidades de participar da tomada de decisões nacionais sobre assuntos relacionados à preservação e utilização sustentável de seus conhecimentos tradicionais associados. Entretanto, não mais é necessária a intervenção do órgão indigenista oficial, o que representa uma significativa emancipação das comunidades indígenas, embora a questão seja polêmica.
A dispensa da Funai nas negociações de acesso a conhecimentos tradicionais é ou não uma conquista dos indígenas? Eis uma questão que nos parece sensível na medida em que, muitas vezes, uma aparente flexibilização dos procedimentos jurídicos significa a perda de proteção e o aumento de risco de danos à parte mais frágil, que no caso é representada pelas comunidades indígenas. De toda forma, objetivamente, extingue-se de vez a figura da anuência, que não prevalecia antes, quando em confronto com a autorização estatal, e agora se reconhece às comunidades o direito de consentir previamente.
Quis o Legislador dizer com isso que não há mais hierarquia entre o consentimento prévio do Estado e o consentimento prévio das comunidades titulares de conhecimentos tradicionais associados? Em certo aspecto, parece que sim. Se não há o consentimento das comunidades, o consentimento do Estado não é possível. Aquele é condição deste, embora este prevaleça sobre aquele. Isso significa que o Estado pode vetar aquilo que foi autorizado pela comunidade tradicional ou indígena. De toda forma, obtido o consentimento da comunidade indígena ou tradicional, cabe em seguida o consentimento do Estado, tendo em vista ser este o titular da soberania nacional sobre os recursos naturais. Tal consentimento se dá pela forma simplificada do cadastro ou pela forma tradicional da autorização. Se houver vínculo com pessoa brasileira, bastará o cadastro de acesso e remessa de conhecimento tradicional associado, previamente consentido pelas comunidades titulares desse conhecimento.
Internacionalização de pesquisas
Outra mudança entre os regimes é uma maior internacionalização da pesquisa e exploração dos recursos genéticos de plantas e vegetais do Brasil, na medida em que no texto de 2015 não se encontra algo nem mesmo próximo daquilo que se tem no artigo 16, parágrafo 7o da Medida Provisória 2186/2001, que defendia a realização da pesquisa e utilização preferencialmente no território nacional. Para completar o exposto, dentro desse contexto de submissão aos interesses do capital internacional, deve-se mencionar que a possibilidade de uma contrapartida exclusivamente financeira vai de encontro ao disposto no regime de 2001, que dá destaque proeminente à transferência de tecnologia como mecanismo fundamental da partilha de benefícios. Tecnologia sempre valeu bem mais do que dinheiro para quem almeja emancipar-se em qualquer contexto social.
IHU On-Line – Como o texto está repercutindo no meio jurídico, especialmente entre os profissionais ligados ao meio ambiente?
André de Paiva Toledo – Com os colegas que tenho conversado ou cujas opiniões tenho lido, a impressão que se tem é que o Marco da Biodiversidade foi elaborado para atender aos interesses dos grandes conglomerados biotecnológicos estrangeiros. Fato que corrobora isso é a posição oficial dos órgãos associativos da indústria farmacêutica e de cosmético, que têm defendido abertamente a aprovação do projeto de lei. Um dos problemas frequentemente mencionados quando se trata, no mundo jurídico, do Projeto de Lei 7735/2014 e que não mencionei antes por achar desconexo com minha linha de pesquisa, refere-se à previsão no Projeto de Lei da isenção de toda e qualquer partilha de benefícios por parte das microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais, visto que nada impediria as grandes companhias bioindustriais de se desdobrarem em sociedades simples com o intuito de se valer desta previsão legal. Ainda sobre a partilha de benefícios, há descontentamento quanto ao fato de que as empresas bioindustriais só começarão a dar algum retorno ao País após o produto final entrar em fase de comercialização. Até aí, nada seria devido ao Brasil pelo acesso e utilização de sua riqueza biológica.
Partilha de benefícios é resumida ao pagamento de royalties
Não bastasse isso, se vier a surgir um produto acabado pronto para ser comercializado, a partilha de benefícios se resumiria ao pagamento de royalties entre 0,1% e 1,0% da renda líquida com a comercialização. Voltamos ao velho pacto colonial, em que se entregava quase de graça a matéria-prima dos trópicos à metrópole para, em seguida, comprar suas manufaturas produzidas a um valor muito maior? Não se pode compreender a adoção de um projeto de lei tão contrário aos interesses nacionais — garantidos expressamente na Constituição e no Direito Internacional! —, a não ser no contexto do neocolonialismo.
