Pós-capitalismo no Festival de Brasília?

Gesto dos seis concorrentes que dividiram prêmio revela: todos podemos explorar, em atos quotidianos, as brechas do sistema. Para tanto, é preciso ir além da crítica retórica

Por Graziela Marcheti, em Outras Palavras

Aconteceu no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e faz acreditar no poder das brechas do mundo. E, mais ainda, que podemos e devemos ocupar os lugares de forma reflexiva e política.

Depois de vários dias de encontros e trocas intensas, os seis concorrentes da Mostra Competitiva optaram por repartir em seis partes iguais o prêmio único de 250 mil reais, oferecido ao vencedor. Eles poderiam “apenas” criticar a organização do Festival por gerar uma condição de intensa competição e (por que não?) inveja entre os concorrentes – já que o valor é bastante alto e concentrado em apenas um ganhador. E, assim, o vencedor seria “crítico” e certamente faria bom uso da bolada. Mas, eles foram um pouquinho além. Os seis escolheram partilhar o dinheiro, antes do resultado do prêmio. Isso muda, de fato, a condição de competição, desigualdade e falta de cooperação que o formato do festival incentiva. Isso muda a experiência. E é a partir dela que formamos nossos mais arraigados entendimentos de mundo.

É assim que cada um de nós pode, do lugar que ocupa, tornar o mundo menos corporativo, menos reprodutor de injustiças, menos voltado para o lucro (como nós, que não lucramos com nada, deveríamos defender o lucro dos capitalistas?).

No vídeo, a carta (abaixo) é lida na premiação. O vencedor foi o longa Branco Sai. Preto Fica, de Adirley Queirós.

Enviada para Combate Racismo Ambiental porRuben Siqueira.

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Carta de Brasília

Diretores, produtores(as) e outros(as) integrantes das equipes dos longas-metragens que compuseram a competição da 47ª edição do Festival de Brasília vêm aqui expressar alguns pontos de reflexão em torno de sua participação no evento. Consideramos que:

1. A escolha de um panorama de filmes tão diversificado, onde cada obra se sedimenta sobre propostas estéticas singulares, resultou na criação, durante os dias do evento, de um terreno muito fértil e propenso à troca, ao debate, ao aprendizado e ao amadurecimento de questões ligadas ao cinema e à sociedade brasileira.

2. O cultivo de um terreno assim favorável à circulação de ideias deve ser, no nosso entendimento, horizonte para qualquer evento destinado a promover avanço do cinema e seu diálogo com o público no país.

3. No entanto, o valor atribuído ao prêmio de melhor longa-metragem, totalizando R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), representa uma disparidade em relação aos valores distribuídos pelos demais prêmios, contribuindo para a criação de um clima de competitividade exacerbada entre os filmes e seus representantes.

4. Os signatários desta carta não se opõem ao caráter competitivo do festival e tampouco questionam a soberania da escolha do júri, que este ano indicou o filme Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, como melhor longa-metragem.

5. Mas, desconfortáveis com a concentração dos recursos num único prêmio, os(as) diretores, produtores(as) e integrantes das equipes dos longas, decidimos, antecipadamente e por unanimidade, dividir o valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) em seis partes iguais que serão distribuídas entre os filmes que estiveram em competição.

6. O gesto proposto pelos realizadores este ano serve como sugestão de uma partilha futura dos recursos hoje concentrados no prêmio de longa-metragem. Entendemos que uma distribuição da verba entre os filmes, a título de pagamento de direitos de exibição, associada a um prêmio em dinheiro para o melhor filme, representaria uma forma mais isonômica de emprego do valor.

Assinam os(as) diretores, produtores(as) e integrantes das equipes dos filmes:

  • Branco Sai, Preto Fica
  • Brasil S/A
  • Ela Volta na Quinta
  • Pingo D’Água
  • Sem Pena
  • Ventos de Agosto

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