Por Ivânia Neves, NINJA
Nosso principal patrimônio cultural é a terra. Não tem como vivermos nossa cultura sem a nossa terra! – Naldo Tembé – Aldeia Sede
As políticas públicas em relação às sociedades indígenas, desde o início do período colonial, estiveram sempre comprometidas com regimes de exploração e violência, organizadas a partir de diferentes estratégias, que procuraram interferir e silenciar as práticas culturais e as histórias destes povos.
Se a princípio estas iniciativas eram ditadas pelos interesses da Coroa Portuguesa, o Império e a República do Brasil, sem muita hesitação, em nome do desenvolvimento e da integração do país, deram prosseguimento a este sistema. Das tensões que marcaram e continuam marcando com sangue indígena a história e o território deste país, nasceu uma legislação, ainda ameaçada pelos interesses ruralistas, capaz de garantir as terras indígenas no Brasil.
A Terra Indígena Alto Rio Guamá – TIARG, onde vivem os Tembé-Tenetehara, localizada na fronteira dos estados do Pará e do Maranhão, hoje, é resultado de um processo histórico que envolveu a participação de suas principais lideranças e a atuação de algumas instituições como a FUNAI e o Ministério Público Federal. Desde dezembro de 2012, acompanho os do Tembé do Guamá e do Gurupi. A briga pela terra, a dificuldade de estabelecer uma infraestrutura básica nas aldeias e a ameaça de novas invasões fazem parte do cotidiano deles.
Nesta matéria, procurei mostrar a posição dos Tembé diante da TIARG e os acontecimentos que resultaram numa batalha judicial de 35 anos, que deve ser finalizada em 15 de setembro de 2014. Em agosto, uma ordem judicial determinou a desocupação da maior e mais duradoura invasão de suas terras, a Fazenda Mejer.
Como a TIARG entra nos documentos oficiais do Estado brasileiro
No final do século XIX, a intensa migração de colonos europeus para a região sul abriria uma nova frente de extermínio de povos indígenas no Brasil. Em busca de terras, organizados pelo Estado brasileiro, boa parte destes novos migrantes invadiram terras tradicionalmente indígenas.
Mais uma vez, apoiados pelo Estado brasileiro e pelos governos locais, estes acontecimentos desrespeitaram os direitos humanos e resultaram em massacres indígenas.Esta situação, no entanto, foi denunciada em alguns importantes eventos acadêmicos na Europa e o governo brasileiro foi obrigado a assumir uma posição em relação às denúncias. É assim que em 1910, assessorado por intelectuais, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio.
Apesar da opinião pública, ao mesmo tempo em que criava uma política de proteção aos povos indígenas, outras atitudes governamentais agiam no sentido contrário, sobretudo nas regiões do centro-sul. Data das primeiras décadas do século XX, a distribuição das terras tradicionais dos Kaiowá promovida pelo presidente Getúlio Vargas, por exemplo.
Para justificar a preocupação com seus povos indígenas, em contrapartida a estas ações negativas, o governo federal, em negociação com os governos estaduais, demarcava reservas indígenas onde o contato era mais pacífico e as frentes econômicas menos intensas. Acreditava-se à época, no entanto, que em pouco tempo os indígenas destes territórios seriam assimilados pela cultura regional.
Neste contexto, aconteceu a criação da Reserva Indígena Alto rio Guamá, concedida pelo decreto nº 307 de 21 de março de 1945, no governo do interventor federal General Joaquim Magalhães Barata, com 279.892 ha e um perímetro de 366.292,90 metros. Esta Reserva foi destinada aos Tembé-Tenetehara, mas também incluía os Timbiras, os Guajá, os Kaapor e trabalhadores mestiços da região.
Segundo o cacique Naldo Tembé, da Aldeia Sede: “O governo sempre quis acabar com os povos indígenas. O tempo todo nós somos acusados de não sermos mais índios e o tempo todo eles inventam novas maneiras de mudar nossa cultura!”. Desde as primeiras ações do SPI, ficou evidente a intenção de transformar a Reserva em uma colônia agrícola, integrando a população indígena aos moradores da região.
A fundação da cidade de Capitão Poço, em 1961, desmembrada do município de Ourém, tinha como objetivo intensificar o agronegócio nesta região do estado do Pará. Mais uma vez, a chegada de novos colonos, vindos em sua maioria de outras regiões do país, intensificou o processo de invasões na Reserva Indígena, muitas vezes incentivadas pelo próprio SPI.