Critica-se também o fato de o Projeto de Lei ter sido desenvolvido sem a participação direta das comunidades indígenas e tradicionais, o que contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é parte. Fora isso, há críticas mais específicas quanto ao procedimento legislativo adotado. Não se entende, por exemplo, a razão da adoção do regime de urgência constitucional imposto ao projeto. Para muitos, inclusive nós, o tema é suficientemente sensível e estratégico para que seja debatido em ritmo de urgência e sem que se ouça a voz dos diversos setores da comunidade científica, assim como de representantes de diversos movimentos ecológicos e sociais.
IHU On-Line – Há contradições jurídicas no texto aprovado? De que tipo?
André de Paiva Toledo – O texto aprovado na Câmara dos Deputados, remetido ao Senado em 12.02.2015, possui contradições com o sistema jurídico que o sustenta. Como já vimos, este Marco da Biodiversidade só se justifica na medida em que pretende atender ao disposto na Constituição e na Convenção sobre Diversidade Biológica, que são mencionadas expressamente no Projeto de Lei. Mas é evidente que a nova lei deve estar em harmonia com outras normas jurídicas vigentes sobre o tema, como, por exemplo, a já mencionada Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata da obrigação da participação efetiva das comunidades indígenas em projetos que interfiram diretamente em seu modo de vida.
Levando-se em conta tão somente os dispositivos que pretensamente são regulamentados pelo Projeto de Lei 7735/2014, ao compará-los com o conteúdo do Marco da Biodiversidade, concluímos que a simplificação ou flexibilização adotada para o processo de acesso e remessa de componentes do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado choca-se frontalmente com a parte final do artigo 225, II da Constituição, que imputa ao Poder Público o dever de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material biológico.
Críticas ao novo regime
Com o novo regime jurídico, o Poder Público só verificará previamente as condições de acesso e remessa em caso de participação exclusiva de pessoa jurídica estrangeira não associada à instituição nacional. Nos demais casos, só se exigirá a apresentação da comprovação de adequação legal da prática de acesso e remessa após a obtenção do produto acabado, caso venha a ser explorado economicamente em território brasileiro.
Pode ser que o produto venha a ser obtido no exterior a partir do trabalho realizado em instituição estrangeira, seja patenteado segundo o sistema jurídico local e o Brasil não se beneficie em nada por isso. Neste caso, estaremos em um caso de biopirataria, dentro da lógica do sistema internacional da propriedade intelectual. Pelo texto aprovado na Câmara dos Deputados, caberá tão somente ao IBAMA e ao Comando da Marinha realizar o trabalho de combater os eventuais atos ilícitos depois de iniciado o acesso.
Está-se diante de um retrocesso evidente em contradição com a norma constitucional. Se fizermos uma comparação com os dispositivos da Convenção sobre Diversidade Biológica, as contradições também existem. Este instrumento normativo internacional determina que, para todo acesso, haja uma repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. Ao determinar que as pequenas empresas são isentas da partilha de benefícios, o Marco da Biodiversidade contradiz o texto da Convenção. Ao estabelecer que a partilha de benefícios ocorrerá apenas na fase de comercialização do produto acabado e corresponderá a um montante igual à aplicação da alíquota de 0,1% a 1,0% sobre a renda líquida da sua comercialização, não se está atendendo o objetivo do artigo 1oda Convenção, nem o disposto no artigo 15, parágrafo 7o da mesma Convenção, que determina ser partilha justa e equitativa não apenas os benefícios derivados de sua utilização comercial, mas também os resultados da pesquisa e o desenvolvimento dos recursos genéticos.
A comercialização do produto acabado é apenas um entre tantos outros benefícios que devem ser compartilhados entre as partes. Ao se permitir a remessa de componentes da biodiversidade nacional para o exterior sem a participação ativa de instituição brasileira, ao não prever a necessidade da realização das pesquisas em território nacional, o projeto de lei contrapõe-se ao artigo 15, parágrafo 6o da Convenção, que obriga que as pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos tenham a plena participação de todas as partes contratantes e, na medida do possível, no território dessas mesmas partes. Por fim, ao prever apenas a contrapartida financeira, o projeto de lei não cumpre o disposto nos parágrafos 3o e 4o do artigo 16 da Convenção, que garante o acesso à tecnologia ao Estado fornecedor dos recursos genéticos e sua transferência, incluindo tecnologia protegida por patentes e outros direitos de propriedade intelectual.
