Religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, exercem forte influência na cultura brasileira, no entanto, comunidades de terreiro são estigmatizadas e alvos de ódio
por Patricia Iglecio, da RBA
O dia 21 de setembro será marcado, no Rio de Janeiro, pela realização da 7ª edição da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. A mobilização é uma iniciativa da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR) e coloca cada vez mais pessoas nas ruas pela liberdade de culto. Neste ano, com a disputa eleitoral em curso, a entidade busca sensibilizar a sociedade sobre o tema, reivindicar mais ação do poder público diante à violência e discriminação contra comunidades religiosas vulneráveis no Brasil, representar politicamente esses grupos e combater os discursos de ódio. Além disso, o evento estará pautado por acontecimentos recentes que expõem os perigos do fundamentalismo religioso que confronta direitos humanos e agride os princípios do Estado laico, inclusive o crescimento de denúncias de ataques a cultos afro-brasileiros em órgãos como a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Ordem dos Advogados do Brasil.
Em 2008, ano em que a CCIR foi criada, 20 mil pessoas aderiram a 1ª edição da caminhada. O maior público se deu na 5ª edição, em 2012, quando 210 mil lotaram às ruas do Rio de Janeiro. A comissão é uma organização da sociedade civil, criada por lideranças religiosas de umbanda e candomblé, mas que agrega espíritas, judeus, católicos, muçulmanos, malês, bahá’ís, evangélicos, hare Krshnas, budistas, ciganos, wiccanos, seguidores do Santo Daime, ateus e agnósticos.
Outras entidades sociais e ainda representantes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, do Ministério Público e da Polícia Civil a compõe. Como é o caso do delegado Henrique Pessoa, titular da 79ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro. Ele atua na área desde 2009, com a atenção voltada às religiões afro-brasileiras, que, de modo geral, localizam-se em regiões de vulnerabilidade social e são estigmatizadas.
O delegado conta que a entidade foi criada por religiosos que observavam um aumento da violência contra as comunidades. Recentemente, ele mesmo se viu numa situação de conflito físico motivada por intolerância. Atacado por 20 evangélicos neopentecostais no último dia 3, entrou em confronto com o grupo liderado pelo pastor Tupirani da Hora Lopes, da igreja evangélica neopentecostal Geração Jesus Cristo. Henrique Pessoa alega que é perseguido pelo grupo desde que assumiu as bandeiras da defesa da liberdade religiosa e dos direitos humanos das comunidades afro.
“Lideranças da umbanda e do candomblé procuraram [em 2008] a chefia da Polícia Civil. E o chefe de polícia, na época, achou que seria interessante a gente fazer um levantamento para examinar o que estava ocorrendo”, diz. Pessoa era então coordenador de inteligência polícia e relata que, a comandar a operação de mapeamento de situações de violência, passou a se envolver com as lideranças religiosas da CCIR. A entidade procurou as autoridades para denunciar o aumento da violência que ocorria contra as comunidades religiosas e exigir uma ação de defesa dos órgãos públicos.
Para Henrique, o “grande mérito” da organização é abranger todas as religiões. “A CCIR não tem nem sequer segmento legal, não tem estatuto, CNPJ, nada. É um grupo de religiosos que se reúne toda quarta-feira e faz as melhores ações”, ressalta. O delegado avalia que o conjunto da atuação das lideranças religiosas e dos órgãos públicos freou a violência contra as comunidades religiosas no Rio de Janeiro. Além da CCIR, surgiram outras entidades que se mobilizam pela liberdade religiosa.
Em 2013, professores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro iniciaram um trabalho, em parceria com líderes religiosos, para mapeamento de todos os terreiros do estado. A pesquisa de campo durou 20 meses e deu visibilidade a essas comunidades que, na grande maioria, ficam em lugares mais pobres. Foram registrados 840 terreiros. Desses, 430 já sofreram ataques. Evangélicos foram responsáveis por 40% dos casos.