A Ditadura Militar e os Tembé: a separação
Para controlar melhor as sociedades indígenas, durante a implantação dos grandes projetos de exploração na região amazônica, a Ditadura Militar (1964-1985) transformou o SPI na Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que passou a ser presidida pelo general Bandeira de Melo. Nas suas primeiras ações, ele autorizou a Companhia Agropecuária do Pará a invadir 11 mil hectares da Reserva. Esta atitude abriu caminho para novas invasões, quase todas com incentivos fiscais aos que promovessem o desmatamento. Os danos culturais e ambientais representavam um obstáculo ao progresso não só da região, mas do país como um todo.
Fazia parte do planejamento dos militares a construção de grandes rodovias que atravessariam a floresta Amazônia: a Transamazônica e a Santarém-Cuiabá. Estas construções interferiram bastante no cotidiano dos Tembé-Tenetehara, pois precisaram remanejar suas aldeias para mais distante das rodovias. Neste processo, em função do contato pacífico como os militares, muitos homens foram convocados a atuar como pacificadores de outros povos indígenas.
Sérgio Muxi, da aldeia Tekohaw conta que: “À medida que a construção das rodovias avançava pelo território paraense, nós tínhamos que nos afastar, porque junto com estas construções vinham madeireiros, garimpeiros e muita violência”. Elias Tembé, da Aldeia Cajueiro, explica que: “Eles nos levavam para trabalhar na pacificação de outros povos indígenas, que viviam nos caminhos das rodovias. Isso durou até mais ou menos 1979. Depois voltei para o meu povo e decidi formar minha família.”
Durante este período, todas as transformações históricas produzidas pelas políticas de assimilação dos Tembé-Tenetehara aos regionais serviram de argumento para lhes tirar o direito à terra. Para seus inimigos, eles não seriam mais índios. Esta afirmação impõe uma perspectiva biológica de identidade, que desconsidera suas práticas culturais, exige deles uma identidade “pura”, além de lhes negar as transformações históricas por que passam todas as sociedades humanas.
Embora tenha sido criada em 1945, apenas em 1972 teve início o processo de demarcação da Reserva, administrado pela própria FUNAI, que só em 1976 contratou a empresa Plantel para realizar os trabalhos de demarcação. É neste perídio que tem início a maior invasão das terras dos Tembé, a criação da Fazenda de Mejer kabacznik, que abriu uma estrada de 24 km de extensão dentro da reserva para ligar sua fazenda à vila de Livramento, no município de Nova Esperança do Piriá.
No início da construção desta estrada, algumas lideranças foram chamadas para assinar uma liberação e, em troca, receberiam incentivos agrícolas do fazendeiro. Não havia, no entanto, um consenso entre os Tembé sobre esta decisão e os poucos indígenas envolvidos, nesta negociação, não sabiam ao certo o que estavam assinando. Como a própria FUNAI gerenciava a transação, a princípio, mesmo sem entender, alguns deles concordaram em assinar.
As primeiras atitudes do fazendeiro logo demonstraram que não haveria qualquer acordo entre eles e os Tembé. A situação ficou tão difícil, que os Tembé precisavam pedir autorização para transitar nas proximidades da estrada. Havia uma vigilância constante com homens armados. Esta situação causou a separação dos Tembé que viviam no norte da reserva, às margens do rio Guamá e os do sul, que se organizavam a partir do rio Gurupi.Para Pedro Tembé, cacique da Aldeia Itaputyre; “Por muitos anos não era difícil passar por lá, não, era impossível! Eles nos separaram! As poucas vezes em que nos encontramos com o pessoal do Gurupi, fomos por fora da nossa terra, não por dentro.”
A constituição de 1988, os Direitos Indígenas e a homologação da TIARGO
Os interesses dos fazendeiros e a sistemática separação dos Tembé convergiram para um processo de divisão da Reserva e em 1988, eles entram com uma ação na justiça para efetivar a divisão. Mas, neste mesmo ano, a própria FUNAI recorreu da decisão e conseguiu retornar a configuração original. A partir daí, iniciou-se na justiça o processo de desocupação.
Com o fim da Ditadura, inicia-se uma grande luta dos povos indígenas para garantir seus direitos na Nova Constituição. Neste novo contexto, começa a haver uma maior flexibilização nas relações de poder nas aldeias Tembé. A presença dos chefes de posto ainda impõe as regras, mas gradativamente, as lideranças começam a fazer valer seus interesses.
