“Como você pode entender que a sétima economia do mundo tenha, nas medições internacionais, ou o pior ou o segundo pior índice de desigualdade social do mundo? A questão da violência também se combate com políticas sociais efetivas de melhorias da qualidade de vida, da renda e da condição de vida da população”, afirma o sociólogo
IHU On-Line – A Constituição brasileira permite uma interpretação “dúbia” do que se entende por “garantia da lei e da ordem” e, portanto, possibilita a atuação das Forças Armadas em atividades que são restritas à polícia, critica Cláudio Silveira, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
Segundo ele, a presença constante das Forças Armadas nas favelas e em eventos internacionais, como recentemente na Copa do Mundo, ocorre porque governadores pedem “à presidente da República que envie tropas federais para ajudar o estado, valendo-se da justificativa de garantir a lei e a ordem”.
Silveira explica que, “contudo, a garantia da lei e da ordem da Constituição de 1988 é de difícil compreensão, porque serve tanto para permitir que as Forças Armadas venham a participar em determinadas atividades — ainda que sejam atividades complementares — voltadas, por exemplo, à ajuda às polícias estaduais para tratar da questão da segurança pública, ou então até mesmo à contenção de uma sublevação armada legítima ou ilegítima, como aconteceu com a intervenção política institucional de regime, em 1964. Então, existe uma complexidade muito grande nessa expressão, que está legitimada na Constituição, mas que é muito complexa, muito problemática”.
Contrário à participação das Forças Armadas no cenário interno, Silveira é enfático em sua posição. “Eu e alguns outros defendemos a ideia de que as Forças Armadas brasileiras tenham de participar exclusivamente daquilo que diz respeito à defesa nacional, contra a agressão do inimigo externo e a participação junto a países a partir da anuência das permissões da ONU de missões de paz, como, por exemplo, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – MINUSTAH”, esclarece.
E acrescenta: “Os militares não têm de fazer nada disso, porque são militares e não polícias — não é porque portam armas que podem fazer o trabalho da polícia. Esse tipo de trabalho de segurança pública deve ser feito pelas polícias estaduais, militares e civis. E vou além: acredito que a polícia militar e a polícia civil deveriam ser uma polícia só; não deveriam ter duas corporações distintas”.
Na entrevista a seguir, o pesquisador também é contundente em relação à atuação das Forças Armadas para preservar as riquezas naturais brasileiras, especialmente, considerando os possíveis interesses e intervenções de outras potências. “O que estou querendo dizer é que não podemos achar que, porque supomos que Deus é brasileiro e que todo mundo gosta do Brasil, em algum momento não haja necessidade de nós pelo menos termos uma capacidade crível de defesa. Por isso precisamos ter as nossas Forças Armadas modernizadas, treinadas e razoavelmente bem equipadas”.
Cláudio Silveira é graduado em Filosofia e em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde também cursou mestrado em Ciências Sociais. É doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e atualmente leciona na UERJ. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os indícios de que o Haiti serviu de laboratório para a implantação das UPPs no Rio de Janeiro? Que características da ação dos militares no Haiti foram aplicadas às UPPs?
Cláudio Silveira – Primeiro temos de partir do pressuposto de que essa equação não é tão simples. Para responder à questão, vou explicar como esse modelo de participação das Forças Armadas nas grandes cidades gerou o modelo de UPPs.
O artigo 142 da Constituição diz que as Forças Armadas têm por missão a defesa do país, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. O problema está no que significa “da lei e da ordem”. No que se refere à República, que já começou com um Golpe Militar, podemos dizer que a garantia da lei e da ordem foi uma intervenção. A primeira Constituição brasileira, no período do Império, dizia que aspectos relacionados às Forças Armadas deveriam ser essencialmente obedientes ao imperador e depois, mais tarde, a obediência ficou restrita à Constituição Republicana. Então, nesse sentido, os militares brasileiros sempre tiveram uma participação interna no país.
Contudo, a garantia da lei e da ordem da Constituição de 1988 é muito dúbia, de difícil compreensão, porque serve tanto para permitir que as Forças Armadas venham a participar em determinadas atividades — ainda que sejam atividades complementares — voltadas, por exemplo, à ajuda às polícias estaduais para tratar da questão da segurança pública, ou então até mesmo à contenção de uma sublevação armada legítima ou ilegítima, como aconteceu com a intervenção política institucional de regime, em 1964. Então, existe uma complexidade muito grande nessa expressão, que está legitimada na Constituição, mas que é muito complexa, muito problemática.