No entanto, quando a Polícia Civil iniciou o mapeamento da intolerância religiosa, se deparou com um problema sistêmico. A Lei nº 7.716, de 1989, penaliza crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Redigida em 1997, a lei definiu como crime “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
“A versão que tinha sido alimentada no sistema até 2009 sobre casos de intolerância estava defasada. Então, quando nós fizemos a pesquisa de incidência, tivemos essa dificuldade. Em função disso, nós tivemos a chance de corrigir o sistema, incluindo a formulação da lei de intolerância religiosa”, explica o delegado. Com a atualização do sistema, a Polícia Civil do Rio de Janeiro registrou um aumento de 400% de notificações de crimes de intolerância religiosa.
Mesmo com a medida, Henrique avalia que outros casos de discriminação não foram identificados pela dificuldade de delegados em reconhecer as denúncias e registrá-las corretamente. Os policiais incluíam os crimes na lei contra preconceito racial, ou nem registravam. Nesse sentido, o segundo passo da atuação da Polícia Civil foi um trabalho de conscientização sobre direitos humanos com os agentes.
A inteligência da polícia passou a realizar, semanalmente, aulas de 4 horas discutindo direitos humanos, com ênfase em crimes de ódio, intolerância religiosa, preconceito racial e combate à homofobia. Além disso, as aulas trabalham formas de abordagem.
O delegado afirma que é preciso conscientizar o policial da responsabilidade em registrar adequadamente um crime de discriminação religiosa. “Porque a gente observou que as pessoas não davam a devida atenção ao fato. Achavam que era uma briga, diziam ‘deixa para lá'”, observa.
Henrique explica à reportagem da RBA que não é possível passar todos os dados coletados, pois há impedimentos judiciais, mas afirma que, com os trabalhos, a violência contra comunidades afro-brasileiras no Rio se estabilizou de 2012 para cá. Por isso, a polícia do estado é uma referência nacional na atuação contra crimes de intolerância religiosa.
No entanto, para o delegado, ainda é preciso evoluir, principalmente nos valores da sociedade. Pessoa pontua que a agressão de evangélicos contra umbandistas e candomblecistas é uma situação nacional, mas ressalta que, embora a maior parte das agressões parta de tendências evangélicas neopentecostais, não se pode generalizar para todas as igrejas de origem protestante. “As igrejas mais tradicionais, batistas, embora tenham convicções religiosas, não chegam ao nível da intolerância religiosa. Eles são respeitosos”, argumenta.
Quando questionado sobre ser uma exceção entre delegados, por reconhecer os direitos de grupos minoritários, Henrique responde que não se considera um caso isolado. “Me reconheço como militante e pioneiro na abordagem do tema e sou realmente uma pessoa que vai além da minha atribuição institucional, mas não sou uma exceção. Hoje, tenho diversos colegas que encaram a situação.”
Coragem Política
O deputado federal Edson Santos (PT), do Rio de Janeiro, avalia que a constituição de políticas em defesa de comunidades de matrizes africanas ficou mais visível, no âmbito do poder público, no início do governo do ex-presidente Lula. “A partir dali, a população de religiões afrodescendentes passou a enxergar, no governo brasileiro, um ambiente onde pudesse discutir não só o problema da intolerância religiosa, mas tudo o que envolve a vida dessas comunidades”, afirma.
A Lei nº 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, foi decretada pela presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2010. O estatuto altera os mecanismos já existentes na Constituição referentes à discriminação de raça, crimes de ódio e exclusão social. Busca efetivar a igualdade de oportunidades da população negra, defender os direitos étnicos individuais e combater formas de intolerância étnica, procurando difundir o respeito às religiões de matriz africana.
Porém, Edson destaca que a representação política desses grupos ainda é pequena em comparação à bancada evangélica, que tem expressão “bastante considerável” no Congresso Nacional e uma postura de intolerância com os praticantes de umbanda e candomblé.
“Vejo com preocupação o crescimento da representação política da bancada fundamentalista. Não só com relação às comunidades religiosas, mas em relação ao Brasil mesmo”, considera. Para o deputado, deve haver um debate “muito forte” não só nos órgãos públicos, mas, na sociedade brasileira, sobre a tolerância e defesa dos direitos humanos.