IHU On-Line – O texto aprovado na Câmara recebeu algumas críticas. As críticas são legítimas? Pode mencionar algumas?
André de Paiva Toledo – O texto do projeto de lei aprovado na Câmara recebeu e continua a receber inúmeras críticas. Na maioria dos casos, consideramo-las legítimas, apesar dos excessos normais quando se está diante de matéria tão polêmica. Por exemplo, tivemos notícia de opinião de organizações de defesa dos direitos indígenas, que têm considerado um retrocesso o tratamento dado às comunidades tradicionais e indígenas pela nova legislação.
Disso discordamos, pois entendemos que, no que diz respeito exclusivamente à posição dessas comunidades no processo, garantiu-se uma participação mais efetiva e livre do que era previsto em 2001. Se se tratar, por sua vez, de crítica ao modelo de participação dessas comunidades indígenas no processo legislativo de construção do Marco da Biodiversidade, nisso concordamos. As críticas são sempre criticáveis. As divergências fazem felizmente parte do debate democrático.
IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, o texto aprovado na Câmara incluiu uma emenda apresentada pelo PSC, que anistia algumas centenas de milhões de reais em multas anteriormente aplicadas por atividades irregulares praticadas por empresas em biomas brasileiros, a chamada biopirataria. Pode comentar esse aspecto do texto? Quais as razões dessa proposta?
André de Paiva Toledo – O artigo 40 do texto aprovado na Câmara determina que, em um ano, a partir da entrada em vigor da nova lei, aquela pessoa que, de 30.06.2000 até a data de início da vigência, teve acesso ou fez remessa ao exterior de componentes biológicos e de conhecimentos tradicionais associados, basta assinar um Termo de Compromisso para regularizar sua situação junto ao Poder Público. Esta assinatura suspende a aplicação e a exigibilidade das sanções cometidas até a véspera da entrada em vigor da nova lei (artigo 43). Se o acesso tiver ocorrido para fins de pesquisa, nem a assinatura do referido termo é necessária, basta regularizar-se por meio de cadastro ou autorização. Ao aprovar o destaque do Partido Social Cristão (PSC) ao Projeto de Lei 7735/2014 o Plenário da Câmara dos Deputados inseriu a anistia das multas como consequência do cumprimento do Termo de Compromisso e, no caso de instituição de pesquisa, nem esse requisito é necessário. Eis que surge o ponto de sua pergunta. Esse cadastro e autorização extinguem a exigibilidade das sanções administrativas previstas na Medida Provisória 2186/2001, desde que a infração tenha sido cometida até a véspera da entrada em vigor do Marco da Biodiversidade.
Essas sanções, que se encontram especificadas no Decreto 5459/2005, referem-se especificamente à multa. Seja por suspensão da exigibilidade, seja por extinção, fato é que o texto aprovado desses artigos do Projeto de Lei tem como consequência a anistia de todos aqueles que durante 15 anos praticaram irregularmente o acesso e a remessa de amostras da biodiversidade brasileira. Os defensores do Termo de Compromisso entendem que se trata de um mecanismo que pretende estabelecer novos padrões de ação fundados em uma nova legislação, teoricamente mais clara, certa e segura, em substituição ao acúmulo de sanções instituídas em um período de nebulosidade normativa. Não procede este argumento, uma vez que o regime de 2001 é tão claro sobre o sistema de consentimento prévio informado e partilha de benefícios como o é o regime de 2015. Trata-se de uma verdadeira anistia, que tem por objetivo capitalizar as instituições que pesquisam e utilizam elementos da diversidade biológica.
IHU On-Line – A quais interesses esse novo texto está atendendo?
André de Paiva Toledo – O Decreto 5459/2005 estabelece no artigo 10 que a sanção de multa pode ser aplicada às pessoas física e jurídica que tenham cometido infração administrativa contra o patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado. Com efeito, em caso de acesso a componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica sem autorização ou em desacordo com aquela obtida, a multa para pessoa jurídica é arbitrada entre R$ 10 mil e R$ 100 mil. Já no caso de pessoa física, a multa é bem menor, entre R$ 200,00 e R$ 5.000,00. Se o acesso ao patrimônio genético tiver ocorrido para fins de bioprospecção, a multa para pessoa jurídica pode chegar a R$ 10 milhões. Percebe-se então que os valores das multas para as pessoas jurídicas são bem maiores do que aquelas aplicadas a pessoas naturais.