Função das Forças Armadas
Sou daqueles que são contra esse tipo de participação das Forças Armadas no cenário interno. Eu e alguns outros defendemos a ideia de que as Forças Armadas brasileiras têm de participar exclusivamente daquilo que diz respeito à defesa nacional, contra a agressão do inimigo externo e a participação junto a países a partir da anuência das permissões da ONU de missões de paz, como, por exemplo, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – MINUSTAH. Nesse sentido, as Forças Armadas brasileiras foram para o Haiti para ajudar a pacificar e estabilizar um país latino-americano bastante conturbado pela sua história recente, sobretudo com autorização do mandato da ONU. Então, trata-se de uma missão externa do Brasil. Houve uma contestação na opinião pública brasileira e mesmo no Congresso Nacional de questionar por que os militares estão no Haiti. Alguns disseram: estamos no Haiti porque o Brasil deseja maior progressão internacional; estamos no Haiti porque isso vai legitimar interesses brasileiros relacionados a um futuro assento possível no Conselho de Segurança da ONU; estamos no Haiti porque é um país latino-americano pobre que tem características culturais e éticas parecidas com as do Brasil; enfim, estamos no Haiti porque o Brasil é solidário e pacífico com seus vizinhos, países amigos.
Experiência do Haiti e a criação de UPPS
Aí é que entra a discussão sobre as Forças Armadas no Haiti e as UPPs implantadas no Brasil. Alguns políticos e militares resolveram dizer que, para justificar o orçamento que o Brasil gasta com o envio de tropas e treinamento de pessoal no Haiti, aquilo que estava sendo feito lá poderia servir como um tipo de roteiro, de modelagem para as eventuais atividades complementares de garantia da lei e da ordem no Brasil. Isso eu vi e ouvi da boca do comandante do Exército, Enzo Peri, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME, justificando, dentre outras coisas, a participação do Exército brasileiro nas cidades brasileiras para garantir a lei e a ordem. Existem batalhões do Exército como, por exemplo, em Campinas e nos arredores do Distrito Federal, em Goiás, especializados na garantia da lei e da ordem. Os próprios militares acham que essa é uma atividade complementar e consideram legítimo ser uma atividade complementar.
Assim, para tentar resolver os problemas da segurança pública em estados mais conturbados, como o Rio de Janeiro, houve, portanto, alguns ditos convênios com o governo federal para que os militares interviessem de maneira pontual e circunstancial, como foi o caso da Rio-92, como foi o caso que aconteceu mais tarde no Morro da Providência em 2003, e, ainda mais recentemente, na Copa do Mundo e durante eventos internacionais. Ou seja, o governador pede à presidente da República que envie tropas federais para ajudar o estado, valendo-se da justificativa de garantir a lei e a ordem.
Os militares não têm de fazer nada disso, porque são militares e não polícias — não é porque portam armas que podem fazer o trabalho da polícia. Esse tipo de trabalho de segurança pública deve ser feito pelas polícias estaduais, militares e civis. E vou além: acredito que a polícia militar e a polícia civil deveriam ser uma polícia só; não deveriam ter duas corporações distintas. No plano federal, qualquer tipo de atividade necessária à garantia da lei e da ordem deveria ser feito por uma guarda nacional, por outra corporação que não as Forças Armadas, mas infelizmente é o contrário do que acontece. Então, foi feito o que foi feito e efetivamente os militares participaram dessas atividades de garantia da lei e da ordem nas áreas ditas perigosas, nos morros das favelas do Rio de Janeiro. Nesse sentido, as UPPs foram feitas pela necessidade da dita pacificação. Até o termo é copiado das atividades desenvolvidas nas missões de paz para tentar conter as áreas mais perigosas — não todas as áreas mais perigosas da cidade do Rio de Janeiro, mas aquelas que comprometem a vida, sobretudo, das pessoas de classe média e classe alta, e o turismo e os negócios de todos que vêm ao Rio de Janeiro.
IHU On-Line – Como resolver os problemas em torno da segurança pública? Como vê os projetos de desmilitarização da polícia tendo em vista a segurança pública?