Edson diz que é preciso combater o fundamentalismo religioso que busca se espalhar pela política. “Eles têm, por exemplo, o candidato pastor Everaldo (candidato a presidente pelo PSC). A gente tem que ver como isso vai se dar. A bancada na Câmara já é bastante forte, mas são grupos que nós temos que trabalhar para articular o isolamento”, diz.
Entretanto, o deputado afirma que ainda não há uma articulação capaz de coibir o crescimento da bancada. “Até pelo que eles apresentam como força eleitoral. Há certa condescendência com esse segmento.”
Santos integra a Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades de Terreiro, criada em maio deste ano. A iniciativa é uma reação à determinação do juiz federal do Rio de Janeiro (quem é o juiz, de quando é a determinação dele, vamos relembrar ou contar para o leitor) que considerou cultos de matrizes africanas como práticas não religiosas e avaliou que vídeos expostos no YouTube, em que evangélicos neopentecostais atacam terreiros, poderiam continuar no ar.
A frente é composta por 13 deputados federais espalhados pelo país. Edson explica que, devido ao período eleitoral, a articulação está reduzida, mas que todos os parlamentares que participam possuem algum nível de atuação em defesa das religiões afro.
Apesar dos avanços que o tema conquista no Rio de Janeiro, o deputado denuncia que a vulnerabilidade das comunidades permanece. “Há omissão do Estado ainda, mas o tema está visível em nível de legislação brasileira. Existem instrumentos que possibilitam ao Estado impedir que manifestações de intolerância ocorram no Brasil. Agora, é preciso ter a coragem política de fazê-lo”, ressalta.
Contra o desconhecimento
O advogado Jader Freire de Macedo Júnior integra a Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP). Ele conta que a entidade colhe relatos de agressões sofridas por praticantes de qualquer religião e transforma em processos judiciais, no entanto, nenhum parecer terminou em condenação. O órgão foi criado em 2006, por advogados ligados a diferentes vertentes religiosas. Atualmente, existem outras comissões espalhadas pelo estado, uma no Rio de Janeiro e outra em Curitiba, que dialogam e atuam em conjunto. A OAB nacional articula a criação de uma comissão no Distrito Federal.
Jader é pai de santo e sacerdote umbandista. “Eu sou sacerdote religioso de umbanda, mas dentro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa não há representante religioso”, explica o advogado. Ele explica que não há uma separação por vertente religiosa na entidade para lidar com os casos de discriminação, mas, sim, por especialidade. “Cada um de nós tem uma especialidade profissional. Então, procura-se preservar a especialidade quando se vai tratar de qualquer relato”. Não há quantificação e relação de dados dos relatos recebidos ao longo dos anos de atuação da comissão.
O advogado cita um processo judicial em andamento, de uma adolescente de 15 anos, estudante da escola estadual Antônio Caputo, em São Bernardo do Campo, que era obrigado a fazer orações evangélicas e sofria perseguição por parte de colegas por ter o pai sacerdote de candomblé. A Delegacia de Ensino da região entendeu que foi um “excesso do pai da criança levar a questão à Justiça”, embora alguns alunos tenham expressado diretamente ao Conselho Tutelar local que o rapaz era “adorador do diabo” e, por isso, sofria discriminação na sala de aula.
O advogado lembra os rituais de cada religião para apontar o desconhecimento de quem ataca os cultos de matriz africana. “Quem conhecer um pouquinho da liturgia católica e um pouquinho da liturgia do candomblé e umbanda vai ver que o diabo que eles chamam não tem nada a ver com a gente. Nós nem admitimos esse diabo”, esclarece.
Jader recorda que a discriminação é tanta que, há uma década, as casas de culto precisavam de autorização de uma “delegacia de costumes” para funcionar. A Delegacia Estadual de Crimes contra os Costumes, Jogos e Diversões Públicas da Diretoria-Geral da Polícia Civil foi criada em 1924 e extinta apenas em 2002. O mecanismo funcionava como um aparelho conservador do estado e, muitas vezes, discriminatório.