Ademais, a biopirataria é majoritariamente praticada por agente físico em nome de pessoa jurídica. Daí o fato de o artigo 12 do referido Decreto determinar que a sanção de multa possa chegar a R$ 50 milhões, se a infração for cometida por pessoa jurídica ou com seu concurso. Isso significa que mesmo o ato daquele infrator, pessoa natural, que não é estatutariamente vinculado à pessoa jurídica, pode acarretar a responsabilidade da pessoa jurídica, se esta de alguma forma concorreu para que a infração se materializasse.
Diante disso, é forçoso concluir que os grandes beneficiados com a anistia prevista no artigo 40 e seguintes do Marco da Biodiversidade são as pessoas jurídicas. Dentre estas, destacam-se por óbvio as grandes instituições de pesquisa, nacionais e estrangeiras. É em nome dos interesses financeiros dessas instituições que o novo texto foi inserido no corpo do projeto de lei.
IHU On-Line – Outro ponto do texto bastante comentado é o de que os laboratórios terão autorização prévia em casos de apropriação de recursos naturais em terras indígenas e tradicionais. Como o senhor avalia esse aspecto do texto e quais as consequências disso?
André de Paiva Toledo – O que você chama de autorização prévia é o que a lei indica como cadastro de acesso e remessa, isto é, um procedimento simplificado em que o interessado em ter acesso e remeter para o exterior componentes do patrimônio genético brasileiro não requer o consentimento prévio fundamentado do Estado, titular da soberania nacional sobre os recursos biológicos, mas preenche um cadastro, que lhe autoriza automaticamente a praticar o ato de acesso ou remessa.
Já vimos acima os problemas e as contradições jurídicas da flexibilização do consentimento prévio do Estado de origem dos recursos biológicos. Esse sistema do cadastro de acesso e remessa é válido não apenas nas terras indígenas e tradicionais, mas em qualquer ponto do território brasileiro. Basta apenas que o interessado seja pessoa brasileira (natural ou jurídica) ou pessoa jurídica estrangeira associada à instituição brasileira. No entanto, no que se refere especificamente às comunidades indígenas e tradicionais, para que seja considerado regular o acesso a seus conhecimentos tradicionais, é necessário que tais comunidades consintam previamente com sua realização. Neste caso, haveria um duplo consentimento prévio:
(a) o primeiro dado pelas comunidades titulares do conhecimento;
(b) o segundo dado pelo Estado.
O problema é que o sistema do cadastro faz com que o Estado abra mão de fazê-lo expressamente e de maneira fundamentada, como previsto na Convenção sobre Diversidade Biológica. Daí a impressão de que os laboratórios terão uma espécie de autorização prévia, o que de fato acontece. Podemos, por fim, concluir que os laboratórios brasileiros e os estrangeiros associados à instituição brasileira terão autorização prévia para acessar e remeter para o exterior componentes do patrimônio biológico nacional.
IHU On-Line – Que ênfase o texto aprovado dá para a participação das comunidades indígenas e povos tradicionais na manutenção do patrimônio genético?
André de Paiva Toledo – No texto do Projeto de Lei 7735/2014 aprovado na Câmara dos Deputados e remetido há alguns dias ao Senado, encontra-se expressamente a menção ao reconhecimento do direito das comunidades tradicionais e indígenas de participar da tomada de decisões, no âmbito nacional, acerca de questões relativas à preservação e utilização sustentável de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do país, a fim de bem regulamentar o artigo 225 da Constituição e a Convenção sobre Diversidade Biológica. Trata-se evidentemente de uma tentativa por parte do Estado em atender à demanda histórica dessas comunidades por participação ativa, direta e livre no processo de determinação de aspectos normativos referentes ao uso alheio dos conhecimentos tradicionais associados e a consequente partilha justa e equitativa dos benefícios daí advindos.