Cláudio Silveira – Sou completamente a favor da desmilitarização da polícia. Esse tema voltou recentemente por causa dos protestos desde o ano passado, por causa da Copa do Mundo, das Olimpíadas, do movimento “não vai ter copa”, à medida que parte da população, sobretudo uma população jovem, foi para as ruas. O tema da desmilitarização da polícia só passou a ser importante porque uma certa juventude, de ensino médio e ensino superior, digamos assim, e certa população de classe média — ainda que de classe média baixa — e estudantes das camadas populares, mas não necessariamente pobres e miseráveis, foi à rua para lutar por aquilo que acha interessante e significativo. E nós vimos o papel equivocado da polícia em várias ocasiões. Essas pessoas foram vítimas do abuso da polícia em vários aspectos, e por isso esse tema voltou.
Enquanto a polícia age com truculência nas periferias, nas favelas das grandes cidades brasileiras, com a população mais pobre e miserável, ninguém discute esse tema. Quando isso atinge certa parcela da população que tem vez e voz, aí esse tema volta. Desde a Constituição de 1988, a desmilitarização da polícia, a profissionalização da polícia e a unificação da polícia deveriam ter sido resolvidas. Mário Covas foi o primeiro governador — e olha que não tenho necessariamente afinidades políticas com o partido dele — a tentar resolver esse problema. Mas não dá para fazer isso do ponto de vista do estado de São Paulo, tem de fazer através da mudança do artigo 144 da Constituição. Outros governadores também tentaram, como Garotinho, buscando fazer com que houvesse de fato uma corporação só. Isso não teve sucesso porque existem implicações políticas e institucionais muito grandes em nível federal.
De todo modo, sou completamente a favor da desmilitarização e da unificação da polícia, do retreinamento, de que a polícia faça seu papel e faça cada vez melhor, para que os argumentos usados para que as Forças Armadas substituam a polícia sejam superados.
IHU On-Line – Além dessas questões, teria outra solução para resolver a segurança pública no Brasil?
Cláudio Silveira – Sou fundador, junto com alguns, da Associação Brasileira de Estudo de Defesa. Fizemos nosso encontro bianual em Brasília na semana passada, e uma das palestras mais importantes que assisti tratou das novas missões das Forças Armadas, da tormenta que é tratar o que significa as novas missões das Forças Armadas. Boa parte da sociedade brasileira acha que o Brasil é um país pacífico com seus vizinhos, não temos e provavelmente não teremos nunca problemas com eles e, por isso, precisamos das Forças Armadas muito mais para trabalhar nessas atividades complementares e internas do que em assuntos externos — é como o jeitinho brasileiro, no sentido de tentar resolver algo de um jeito equivocado, ao contrário de resolvê-lo do jeito certo. Essa questão está presente nas nossas instituições, em vários aspectos.
Meu colega que estava presidindo a mesa, professor Hector Sampiere, da UNESP, disse uma coisa muito importante: “Não há solução para o crime; o crime, seja qual for, é inerente à sociedade, toda a sorte de crime, inclusive os mais complexos e problemáticos, que afetam a vida da sociedade, como as ações do crime organizado e do narcotráfico. O que se pode fazer, com um trabalho de inteligência, um trabalho de melhor preparação das nossas polícias, é conter a violência; acabar com ela é impossível”. Moreira Franco se elegeu governador do Rio de Janeiro contando uma mentira para a população, no período do Plano Cruzado, em 1986, dizendo que acabaria com a violência em seis meses, e as pessoas acreditaram nisso.
Não se acaba com a violência, se tenta controlá-la. Qualquer sociedade. Todo plano mirabolante de algum governador ou presidente da República dizendo que vai reduzir no seu mandato os índices de violência e de criminalidade, é um engodo. Então, quer dizer, as questões de segurança pública sempre são relevantes porque o crime e a violência fazem parte da vida da sociedade.
Medidas
Agora, diante disso, podemos trabalhar de maneira planejada e mais articulada. O governo federal tem várias polícias: a federal, a rodoviária federal, a ferroviária federal e ainda articula com as polícias estaduais uma atividade associada a isso que se chama de força nacional de segurança, que é tocada pelo Ministério da Justiça, que pega um conjunto de policiais das unidades de federação e que tem também poder de polícia. Então, acredito que possa haver maior diálogo, interação e criação de centro de operação de comandos e controle entre as polícias dos estados e as polícias federais. As Forças Armadas podem, às vezes, ajudar com alguma informação ou com algum equipamento de sofisticação tecnológica, algum suporte logístico, mas não que tenham de fazer o trabalho da polícia.