“Quando isso terminou, a Igreja Católica e os evangélicos, de maneira geral, passaram a usar a terminologia de que nós somos adoradores do diabo”, alega.
Ele avalia que evangélicos e católicos têm o direito de acreditar que o diabo deva ser execrado. “Faz parte da liturgia deles, mas, no momento em que eles me comparam ao que chamam de diabo, não estão tratando de liturgia, mas, sim, da minha pessoa. E estão me ofendendo”, diz.
Mesmo nesse contexto de conflito, o advogado confessa que os preconceitos cotidianos que sofrem os praticantes da umbanda e do candomblé não o atingem significativamente. “Sou umbandista, mas as pessoas não me tratam com tanto desrespeito em função dos títulos que carrego.”
Outro caso emblemático relatado pela OAB-SP aponta abusos numa investigação policial. Em 2013, uma delegada do 3º Distrito Policial de São Bernardo invadiu um terreiro de candomblé na região e abriu um termo de maus tratos aos animais contra o pai de santo responsável. Pediu para o Centro de Zoonoses municipal verificar a situação. O órgão afirmou que os animais estavam bem tratados e viviam em condições apropriadas. A delegada, apesar de dizer que respeita a liberdade religiosa, finaliza o boletim de ocorrência citando uma passagem da bíblia, no intuito de desmerecer as práticas das religiões de origem afro. Jader não revela o nome da delegada para não comprometer o processo judicial que é movido contra ela.
O pai de santo e sacerdote de umbanda, Rafael Jussara, também é membro do grupo de intolerância religiosa da OAB. Ele é o único integrante da comissão não advogado. Embora umbandista, Rafael explica que a atuação como representante inclui o candomblé, pois as religiões sofrem os mesmos preconceitos. “Defendemos também o culto de Jurema (ritual de origem indígena incorporado por crenças africanas), o que for ligado ao negro e ao índio. Nós, que somos umbandistas ou candomblecistas, procuramos falar uma linguagem só e defender a cultura negra”, enfatiza.
Recentemente, o pai de santo teve a casa pichada com as frases “Deus é maior” e “Deus está presente”, mas não acusa a atitude como partida de evangélicos ou católicos. “Nós não sabemos quem foi, mas eu até gostei, porque Deus está presente na minha casa”, ironiza. No entanto, ele admite que já sofreu perseguição e discriminação.
Para Rafael, toda a cultura negra sofre grande preconceito no país e a sociedade não quer entender o que negros e índios representam na identidade cultural brasileira. “Nós estamos falando de orixá, mas nós estamos falando do negro, nós estamos falando de caboclo, mas nós estamos falando do índio”, considera. O umbandista acredita que todo o dia “é dia desses povos” na história do Brasil. “São povos que sempre lutaram e resistiram às imposições brancas”, reflete.
Ele destaca que todos estão sujeitos há algum tipo de ação preconceituosa, mas, se o indivíduo é negro, praticante de religião de matriz africana e ligado ainda à cultura LGBT, o preconceito se multiplica.
Ministro religioso desde 2008 e administrador do templo Tumbiá Jussara, que fica localizado na Lapa, zone oeste de São Paulo, Rafael garante que há um trabalho social “forte” no entorno dos terreiros de umbanda e candomblé na cidade. No entanto, agressões verbais de moradores do bairro são constantes. “Posso te garantir que a grande maioria dos praticantes da religião já foi chamado de macumbeiro”, conta, apesar de enfatizar que “Todas as casas de culto são casas de axé em que se cultua a felicidade e a verdade.” Foi diante dessa contradição que Rafael decidiu integrar a Comissão contra Intolerância Religiosa da OAB.
Na avaliação de adeptos das religiões afro, não é necessário criar novos mecanismos de proteção e fiscalização da discriminação religiosa, mas divulgar e ampliar os que já existem, como a Comissão da OAB e a Delegacia de Crimes Contra a Religião (Decradi). Porém, ainda há resistência de delegados de São Paulo em registrar crimes contra a religião. As descriminações são geralmente registradas como brigas entre vizinhos.