O texto do Projeto de Lei prevê a participação direta, isto é, sem a participação obrigatória de órgão indigenista oficial — o que é motivo de indagação sobre os reais benefícios aos indígenas — das comunidades nas negociações dos acordos de acesso e partilha, concede estatuto de consentimento prévio ao ponto de vista dessas comunidades e lhes garante também a participação na gestão dos benefícios compartilhados. De fato, o artigo 10 garante a essas comunidades o direito de ter reconhecida sua contribuição para o desenvolvimento e conservação, perceber os benefícios pela exploração econômica do conhecimento tradicional associado, usar ou vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado.
IHU On-Line – Como a questão da biopirataria é tratada no texto?
André de Paiva Toledo – A biopirataria não possui um sentido unívoco. Há uma interpretação que leva em conta o Direito Internacional, outra que se funda nos direitos de propriedade intelectual e uma terceira que tem por parâmetro o Direito Interno. Visto ser o Marco da Biodiversidade um projeto de norma do Direito brasileiro, podemos afirmar, com base na terceira interpretação da noção de biopirataria, que esta se dá com o acesso ou a remessa para o exterior de amostra da biodiversidade local contrariamente ao previsto na legislação interna. Sendo assim, deve-se procurar no texto do projeto de lei os dispositivos que implementam o procedimento de acesso, remessa e exploração econômica de componentes do patrimônio genético do país. Passarão a estar sujeitas às exigências do Marco da Biodiversidade, assim como às normas do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), órgão do Ministério do Meio Ambiente, a quem compete subsidiariamente estabelecer normas técnicas, diretrizes e critérios de elaboração e cumprimento do Acordo de Repartição de Benefícios, o acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, a remessa de componentes do patrimônio biológico brasileiro e a exploração econômica do produto ou processo obtido da utilização da matéria-prima biológica nacional.
A primeira vedação é o acesso por parte de pessoa natural estrangeira.
(a) Se vier a ocorrer pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado sobre amostra de patrimônio genético por pessoa natural estrangeira, está-se diante de um caso de biopirataria — no sentido do Direito Interno.
(b) Se o acesso feito por pessoa natural ou jurídica brasileira não for previamente cadastrado, há biopirataria.
(c) Se o acesso feito por pessoa jurídica associada à instituição brasileira não for previamente cadastrado, há biopirataria.
(d) Se a remessa ao exterior de componentes do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado por pessoa natural ou jurídica brasileira assim como por pessoa jurídica estrangeira associada a instituição nacional não for previamente cadastrada, há biopirataria.
(e) Se o acesso ou remessa feito por pessoa jurídica estrangeira não associada a instituição nacional nem for autorizado, isto é, sem a prática pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (pesquisa) ou pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (desenvolvimento tecnológico) de um ato administrativo que permite, sob condições específicas, a realização do ato, há biopirataria.
(f) Se houver exploração econômica de produto acabado obtido do trabalho sobre o recurso biológico ou cultural protegido sem a notificação prévia do produto junto ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético ou a apresentação do Acordo de Repartição de Benefícios, em até 365 dias da referida notificação, há biopirataria.
IHU On-Line – O texto aprovado na Câmara dialoga em alguma medida com o Protocolo de Nagoya?
André de Paiva Toledo – O Protocolo de Nagoya foi firmado em 2010 como um instrumento jurídico de implementação da obrigação de repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização do patrimônio genético, prevista na Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992. O Protocolo de Nagoya surgiu como um mecanismo de realização da erradicação da pobreza mundial e do desenvolvimento sustentável por meio da transferência de biotecnologia relevante. Embora o Brasil tenha assinado o Protocolo em 02.02.2011, ainda não o ratificou. Apesar disso, podemos dizer que o Marco da Biodiversidade dialoga com o Protocolo, até mesmo pelo fato de este instrumento ser vinculado ao artigo 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica, um dos dispositivos a ser regulamentado pela nova lei. Entretanto, esse diálogo nem sempre é harmonioso, havendo muita dissintonia entre os instrumentos normativos. Nesse sentido, pode-se mencionar que o Protocolo tem como objetivo a partilha de benefícios da utilização, aplicação subsequente e comercialização.