Há quem diga que a partir da experiência da Copa do Mundo e da Jornada Mundial da Juventude, pela primeira vez, os corpos policiais estaduais e federais sentaram junto das Forças Armadas para pensar ações de coordenação, de comando, de controle, e que isso pode ser uma ajuda para melhorar a capacidade do Estado em tratar o problema da violência. Agora, também é preciso ouvir, de uma maneira mais clara e participativa, as diversas instituições sociais, a sociedade civil nas suas diversas organizações.
O Brasil é a sétima economia do mundo. Quando eu era um garoto de 15 anos, ainda no período do golpe militar, o Brasil era a oitava economia mundial. Como você pode entender que a sétima economia do mundo tenha, nas medições internacionais, ou o pior ou o segundo pior índice de desigualdade social do mundo? Então, a questão da violência também se combate com políticas sociais efetivas de melhorias da qualidade de vida, da renda e da condição de vida da população.
Vocês devem ter ouvido falar nas UPPs Sociais. Havia uma crítica de que o governo só se preocupava com o aparato repressivo, e a questão do aparato repressivo é diminuir o tiroteio e a chamada bala perdida que, sobretudo, incomoda os que moram nas zonas privilegiadas da cidade. Agora, a missão do governo não é só acabar com o tiroteio e a bala perdida, mas fazer com que a população viva com menos pânico, com mais calma, ou seja, melhorar a vida daquelas pessoas que, por causa da sua situação de vulnerabilidade social, são alvo mais fácil do crime organizado e do narcotráfico.
IHU On-Line – Mas as UPPs Sociais recebem críticas porque não trazem uma melhora significativa para a vida das populações. Como o senhor avalia essas Upps?
Cláudio Silveira – A verdade é isso. Elas são um paliativo. O ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, dizia que o estado investiria em UPPs Sociais, mas a reboque das críticas que as pessoas faziam, porque não estava no plano de governo necessariamente gastar algum tipo de dinheiro com essas atividades. Mas depois se viu que essas medidas também tinham alguma relevância, algum eco entre os aliados políticos e, portanto, as UPPs Sociais foram criadas. Agora, o que eu vejo as populações dizerem é que as UPPs Sociais não servem para muita coisa, porque, na verdade, o que tem de melhorar, para a população, são os índices de educação, de saúde, de habitação. Fazer uma ou outra atividade cultural ou fazer algum tipo de construção de uma pequena vila olímpica, ou melhorar um pouco a situação do transporte, como o teleférico do Morro do Alemão, por exemplo, não adianta. O governo queria fazer um plano inclinado, uma coisa parecida na Rocinha, e a própria população da Rocinha foi à casa do então governador, no Leblon, para dizer que não queria nada daquilo. As pessoas querem não só atividades, mas reformas profundas, permanentes e estruturais. Então, a crítica que essas populações e outros fazem às UPPs Sociais é válida, porque quem garante que determinados projetos como esse não acabem daqui a pouco, na próxima eleição?
IHU On-Line – Nos anos 1990, o senhor fez sua dissertação de mestrado sobre os riscos à democracia por conta da intervenção militar na Nova República. Quais são os riscos da intervenção militar à democracia e desde quando eles podemser sentidos no Brasil? Isso é característico de pós-ditadura militar ou já desde sempre?
Cláudio Silveira – Alguns analistas brasileiros e estrangeiros falam dessa realidade, que é também a realidade da América Latina. Quando escrevi esse trabalho, nós estávamos passando pelo processo de transição política e estávamos fundando o que se chama de Nova República. Entretanto, por ser o primeiro governo civil, ainda que por eleição indireta, depois da ditadura militar, era um governo que se escudava sob a tutela militar. General Leônidas Pires Gonçalves, que era o ministro do Exército, porque ainda não havia Ministério de Defesa, fazia determinados pronunciamentos relacionados à constituinte, aos rumos da nova democracia no Brasil, a tudo que poderia se referir a um problema que, do ponto de vista da política conservadora, seria levar o país ao caos, a uma situação de desagregação; ou seja, ter governos de esquerda eleitos democraticamente, que fizessem um pouco mais de política social aprofundada para a população, que lutassem por esses aspectos de desigualdade social, tudo aquilo que tinha a ver com as marcas do período da ditadura. Então, o risco estava no retrocesso de nós termos algum tipo de crise institucional que fizesse com que os militares e a elite civil — porque os militares não dão golpe sozinhos — retrocedessem a experiência democrática.