Os registros da OAB-SP revelam que evangélicos neopentecostais são os principais autores de agressões físicas e verbais contra umbandistas e candomblecistas. Os principais casos são de depredação e pichações de terreiros.
Discriminação exclusiva
O Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) é um serviço que recebe demandas de violações de direitos humanos com a atenção voltada para grupos vulneráveis, como crianças e adolescentes, LGBT, pessoas em situação de rua e comunidades indígenas. Em 2011, com o aumento da violência contra comunidades religiosas e consequente mobilização da sociedade civil, a SDH ampliou os trabalhos em defesa da liberdade religiosa e realizou políticas de conscientização de crimes de intolerância, em parceria com entidades que já lutavam por essa causa.
Com as medidas, em 2001, a secretaria recebeu 15 denuncias no país relacionadas à intolerância religiosa. No ano seguinte, foram registrados 109 casos, crescimento de 626% nas situações notificadas. São Paulo e Rio de Janeiro, nos últimos quatro anos, variam a liderança de crimes de intolerância denunciados.
Só no primeiro semestre deste ano, a secretaria já recebeu 96 notificações saídas de alguns pontos do território nacional, mas com concentração na região Sudeste. São 22 casos em São Paulo, 21 no Rio de Janeiro e nove em Minas Gerais.
Embora os registros tenham aumentado significativamente, a SDH avalia que as denúncias ainda não correspondem a real situação de intolerância e indica que as religiões de matriz africana são as mais discriminadas.
Os relatos apontam agressões, depredações de terreiros e violação de direitos na internet. Em 2012, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos (CND) recebeu 494 denúncias de intolerância religiosa praticadas em perfis hospedados no Facebook.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) ainda não realizou um mapeamento de todos esses dados, no entanto, o ouvidor Carlos Alberto de Souza e Silva Junior avalia que, apesar dos avanços das políticas sociais e raciais, há uma reação intolerante, preconceituosa, discriminatória e racista.
“Um dos indicativos que ainda precisamos verificar com cautela [é a atuação de] algumas igrejas neopentecostais, que vem pregando o ódio, inclusive na internet. Há ao menos um caso denunciado à ouvidoria de uma igreja cujo líder espiritual vem revelando esse ódio contra as religiões de matriz africana, associando-as a coisas do diabo”, relata o ouvidor.
Junior também ressalta que há discriminação de órgãos públicos, que legitimam a intolerância contra essas religiões. “Eu vejo tudo isso como um fenômeno umbilicalmente ligado ao racismo, algo que não pode ser desassociado da questão do preconceito racial. Tanto que, na Seppir, não recebemos nenhuma denúncia dando conta de que outras religiões, além daquelas de matriz africana, sejam alvo de discriminação”, conclui.
No dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro, a SDH da Presidência da República instalou o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa. Ainda recente, o órgão busca articular tanto o poder público como as entidades da sociedade civil que lutam contra a intolerância.
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído em 2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A adepta do candomblé enfartou após ver o próprio rosto estampado na primeira página da Folha Universal, jornal evangélico neopentecostal da Igreja Universal, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes.”
União conservadora
Segundo dados do censo de 2010 do IBGE, o número de adeptos do catolicismo tem caído desde os anos 1990 no Brasil, apesar de a religião ainda ter 64,6% da preferência da população (tinha 73,6% no levantamento anterior, de 2000). Em contrapartida, religiões evangélicas estão em ascendência, com 22,2% da população, antes possuíam 15,4%. As religiões de matriz africana somam apenas 0,3% da população brasileira.
Na análise de pesquisadores, o crescimento da representação política do fundamentalismo nasce nesse processo, em que o número de católicos diminui e o de evangélicos cresce.
Maria do Socorro Sousa Braga, professora de antropologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), é integrante do Núcleo de Estudos dos Partidos Latinos Americanos (Nepla) e explica que o grupo pesquisa sobre a influência das religiões na política dos países da América Latina. A respeito do Brasil, há um estudo aprofundado com relação ao avanço da religião evangélica nas instituições do poder público.
