Flávio Vicente Machado- Cimi Regional-MS
Vindo de uma das realidades indígenas mais trágica das Américas, a Liderança Guarani Kaiowá, Eliseu Lopes, 36, da aldeia Kurusu AmbÁ, em Coronel Sapucaia no Mato Grosso do Sul, participou da 27º sessão do Conselho de Direitos Humanos da Nações Unidas (UNHRC)- sigla em inglês- em Genebra, Suíça, com o objetivo de chamar a atenção da comunidade internacional para as violências que há anos assola seu povo. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas é responsável por monitorar, avaliar e emitir resoluções sobre a situação de violações de direitos humanos no mundo.
Membro do Conselho da Aty Guasu (Grande Assembleia de seu povo) e do Conselho Continental da Nação Guarani, Lopes é ameaçado de morte e está incluso em programas de proteção do Governo Federal, após ter três membros de sua comunidade assassinados na luta por seus territórios.
Eliseu se encontrou com relatores da ONU, como os relatores de Direitos Humanos, Direito a Alimentação e com Victoria Lucia Tauli-Corpuz, relatora Especial para os Direitos dos Povos indígenas no Mundo, onde pode denunciar sua realidade.
No documento entregue aos relatores, dados oficiais apontam que os índices de homicídio em algumas reservas Guarani Kaiowá chegam a 590% em relação média brasileira. Lopes afirmou que seu “povo não aguenta mais tanto descaso do governo brasileiro”, que este “se mostra incapaz de os proteger” e que vivem uma crise humanitária.
Os relatores e suas equipes lamentaram que ainda hoje, o Brasil não tenha conseguido resolver o problema da demarcação, mesmo quando sua Constituição tenha estabelecido como prazo cinco anos após promulgação e comprometeram-se em levar o caso adiante junto ao governo brasileiro.
No entanto, segundo a delegação que acompanha Eliseu Lopes, o Brasil já vem sendo amplamente questionado, por diversos órgãos da ONU, da sociedade civil internacional e da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A efetiva demarcação das terras Guarani e Kaiowá foi inclusive recomendada na última Revisão Periódica Universal (RPU) que avalia a situação de violação de direitos humanos e o cumprimento de tratados e conversões no Brasil.
Lamentavelmente observasse que as recomendações não estão sendo atendidas, que vezes as informações prestadas e discursos realizados não condizem com a realidade, uma vez que o Brasil possui uma excessiva preocupação com sua imagem no exterior.
A exemplo, foram as observações e recomendações que o então relator especial para os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya fez ao Estado Brasileiro após visita e estudo de caso dos Guarani Kaiowá. Passados mais de quatro anos, Anaya lamenta e se mostra muito preocupado por não ter obtido nenhuma resposta por parte do Estado Brasileiro.
Paralisação das demarcações de terras indígenas no Brasil e o aumento da violência
Durante o dia reservado no Conselho de Direitos Humanos ao tema “Povos indígenas”, a relatora especial pôde fazer seu informe sobre a situação dos povos indígenas no Mundo. Nesta oportunidade, Lopes teve o resumo de sua contundente declaração lida por sua advogada, onde afirma: “A inconsequente decisão do governo brasileiro em paralisar os processos demarcatórios, sob pretexto de “diálogo”, resultou justamente no aumento direto dos conflitos em todas as regiões. Decisão que sabemos, vai contra nossos direitos internacionais, contra a constituição brasileira e os diversos casos, em todo o mundo, de cessação de conflitos, através da efetiva demarcação dos territórios indígenas”.
Efetivamente paralisar as demarcações de terras indígenas no Brasil, mostra-se de interpretação primária, no tocante a solução de conflitos territoriais. Principalmente quando a história demonstra que é justamente a devolução e proteção de terras e a reparação dos afetados por elas o mecanismo mais eficaz de manutenção da paz.
Em entrevista a jornalistas, Lopes disse que este não é um problema novo para o Brasil. Ainda hoje terras indígenas são invadidas indiscriminadamente e o governo brasileiro nada faz, quando o faz é por decisão judicial e não por cumprimento de sua obrigação constitucional. “Eles invadem nossas terras hoje, o governo não faz nada; amanhã arrumam títulos, nos expulsam do território, o governo não faz nada; e depois de amanhã se dizem donos da terra. E meu povo? Vive de baixo de lona preta a beira da estrada, e o governo não faz nada. Não aguentamos mais isso”.
Relatório especifico sobre violência contra os Guarani é lançado durante sessão do UNHRC.
Acompanhado de membros da Rede de Ação e Informação pelo direito à alimentação – Fian (sigla em inglês) e do Conselho Indigenista Missionário – (Cimi), Lopes testemunhou em evento paralelo ao lançando do Brief Report on the violations of the Human Rights of the indigenous Kaiowá Guarani peoples in Mato Grosso do Sul – Brazil. Este pretende informar a sociedade internacional sobre a realidade de violência vivida por este povo.