Na democracia são os civis que controlam a política e não os militares; os militares têm de voltar aos quartéis e participar da vida social como cidadãos, porque têm direito a voto e isso é legítimo, são cidadãos de farda.
IHU On-Line – O que se discutiu no encontro da Associação Brasileira de Estudo de Defesa, este ano, sobre a nova missão das Forças Armadas? Em que consiste a política de defesa brasileira no âmbito internacional? Qual é a inserção do Brasil no contexto internacional?
Cláudio Silveira – As novas missões das Forças Armadas ou a tormenta — no sentido intelectual — das “novas” missões das Forças Armadas, não quer dizer que elas tenham deixado as chamadas missões tradicionais, ou seja, questões relacionadas a disputas éticas, problemas ambientais, crime organizado, narcotráfico, questões de direitos humanos e incremento da necessidade de atividades de missões de paz e coisas assim por causa do fim da Guerra Fria. Não que essas preocupações não existissem na época da Guerra Fria, mas, segundo determinados analistas, elas foram superdimensionadas, aumentadas, multiplicadas a partir do fim da Guerra Fria, ou mais visíveis a partir do fim da guerra. Então, é por isso que determinados países formalmente ou substancialmente democráticos usam as Forças Armadas para atividades complementares para tentar combater essas novas ameaças. Portanto dão novas missões para as Forças Armadas além da missão princípio de defesa.
O Brasil deve pensar no seu ordenamento institucional e das Forças Armadas — está escrito na política nacional de defesa e na estratégia nacional de defesa —, que se volta prioritariamente à defesa externa, à defesa da pátria, mas que pode se envolver em determinadas atividades internas conforme estamos falando neste momento. Então, ter de pensar a defesa significa a modernização da nossa capacidade militar, porque não existe país — e temos de ser realistas nesse sentido — que aumente sua presença no cenário internacional, como é o caso do Brasil, apenas por causa do crescimento econômico e da atividade daquilo que o Brasil sempre fez em relação ao hard power e soft power. Hard power é o poder militar e soft power é a atividade cultural, os valores da sociedade. No Brasil, do mesmo modo que cremos de uma maneira absoluta de que Deus é brasileiro, cremos, em última instância, que todos gostam de nós e continuarão gostando. Então, não se pensa que em um futuro próximo ou distante o Brasil tenha de se envolver em algum tipo de conflito internacional, ou ser ele próprio alvo de um tipo de conflito internacional, conflito bélico, porque o aumento da projeção da presença do Brasil aumenta a responsabilidade do Brasil no mundo. Então, não podemos achar que só com a nossa lábia diplomática, com o Itamaraty, com o nosso futebol, com a caipirinha, com as nossas tradições culturais, vamos influenciar o mundo e que isso tem a ver com soft power, com a nossa cultura, com nosso jeito de ser, com nossa simpatia e nossa dita cordialidade.
Defesa
O que estou querendo dizer é que não podemos achar que, porque supomos que Deus é brasileiro e que todo mundo gosta do Brasil, em algum momento não haja necessidade de nós pelo menos termos uma capacidade crível de defesa. Por isso nós precisamos ter as nossas Forças Armadas modernizadas, treinadas e razoavelmente bem equipadas.Fernando Henrique criou o Ministério da Defesa e a primeira versão da política de defesa nacional, com todos os erros que ela teve, depois Lula fez a segunda política e agora Dilma fez uma revisão. Criaram um livro branco de defesa, criaram a estratégia nacional de defesa para o Brasil dizer a si mesmo e aos outros quem ele é e o que espera do mundo, porque há uma complexidade na dinâmica internacional e o mundo muda. O Brasil precisa dizer para o mundo: nós temos de nos preparar para cooperar, para integrar, sobretudo, no caso do nosso subcontinente sul-americano, com o Conselho de Defesa Sul-Americano. Temos de ter alguma capacidade de defesa crível na marinha, no exército e na força aérea que pelo menos atrapalhe e perturbe algum tipo de agressor ou um conjunto de agressores externos.