A professora esclarece que não existe uma “bancada oficial” dos evangélicos na vida orgânica da Câmara dos Deputados, como a dos partidos, e sim uma união de políticos de diferentes legendas quando se deseja aprovar alguma proposta de natureza religiosa e conservadora. “Por se organizarem, você pode pensar que é uma bancada, porque, informalmente, você pode considerar que é uma bancada, isso é o que a maior parte da mídia faz, mas, formalmente, ela não existe”, explica.
Maria diz que quando não há o interesse comum em aprovar medidas, os integrantes da “suposta bancada evangélica” seguem o que o líder partidário define junto ao partido. “Inclusive, eles são bem fragmentados, bem heterogêneos, de diferentes partidos, têm desde partidos da esquerda quanto da direita. É muito curioso isso”, pondera.
Porém, os estudos do Nepla indicam que outros segmentos conservadores da sociedade, que não são ligados aos evangélicos, se juntam a eles quando a pauta de costumes conservadores é colocada na Câmara, caso dos católicos. “É uma representação que está mais de acordo com questões comportamentais, morais. É um movimento (de obstruir debates) que gira em torno de direitos humanos, como o aborto, os casamentos homossexuais”, esclarece Maria.
O grupo de pesquisa descreve os aspectos que levaram à formação e o fortalecimento da participação política do fundamentalismo evangélico. O primeiro é a redução contínua do catolicismo no país desde a década de 1990, inclusive das correntes católicas mais progressistas. Acompanhado desse fato, veio o avanço no debate e a conquista de direitos das minorias discriminadas, questões consideradas “impensáveis” antes da década de 1980. Nesse contexto, houve o crescimento das religiões neopentecostais.
“O crescimento dessas questões comportamentais e morais, que dividem grande parte da sociedade brasileira, atravessam a religião”, avalia a especialista. Para ela, o fundamentalismo surge como consequência da não aceitação da ampliação dos direitos das minorias, o que fortalece e estimula a violência contra classes mais vulneráveis.
Mesmo assim, a professora considera que o Brasil passa por um momento de ampliação da democracia e da pluralidade dentro do Congresso. “Vários grupos estão tendo acesso. Esse é um dos períodos mais democráticos nesse sentido. Obviamente, ainda têm grupos muito mais fortes do que outros”, considera.
Laico para quem?
Pastor Elionai Muralha é como Elionai Ferreira Santos, candidato a deputado estadual pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB-BA), na Bahia, define o “nome de guerra”. Ele afirma que tem levantado a bandeira pela “transposição” dos orixás dos espaços públicos de Salvador por “amplo respeito à diversidade religiosa.”
Na campanha eleitoral, o candidato defende que os 12 orixás expostos no Dique do Tororó, que estão na represa histórica de Salvador desde 1995, sejam retirados e colocados nos terreiros requalificados. Em maio deste ano, o governo do estado da Bahia determinou ordens de serviço para a reforma de terreiros em Salvador, na Cachoeira e em Maragogipe, no Recôncavo Baiano, para adequação das instalações. Muralha avalia que os símbolos religiosos de umbanda e de candomblé que estão nas ruas devem ser levados a esses lugares.
O Dique do Tororó é um importante ponto turístico de Salvador. Os santos representados na represa são Iansã, Nanã, Ogum, Oxalá, Xangô, Iemanjá, Oxum e Oxossi. “A exposição não permanente é 100% tolerável, qualquer manifestação de crença não permanente é viável, exposição permanente tem que ser para local de culto”, argumenta o candidato. Para Elionai, o Brasil é um país com uma gama “enorme” de igrejas que defendem a fé cristã, portanto, a crença não se resume aos orixás e a exposição deles não é um ritual “litúrgico.”
“A Bahia não pode continuar sendo palco de uma crença. Ela tem que defender o Estado laico”, diz o pastor. Na visão dele, os extremos surgem por excessos. E a exposição permanente de santos afro-brasileiros é um “grande erro para a laicidade do Estado”. Ao mesmo tempo, Elionai ressalta ter boas relações com pais de santos, mesmo com as divergências.