O relatório aponta ao citar dados do Ministério da Saúde, que de 2000 a 2013, 662 pessoas indígenas se suicidaram no Mato Grosso do Sul, um caso a cada 7,7 dias nos últimos 14 anos. Que nos últimos 12 anos houve um assassinato a cada 12 dias, totalizando 361 indígenas. Num ambiente que registrou mais de 150 conflitos, pelo menos 16 lideranças Guarani Kaiowá foram assassinadas por fazendeiros devido a suas lutas por território nos últimos 10 anos. Destes casos, somente um, de Nísio Gomes assassinado em 2011, resultou efetivamente na prisão de seus assassinos, sendo 19 pessoas, entre elas fazendeiros, advogado, servidor público, pistoleiros e dono de empresa de segurança privada, classificada com milícia armada, por sua atuação e assassinato em outras comunidades indígenas. O restante segue com inquéritos inacabados ou processos estagnados.
Lopes denunciou que as negociações e composições políticas do atual governo com setores racistas e violentos do agronegócio resultaram numa escalada sem igual da violência contra os povos indígenas no Brasil, a exemplo citou comunidades de outros povos que estão em conflito, enfrentando invasores, sendo executados pela Polícia Federal, sendo assassinadas por madeireiros e pecuaristas, e de crianças que morrem por falta de alimentação adequada.
Esta realidade é confirmada pelo relatório da Comissão econômica para a América Latina (Cepal), órgão da ONU, lançado as vésperas da 1ª Conferência Mundial sobre Povos Indígenas realizada em Nova York. Este afirma que o Brasil possui 70 povos indígenas ameaçados de extinção física e cultural, resultante de conflitos armados e de flagrantes violações de direitos fundamentais, individuais e coletivos. (Confira aqui).
Onde um boi vale mais que uma criança indígena
O Estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, possui pouco mais de 35 milhões de hectares, comparavelmente é do tamanho da Alemanha a 3ª maior economia do planeta. A soma total de todas as áreas urbanas de seus 79 municípios somam apenas 44,1 mil hectares.
Deste território, nada menos que 66% (22 milhões de hectares) é ocupado por gado (21,4 milhões de cabeça); cerca de 6% deste território é ocupado por soja (2,1 milhões de hectares); 2,3% é ocupado pela cana (800 mil hectares); 2% é ocupado por eucalipto (700 mil hectares), a estimativa do setor é que exista 14 milhões de hectares disponíveis para seu plantio.
A região em que os Guarani Kaiowá habitam há séculos, dentro do atual território brasileiro no Mato Grosso do Sul é composta hoje por 28 municípios, que junto somam quase 8 milhões de hectares.
Estudos preliminares sobre o tamanho das terras reivindicadas pelos Guarani Kaiowá, 2ª maior povo indígena do Brasil, apontam que estas não devem ultrapassar 900 mil hectares. Isto é, menos de 2,5% do território do estado de Mato Grosso do Sul, ou, cerca de 11% do território que outrora foi inteiramente deles e que hoje é objeto de estudos de 7 Grupos de Trabalho (GTs), em 28 municípios.
Estas terras também não seriam em faixa continua e buscariam restaurar os corredores ecológicos entre as principais bacias de rios da região sul do Estado.
Retomada de seus territórios como último ato de sobrevivência e de proteção das matas e meio ambiente
No relatório apresentado, diversos pesquisadores aprofundaram os impactos da falta da terra e da mata nativa na vida e nas estruturas sociais dos Guarani Kaiowá. Dissertam sobre as reservas criadas ainda pelo SPI e prestes a completarem 100 anos, como verdadeiros bolsões de violência, desestrutura e traumatismo social.
Enquanto Eliseu Lopes denunciava esta realidade em ambientes da ONU, seu povo iniciava mais uma retomada de seus territórios tradicionais, cumprindo com uma decisão da Aty Guasu (Grande Assembleia) de retomarem todos os seus territórios tradicionais. Decisão tomada, segundo ele, pela inércia do governo brasileiro em demarcar suas terras e o desespero de centenas de famílias que não tem o que comer, sujeitas a politicagem de cestas básicas, ao calor da lona preta e principalmente das ações de desmatamento das poucas áreas preservadas que estão dentro de seus territórios antigos.
Kaiowá significa o povo da floresta/mata, e em tempos de mudanças climáticas, não se sabe afirmar o quanto ainda restam de mata nativa na região dos Guarani Kaiowá. A olho nu, pelas rodovias do estado, não parecem restar muito do que outrora era parte da Mata Atlântica. Por isso, muito destas comunidades em suas retomadas ocupam justamente pequenos espaços de mata como tentativa de restabelecer aspectos identitários, cosmológicos e de preservação. Denunciando inclusive, as ações de desmatamento propositadamente realizadas por fazendeiros da região.
De Genebra, Eliseu Lopes seguirá para Bruxelas, onde se encontrará com deputados do Parlamento Europeu, bem como com comissões específicas, entre elas de Direitos Humanos e para assuntos bilaterais com o Brasil. Haverá atividades ainda na Alemanha e Itália.
Ainda este ano outra comitiva Guarani Kaiowá deverá ir sede da ONU na Europa, para tratar dos impactos das empresas de agrocombustíveis sobre seus direitos humanos, indígenas e territoriais.