Além disso, o Brasil tem de levar em conta seus recursos naturais: somos o maior potencial de água doce do mundo em estado líquido, temos pré-sal, temos nossas riquezas materiais de mineração em várias partes do país, temos aAmazônia, a nossa biodiversidade. Temos de proteger o que nós somos, porque eventualmente nossos recursos podem interessar a alguma potência externa ou a algumas potências externas. Então, nesse sentido, está certo o que os governos têm feito ao longo do tempo no sentido de modernizar a marinha, de fazer o projeto de submarino com propulsão nuclear, a compra dos caças que agora vão ser caças Gripen, a criação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – SISFRON, que é o sistema de fronteira de Norte a Sul, passando pelo Oeste, e a criação de sistemas de monitoração no controle eletrônico e de inteligência que ajudam nesse tipo de capacitação voltada à defesa. E, nesse caso, a estratégia nacional de defesa diz uma coisa importante: que o Brasil não pode simplesmente ser um país que compre material de defesa do exterior, porque há muita ciência e tecnologia metida no meio desses materiais. Quando o Brasil faz acordos com França, Itália, Suécia ou com os Estados Unidos, está determinado que a tecnologia seja transferida para o Brasil e isso é importante, porque ajuda a desenvolver não só a nossa capacidade militar, mas também a nossa capacidade industrial, nossa capacidade de bens e serviços. Então, nesse caso a situação está indo no rumo certo; além do mais, a modernização não é só no aspecto da máquina militar em si, é a modernização organizacional da mentalidade dos valores.
Participação das mulheres
Nós reclamamos há muito tempo em relação à participação efetiva das mulheres nas Forças Armadas, para que elas sejam não só das atividades meio, mas das atividades fim, que a mulher seja combatente. Por que a mulher não pode estudar na Academia Militar das Agulhas Negras – AMAN, na Academia da Força Aérea – AFA, na Escola Naval e ser combatente das Forças Armadas brasileiras? A mulher não precisa apenas ser professora, médica, dentista, advogada, engenheira ou administradora. Essa discussão envolve, também, por exemplo, os homossexuais. Essa descriminalização do ambiente bastante conservador dá a ideia de que o homossexual não pode ter direito, pelo menos, de dizer que é homossexual, dentro das Forças Armadas. Essas são coisas importantes. Além do que, tem de haver maior integração do ensino militar com o ensino civil, porque o país é quem paga pelas suas Forças Armadas e paga também pelo seu sistema de ensino nacional e estadual, mas a educação militar é controlada pelos militares — agora eles obedecem a alguns critérios do MEC —, mas são eles que têm autonomia para tratar da sua educação, quando não deveriam ter.
IHU On-Line – Como avalia o apoio do Brasil ao Irã à época do presidente Lula, e depois outro posicionamento da presidente Dilma, revendo a posição brasileira anterior e, mais recentemente, a defesa à Palestina e a crítica a Israel?
Cláudio Silveira – Uma coisa é o fato e outra coisa é a repercussão do fato. Então, o Brasil tem melhorado ou procurado melhorar o seu posicionamento, seu alcance no nível internacional. Então, para discutir o problema do Oriente Médio ou para tentar resolver alguma coisa relacionada ao Oriente Médio, o Brasil se pôs a favor do Irã à época do governo Lula, para tentar trazer o Irã para um tipo de atitude um pouco mais cooperativa e reconciliadora no contexto internacional, o que era muito a adversidade com o governo dos Estados Unidos. De uma maneira geral, a nossa imprensa e parte da opinião pública acha que qualquer divergência com os Estados Unidos vai ser um problema para oBrasil. Mas o Brasil tem divergências com a Argentina e é vizinho e irmão da Argentina, como tem com a França, com Portugal, com a China e com qualquer país. Mas quando se fala em divergência com os Estados Unidos, parece que aí vira um bicho de sete cabeças. A posição do governo Lula, de tentar fazer algo nesse sentido, foi correta, mas divergiu da posição de Obama. E foi por pressão do governo americano que a situação não chegou a contento do ponto de vista da perspectiva brasileira, porque no Brasil o Irã já está demonizado pela opinião pública.
Declarações como a de que o Brasil está tentando conversar com o Irã e a Turquia, ou de o Brasil e a Turquia conversarem com o Irã para deixar fazer inspeção para tratar da problemática da política nuclear, e que isso implica que Lula e Ahmadinejad estão juntos contra os Estados Unidos, é bobagem. E dizer que o Brasil não tem nada a ver com o Oriente Médio também é outra bobagem. O Brasil ajudou na criação do Estado de Israel.
