Vindo de Porto Alegre nessa quinta-feira, acompanhamos dois bloqueios de caminhões. Um deles na altura de Sombrio estava muito grande. Os veículos parados no acostamento juntavam os motoristas que, ao primeiro sinal de caminhão trafegando, já se colocavam no meio da pista, insistindo para que parasse. Os ônibus e carros de passeio estavam com o passe livre. Entre os manifestantes, o instrumento mais visível era o celular. Ou estavam se comunicando via internet, ou fazendo fotos. Para eles, esse é um movimento histórico que foi se fazendo assim, pelo boca-a-boca.
Na pauta estão: a diminuição do preço do diesel, uma tabela fixa para o preço do frete, a aprovação sem vetos da Lei do Caminhoneiro, que já teve o aval do Congresso, e maior cuidado com a estrutura das estradas. Alguns desses itens tem ligação direta com o governo federal, outros são de competência dos grandes empresários de transporte. E, também, alguns dos pontos da pauta são demandas importantes, que dizem respeito à segurança e a garantia de vida dos caminhoneiros. Mas, por outro lado, alguns pontos da Lei do Caminhoneiro, que eles querem aprovação sem vetos, são, contraditoriamente, bastante complicados no que diz respeito à segurança e à vida.
No caso da estrutura das estradas, ninguém melhor do que essa categoria para saber como é necessário um investimento generoso. Alguns caminhos são intransitáveis, outros parecem crateras na lua. Segundo a Confederação Nacional dos Transportes, pelo menos 75% das estradas são consideradas deficientes. Estradas estratégicas, que são corredores de produção carecem de manutenção e são um perigo cotidiano para esses trabalhadores e para qualquer cidadão. Dados também da CNT dão conta de que acontecem perto de 100 mil acidentes ao ano, com 12 mil mortes só com transportes de carga.
No Brasil, 61% da produção é transportada pelo transporte rodoviário, o que corresponde a 485,6 bilhões de TKU (Toneladas por quilometro útil). E, como esse é um país continental, os números são gigantescos. Em 2013, só em grãos, os caminhões transportaram 183 milhões de toneladas. A malha rodoviária é de aproximadamente 1,8 milhões de quilômetros, contabilizando 146 mil rodovias federais e estaduais asfaltadas. Por isso, impacta de maneira tão arrasadora a manifestação que bloqueia os transportes de carga em vários estados do país.
Nesse cenário de abandono das estradas e risco de vida não parece estranho uma manifestação dessa natureza. É conhecida a sofrida vida dos trabalhadores que muitas vezes recorrem a energéticos e drogas para poder cumprir seus horários. Agora, o aumento do preço do diesel e a consequente organização dos empresários do setor, foram o estopim para que de todos os cantos do país surgissem trabalhadores revoltados, querendo melhor preço para o frete e a queda do preço do diesel.
A isso se somou a reivindicação da Lei dos Caminhoneiros, aprovada pelo congresso, que tem elementos muito complicados para todos aqueles que usam as estradas. Na nova lei, o horário de trabalho, de oito hora, pode ser expandido para mais quatro, permitindo que um motorista dirija até 12 horas seguidas. Segundo informações de peritos em acidentes de trânsito, depois da nona hora os riscos de acidente aumentam muito e passadas doze horas, eles triplicam.
Outra mudança na lei foi passar de quatro para cinco horas e meia, a permissão para horas contínuas ao volante, também considerado um risco muito grande para o trabalhador. Além disso, foi diminuído o período de intervalo entre jornadas, passando de 11 para oito, o que pode fazer com que o motorista trabalhe em diferentes períodos do dia e tenha muita perda de atenção.
No que diz respeito às cargas, a nova lei permite um sobrepeso de até 10% por eixo (hoje é de 5%). Especialistas consideram isso mais um risco na estrada, pois com mais peso o caminhão demora mais para parar.
Já um ponto realmente bom para os caminhoneiros, que está na nova lei, diz respeito ao não pagamento de pedágio quando estão vazios. Mas, por outro lado, essa isenção pode fazer com que o preço suba para outros veículos.
Ao analisar esses requisitos da lei pode-se perceber que as vantagens maiores serão dos empresários do transporte de carga, já que os trabalhadores ou mesmo aqueles que são donos do seu próprio caminhão, terão, na verdade, mais trabalho e mais risco na profissão. Fica aprovada a superexploração do trabalho – com a possibilidade de uma jornada de até 12 horas, e os elementos como o aumento do número de horas seguidas no volante e a diminuição do período de descanso entre duas jornadas, são carga pesada nos ombros dos trabalhadores. É de estranhar que eles desejem que isso seja aprovado, sem qualquer discussão.
Nas análises políticas que circulam pelo país há duas versões mais pontuadas. Uma, é de que essa é uma greve de patrões com o intuito de garantir mais lucro e, de quebra, desestabilizar o governo de Dilma Roussef, num contexto de golpe branco. E pode-se perceber muitos elementos dessa possibilidade nos pontos já tocados acima. O peso do trabalho parece mesmo estar no trabalhador e no proprietário individual que vive do seu caminhão. Para esses, será justamente o aumento da carga horária nas estradas que garantirá melhoria de vida. Já para quem tem uma empresa e emprega os caminhoneiros, o lucro virá farto pela superexploração sofrida pelo empregado.
De qualquer forma não há como menosprezar o movimento dos caminhoneiros. Muitas de suas demandas são reivindicações antigas e sistemáticas, que sempre são relegadas a acertos muito pontuais. Os que trabalham no transporte de cargas não são os culpados pela incompetência governamental em promover novos modais de transporte como o ferroviário ou hidroviário, que seriam bem mais seguros. Mas, os empresários do transporte, esses sim são culpados pela demora na instalação de novos modais, uma vez que não querem perder seus privilégios de controlar mais de 60% da distribuição de produtos no país.
Muitos tem feito comparações com a Venezuela que hoje vive uma crise de desabastecimento por conta de um boicote empresarial. Lá, como aqui, é a iniciativa privada que detém o controle da distribuição de produtos e bens. O governo bolivariano, ciente disso, foi, ao longo dos anos, construindo um sistema de distribuição que hoje ocupa 30% do setor e é o que está conseguindo segurar o bloqueio. Distribuição de alimentos e bens é coisa estratégica e precisa ter o estado no controle. Sem isso, o governo fica vulnerável a boicotes e movimentos que podem servir de barganha para mais lucro e controle por parte dos empresários. Essa é uma lição a aprender.
De qualquer forma, o Brasil não é a Venezuela, não tem um presidente que enfrenta o império nem fala em socialismo. Aqui, a proposta governamental é de aliança com a burguesia agrária, industrial e financeira. E, ainda assim, toma rasteiras como essa agora, comandada por um forte núcleo do empresariado dos transportes.
É fato que na esteira das reivindicações empresarias também vão demandas dos trabalhadores. E aí se estabelece alguma confusão pois, a um olhar menos atento, as jogadas patronais podem passar desapercebidas. O certo é que o setor está jogando uma queda de braço com o governo e já recebeu algumas benesses. Acalmados os apetites dos graúdos, a tendência será de desmonte do movimento. E, quando a vida retomar seu lento trafegar, no dia a dia é que se poderá perceber se as mudanças foram boas. A nova lei dos caminhoneiros, se aceita como está, também será testada na realidade. E, o que se espera é que os piores presságios não se verifiquem. Ainda que seja difícil aos caminhoneiros, seguirem bem, com tanta exploração e risco, respaldados em lei.
Muito boa análise