Auxílio-moradia é um direito pago quando a pessoa tem que morar fora de sua cidade de residência por conta do trabalho. Parte dos juízes, desembargadores e ministros já recebia o auxílio quando não tinha acesso a um apartamento funcional. E parte deles, pasme, já recebia esse auxílio mesmo quando morava na cidade em que trabalhava e possuía um imóvel próprio. Nas últimas duas semanas, o Supremo Tribunal Federal estendeu, ainda que em caráter provisório, o benefício de receber o auxílio a todos os juízes federais, juízes do trabalho e demais magistrados no caso de ausência de imóvel funcional, mesmo aos que moram em sua própria residência. Onde não houver regulamentação para o valor, ele será de até R$ 4.377,73 por mês.
O ministro Luiz Fux, que tomou a decisão, disse que isso é justo.
Concordo que é justo o pagamento do auxílio para magistrados que moram fora de casa. Contudo, essa situação em que todo mundo recebe o benefício, traz uma incômoda lembrança: a efetivação do que está no papel depende do poder de mobilização do grupo social em questão. E isso independentemente do seu tamanho.
Os magistrados são um grupo poderoso, mas pequeno. Bem menor que os pensionistas da Previdência Social e demais trabalhadores que sobrevivem com um salário mínimo. E o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federativa do Brasil, que afirma que o salário mínimo fixado em lei deve ser capaz de atender todas as necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família, “como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. O Dieese que, há 20 anos, calcula o que significaria isso, afirma que o valor para agosto deste ano deveria ser de R$ 2.861,55 (considerando uma família com dois adultos e duas crianças). Hoje, é de R$ 724,00.
O governo federal atrelou o ritmo de crescimento do PIB ao do salário mínimo, na tentativa de resgatar seu poder de compra. E ele melhorou muito nos últimos anos. Mas não faz nem cócegas do que está previsto na Constituição.
É claro que é mais fácil implementar um orçamento para garantir alguns milhões a mais a fim de universalizar o auxílio-moradia da magistratura do que reservar bilhões para garantir que o salário mínimo financie patamares mínimos de dignidade. Além do mais, seria necessário legislação infraconstitucional para tirar isso da Constituição, então não dá para, simplesmente, comparar uma coisa com outra.
Por favor, não achem que estou defendendo o sucateamento da magistratura. Quero juízes felizes e satisfeitos para que não completem a remuneração de outra forma.
Mas se o debate legal não é cabível, a discussão moral é mais do que bem-vinda. É justo, mas é certo? E mais do que isso, faz-se necessária uma discussão sobre a percepção do potencial de pressão social. Pois terno e toga são mais organizados, mas chinelos são em maior número e mais poderosos, apesar de não terem percebido isso ainda.
O que deve passar pela cabeça de uma pessoa que mora no interior do país, recebe pouco mais de um mínimo e tem que depender de programas de distribuição de renda para comprar a telha de zinco do barraquinho quando vê, na sua TV velha, a notícia da universalização de auxílio-moradia para todos os juízes do país? Você acredita realmente que essa pessoa vai encarar isso como uma discussão sobre a extensão legal de direitos previstos?
Ela pode engolir o choro de frustração e torcer para a novela começar rápido a fim de tentar esquecer o que acabou de ver e ouvir. Mas também pode ir à luta e exigir que seus direitos também saiam do papel.