Bom, então o Brasil tem a ver com o Oriente Médio. Vários judeus moram no Brasil, assim como vários palestinos, árabes. Por conta disso, o Brasil tem interesse que a situação do Oriente Médio seja resolvida. Quando o Brasil se posiciona chamando o embaixador para pedir um esclarecimento sobre o conflito de Gaza e os exageros de Israel em relação à situação de Gaza, vem alguém de Israel dizer que o Brasil não tem nada a ver com isso e que é um anão diplomático. É um melindre muito grande discutir a influência dos Estados Unidos no mundo e a influência dos Estados Unidos no Oriente Médio com seu aliado fundamental, Israel. Então, qualquer tipo de análise de divergência ou de crítica, ou de manifestação de preocupação, como é o caso da situação também da Síria, é visto como uma tempestade em copo d’água.
Mas o Brasil, nesse sentido, mantém um bom funcionamento. A presidente Dilma também acabou se frustrando com os Estados Unidos, porque, tentando não partir para um tipo de relacionamento de confronto, sentiu-se traída e lesada pelas denúncias do Snowden. E aí você vê como a política é complicada, porque não foi só ela, envolveram outros líderes mundiais, mas o fato é que os Estados Unidos pensam em primeiro lugar nos seus interesses. Embora haja uma iniciativa de mover um pouco mais o multiculturalismo — e acho que Obama até caminha nessa direção —, há coisas que se referem, em primeiro lugar, ao interesse nacional dos EUA, e é por eles que tanto democratas quanto republicanos vão se mover.
IHU On-Line – Por outro lado, evitam-se críticas ao Estado Islâmico no Oriente, ainda mais depois dos últimos assassinatos cometidos pelos muçulmanos (jihadistas) que fazem parte do Estado Islâmico?
Cláudio Silveira – Ah, sim, isso é problemático. Para ser coerente, tem de fazer crítica a esse tipo de atuação aos governos de determinados Estados Islâmicos que dão cobertura a atitudes como essas que nós vimos esses dias. Então, nós também não temos de ter dois pesos e duas medidas.
IHU On-Line – Qual o posicionamento das Forças Armadas no combate ao narcotráfico e à defesa das fronteiras brasileiras?
Cláudio Silveira – Essa é uma atividade complementar das Forças Armadas. Os militares não podem dizer que não vão participar, porque essa atividade está dentro da visão da legislação da ideia da garantia da lei e da ordem. Ao longo do tempo, vi vários chefes militares que preferiam não participar de nada disso, porque os militares, assim como a política, pode tender a aumentar ou alimentar atividades de corrupção no seu interior por causa de atividades do narcotráfico — porque narcotráfico tem muito dinheiro e pode corromper muitos policiais e também militares das Forças Armadas. Então, ao longo do tempo, nas décadas de 1990 e início dos anos 2000, ouvi vários militares dizendo que eles não deveriam se envolver em nada disso porque, primeiro, não é atividade de militares e, segundo, porque há o risco de aumentar esse tipo de corrupção no seio da instituição. Mas o aparato institucional, também por conta da lei que deu poder de polícia a Nelson Jobim, nessa perspectiva de dar poder de polícia às Forças Armadas nas fronteiras, na ausência da polícia federal ou de polícias estaduais, acaba participando de casos de corrupção, principalmente na fronteira Oeste e na fronteira marítima, porque temos 7.500 km de costa e nem toda essa extensão é patrulhada da maneira como deveria ser.
O grande risco é fazer com que as polícias sejam militarizadas e que os militares virem polícia. Esse é o problema. As Forças Armadas podem até dar algum suporte, algum apoio de inteligência, de logística, emprestar helicóptero, mas não devem de fato se envolver diretamente na questão do narcotráfico, senão vamos cair num processo de “mexicanização”. As Forças Armadas mexicanas são praticamente todas voltadas ao combate do narcotráfico. Minha preferência política e intelectual é a de que as Forças Armadas não participem de nada disso. Deveria ter uma guarda nacional para tratar dessas questões e as Forças Armadas deveriam fazer o patrulhamento das áreas, das linhas de defesa aérea, marítima e terrestre e cooperar com as polícias nesse aspecto de inteligência e de logística.
(Por Patricia Fachin)