“Mas não posso me declarar ser simpatizante dessas religiões porque o meu fundamento doutrinário diverge”, esclarece. A campanha propõe que a medida é positiva para os terreiros. O candidato afirma que antes da exposição dos deuses africanos na represa, os terreiros recebiam mais visitas de turistas, curiosos em conhecer sobre os cultos e a exposição dos orixás no dique desvaloriza a religião.
No entanto, apesar do discurso de defesa do Estado laico, Elionai Muralha, na campanha eleitoral, não menciona a retirada de símbolos de religiões cristãs, como bíblias, crucifixos e outras imagens dos espaços públicos.
Cultura popular e história
O sociólogo e professor da USP, Reginaldo Prandi, aponta que, apesar da baixa representatividade das religiões de matriz afro nos dados de censos demográficos do país, em que evangélicos e católicos se sobressaem, há uma marca afrodescendente muito forte na cultura brasileira. Segundo ele, o contrário não ocorre, pois a religião evangélica, por exemplo, não difunde hábitos nos costumes do povo. Ele aponta o caso da música gospel, que só é capaz de alcançar a comunidade crente.
Em artigo intitulado “As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia”, Prandi cita o samba, o carnaval, o acarajé, a feijoada, o despacho e os jogos de búzios como práticas populares que têm origem nos rituais e crenças das religiões de matriz africana.
Essa situação se construiu a partir dos mais de cinco milhões de africanos vindos para o Brasil como escravos, entre os anos de 1525 e 1841, que trouxeram o candomblé. Em um primeiro momento, vieram os bantos, povos localizados em regiões como o Congo, Angola e Moçambique. Depois, os sudaneses, que vinham da Nigéria e do Benin, e são os iorubas (ou nagôs) e os jejes. Atualmente, os negros formam 51% da população brasileira, segundo dados do IBGE de 2010.
As origens dos povos negros africanos são divididas entre dois grupos: bantos e sudaneses. A riqueza e a pluralidade cultural são complexas. E o candomblé é uma religião que representa a maioria dos deuses africanos.
Sendo praticada por escravos, o culto dos negros foi perseguido e realizado secretamente no Brasil, durante as madrugadas, nas senzalas e matagais. Com a imposição do catolicismo sob os povos da América Latina e negros escravizados, nasceu o sincretismo religioso. Os negros rezavam, por exemplo, para Nossa Senhora da Conceição, mas, na verdade, se dirigiam a Iemanjá. Quando oravam para Santa Bárbara, cultuavam Iansã, associando os orixás aos santos católicos.
O candomblé realiza rituais ao ritmo de atabaques e cantos em idioma ioruba ou nagô. Os ritos são guiados por pais de santo (que tem o nome africano de babalorixá) e mães de santo (ialorixá). Os jogos de búzios são feitos com um tipo de concha do mar, utilizada como um oráculo que descobre os orixás de cada pessoa.
O sincretismo dos cultos africanos também ocorreu com os rituais da cultura caipira e dos índios. Foi nesse sentido que, no início do século 20, poucas décadas depois da abolição da escravidão negra no Brasil, nasceu, na cidade de Niterói (RJ), a umbanda, culto afro-brasileiro.
A umbanda incorpora o candomblé, o catolicismo, o espiritismo, cultos indígenas e também caipiras, mas a língua é o português e não dialetos africanos. Também crê nos jogos de búzios, cultua os deuses africanos e realiza ritos ao som de atabaques.
Há uma gama muito grande de orixás, mas os mais populares e principais deuses cultuados nessas religiões são Xangô, Logun Edé, Ossain, Ibeji, Irôko, Nanã, Omolú, Oxumarê, Oxalá, Exu, Ogun, Oxóssi, Yemanjá, Iansã, Oxun, Obá e Ewá.
Os orixás incorporam as forças da natureza. Os arquétipos estão relacionados às manifestações dessas forças e as características aproximam-se dos humanos. Eles são passionais e cada um tem elementos simbólicos, como cores, comidas, cantos, rezas, ambientes e instrumentos de luta.