Em 1992, um acontecimento decisivo marcou o processo de apropriação de suas terras, os Tembé do Guamá e do Gurupi realizaram uma primeira reunião geral. A partir deste momento, mesmo com dificuldades para transitar por suas próprias terras, o intercâmbio entre eles passou a ser constante.
No início dos anos 90, perto da homologação da TIARG, ainda houve um movimento para transferir os Tembé que viviam na região do Guamá. Se isso tivesse acontecido, provavelmente, esta terra indígena teria apenas metade do território que tem hoje. América Tembé, agente de saúde indígena da região do Guamá afirma: “Fizeram várias propostas para a gente sair daqui. Eles queriam nos levar para o Gurupi e prometiam muitas vantagens, mas a gente não queria sair daqui. A gente nasceu aqui. Aqui era a nossa casa”. A resistência em aceitar esta decisão foi fundamental para manter o atual território da Terra Indígena Alto Rio Guamá. Finalmente, em 1993 aconteceu a homologação da TIARG.
Em 1998, um dos acontecimentos mais dramáticos envolvendo 77 homens Tembé do Gurupi e do Guamá marcou profundamente o processo de apropriação de suas terras. Depois de destruírem uma invasão dentro da Terra Indígena, eles foram aprisionados pelos fazendeiros, submetidos durante três dias a condições sub-humanas, sem comida, sem água e num espaço mínimo, onde não podiam todos deitar ao mesmo tempo. Várias vezes foram ameaçados de morte. Naldo Tembé diz que “No terceiro dia, já não acreditávamos mais que fôssemos sobreviver”.
As mulheres contam que foi um momento de pânico. Não tinham notícias do que havia acontecido. Sabiam o objetivo da missão, mas não entendiam por que os homens não retornaram. Como explica Puyr Tembé “Todos estavam desesperados na aldeia e a primeira informação veio através de uma emissora de rádio. Quando soubemos da prisão, entramos em desespero, mas não podíamos fazer nada. Seria pior se fôssemos até lá! Foram três dias de profunda tristeza. Eram nossos pais, maridos e filhos que podiam ter morrido naquela situação”.
A situação só se resolveu, porque a polícia interviu e obrigou os fazendeiros a libertá-los. Várias mulheres relatam que a volta de seus maridos e filhos foi um momento de muita emoção. Sem comer por três dias, estavam todos muito magros, com uma aparência de quem realmente voltava de uma guerra. Para elas, era um milagre vê-los regressando.
Tudo que aconteceu foi, sem dúvida, uma tragédia para eles. Mas, como analisa Naldo Tembé: “Por pior que tenha sido, serviu para nos unirmos ainda mais!”. Depois deste acontecimento, os fazendeiros envolvidos neste conflito foram obrigados a se retirar da TIARG e o desejo de afastar todos os invasores se intensificou entre eles.
A desocupação da TIARGA
As mortes do fazendeiro Mejer e de seu filho mais velho começaram a sinalizar para uma perspectiva de retomada das terras. João Tembé, da Aldeia Itaputyre afirma que: “Depois que o velho e o filho mais velho morreram, o que ficou administrando a fazenda disse que não ia mais brigar para ficar com a parte que está em nossas terras. Quando saiu a decisão que nós ganhamos na justiça, ele mandou destruir tudo que tinha lá, as casas e tudo. Mas nós ainda não retomamos nada não. Ainda falta sair a ordem. Só que agora a gente já pode pelo menos ir lá para o Gurupi de moto, sem medo dos caras que vigiavam a estrada.”
Em 2013, finalmente a justiça decretou a saída definitiva da última invasão na TIARG, porém, demorou mais de um ano para ser liberada a ordem de despejo, assinada só em agosto de 2014. Segundo a decisão, a desocupação deve acontecer hoje, no dia 15 de setembro.
As dificuldades e as ameaças à TIARG ainda são bem grandes. A extração de madeira, o avanço das frentes agropecuárias e até mesmo a presença de traficantes e de plantações de maconha na região continuam ameaçando os Tembé. A luta pela terra representa a luta por um modo de vida e, sem dúvida ela é o maior patrimônio cultural desta sociedade.
Para Puyr Tembé: “Este é um momento de muita esperança para o nosso povo. Agora nós vamos recuperar todas as nossas terras. Mas o desafio continua, porque nossas fronteiras continuam ameaçadas pelos interesses de muitos pessoas importantes na região!”