Embora o Projeto de Lei preveja a partilha de benefícios, este só ocorrerá no último caso: a comercialização, restringindo significativamente as possibilidades de ganhos do Brasil e beneficiando o setor empresarial biotecnológico. Esses benefícios podem, segundo o Protocolo, ser monetários e não monetários. Aqui, entendemos que os benefícios podem ser divididos em monetários e não monetários, mas não separados em monetários ou não monetários, como se depreende da leitura do Projeto de Lei. Por isso, as partes do Protocolo cooperarão a fim de atingir o objetivo de acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para Estados em desenvolvimento de modo a permitir o desenvolvimento socioeconômico, a erradicação da pobreza e o fortalecimento de uma base sólida científica para a realização dos objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica.
Previsões do Protocolo de Nagoya
O Protocolo prevê também que os benefícios decorrentes da utilização do conhecimento tradicional associado a recursos genéticos sejam compartilhados de forma justa e equitativa com as comunidades indígenas e locais detentoras. Além disso, de acordo com o princípio da soberania nacional sobre os recursos naturais, o acesso a recursos genéticos será sujeito a consentimento prévio informado do Estado de origem de tais recursos. Para tanto, cada Estado definirá internamente o sistema que assegure que seja obtido o consentimento prévio informado ou a aprovação e o envolvimento de comunidades indígenas e locais para acesso aos recursos genéticos.
Entendemos que o termo aprovação do Protocolo equivale ao cadastro do Projeto de Lei. Não há necessidade, segundo o Protocolo, que o Estado de origem dos recursos consinta previamente de modo fundamentado, podendo para tanto simplesmente aprovar. É este também o sentido do artigo 15, parágrafo 5o da Convenção, segundo o qual oacesso aos recursos biológicos está sujeito ao consentimento prévio fundamentado do Estado provedor desses recursos, salvo se determinado de outra forma por esse Estado. Mas isso não significa que o Estado possa se omitir do papel de fiscalizar a utilização de seu patrimônio genético. Para tanto, nos termos do Protocolo, os Estados devem instituir pontos de controle para receber informação relevante relacionada a consentimento prévio informado, a fonte do recurso genético, o estabelecimento de termos mutuamente acordados ou utilização de recursos genéticos.
Cada Estado deve exigir que os provedores dos recursos genéticos forneçam a informação em um determinado ponto de controle, tomando as medidas necessárias em caso de descumprimento. Percebe-se assim que, apesar de possibilitar um sistema simplificado de consentimento prévio estatal, o Protocolo obriga os Estados partes a manterem um sistema público que concentre as informações acerca do sistema, o que nos termos do Projeto de Lei fica a cargo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.
IHU On-Line – Caso o texto seja aprovado no Senado, o que vislumbra em relação ao uso do patrimônio genético da biodiversidade brasileira?
André de Paiva Toledo – Se o Senado aprovar o Projeto de Lei como lhe foi enviado da Câmara dos Deputados, o Brasil passará a ter um marco legal sobre o acesso ao patrimônio genético nacional e ao conhecimento tradicional associado mais internacionalizado do que o existente com a Medida Provisória 2186/2001, que recebia muitas críticas por não fornecer ao país os mecanismos normativos suficientes para utilizar sua biodiversidade soberanamente. Com a aprovação do Marco da Biodiversidade, no que concerne à exploração do patrimônio genético nacional, o Brasil tornar-se-á uma colônia em que participará do contexto econômico internacional como exportadora de matéria-prima barata e importadora de produtos biotecnológicos acabados. Se entrar em vigor a nova lei, nós, brasileiros, teremos perdido uma excelente oportunidade de colocar a utilização soberana dos recursos da diversidade biológica no centro do processo de desenvolvimento socioeconômico, erradicação da pobreza e sustentabilidade.
É inadmissível que um Estado que se pretende soberano, considerado uma das maiores potências ecológicas do planeta, decida livremente — sem o jugo de uma potência militar colonial — dispor de seus recursos biológicos através de um sistema que abdica do consentimento prévio fundamentado, que não prevê a partilha de benefícios em fases anteriores à comercialização do produto acabado, que adota o sistema de isenção de partilha para pequenas empresas, que institui uma alíquota única de 1% de royalty sobre a renda líquida do comércio de todos os produtos obtidos com a matéria-prima nacional, podendo ser reduzida a 0,1% a fim de garantir competitividade às empresas, que não exige ser o trabalho de obtenção de produtos realizado em território nacional. O povo brasileiro merece muito mais.
O povo brasileiro, deve ser consultado, se quer entregar o nosso patrimonio biológico à multinacionais . O assunto é de maxima importancia pela riqueza que devemos proteger em nosso território.