Tania Pacheco* – Combate Racismo Ambiental
Com 17 slides bilíngues, o governo federal teoricamente dá início amanhã ao processo de consulta prévia, livre e informada ao Povo Munduruku sobre a construção da UHE São Luiz do Tapajós. Nesta primeira etapa, apelidada de Planejamento, serão dois dias de reunião na Aldeia Praia do Mangue, Itaituba, da qual devem participar também – por decisão do Juizado da 2ª Vara Federal, Subseção de Santarém, nos é informado – os parentes da Praia do Índio, Pimentel, Km 43, São Luiz do Tapajós e, eventualmente, outros (e aí há no slide uma frase truncada que não se sabe a quem atribuir: se à decisão judicial, se a quem a digitou no power point). No convite da Secretaria Geral da Presidência constam também a Associação Indígena Pahayh’s, a Pusuru, o Movimento Ipereg Ayu e o Cacique Geral do Povo Munduruku.
A apresentação prevê quatro etapas para o processo: Planejamento (esta primeira, de dois dias), Informação, Diálogo e Comunicação dos Resultados. Da área governamental, participarão a Secretaria Geral da Presidência; a Funai/Ministério da Justiça; os Ministérios das Minas e Energia e do Planejamento; e a Eletrobras. Não sei se deveria também estar presente o Ministério das Relações Exteriores, um dos principais responsáveis pelo Grupo de Trabalho Interministerial formado para estudar a regulamentação do processo de Consultas, do qual os Povos Indígenas (e a Funai, de certa forma) se retiraram em meados do ano passado. Provavelmente, não.
Aliás, considerando a saída em protesto à quebra de palavra por parte do governo federal (um dos três itens do acordo concernia a AGU 303; outro, a retomada das demarcações; e só o primeiro – encontro de lideranças com a Presidenta – foi cumprido), fico curiosa quanto a como se dará esse Planejamento, uma vez que um dos slides afirma, corretamente, que o processo envolve “um diálogo de boa-fé”…
Também fico curiosa com relação ao poder informativo desses 17 slides (na verdade, não são 17, na medida em que há a ‘capa’ e um ‘fecho’ com as armas da República) para embasar um planejamento sobre algo tão sério. E fico ainda mais preocupada ao considerar esse de número 4, que não por acaso reproduzi acima. A pergunta é razoável: “Por que consultar?”. Já a resposta… Busca-se a autoridade moral de James Anaya (ex-Relator de Direitos Indígenas da ONU) para legitimar uma resposta totalmente absurda usando-se uma frase fora de seu contexto.
Quer dizer então que o Estado tem o dever de consultar por reconhecer as condições historicamente desfavorecidas dos Povos Indígenas? Coitadinhos! Pois eu jurava que a Convenção 169 da OIT seguia por outro caminho, falando em sujeitos de direitos, e não de pobre vítimas “desfavorecidas”!
A forma como aparecem nos slides a decisão da Justiça e a menção à Ação Civil Pública nº 3883-98.2012.4.01.3902 de certa forma deixam clara a ‘saia justa’ do governo federal. E sugerem, aliás, uma pergunta para mim fundamental: onde está a 6ª Câmara nisso tudo? Espero que o Ministério Público Federal no Pará, dos mais aguerridos deste País na defesa do Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais, esteja lá presente, lado a lado com os Munduruku, aos quais tem a incumbência constitucional de defender.
Esta tarde recebi e divulguei um ótimo texto sobre a Convenção 169 e sua aplicabilidade: Convenção 169 da OIT: “Quando a forma determina o conteúdo”, por Joaquim Shiraishi Neto. Sugiro sua leitura. E me permito sugerir igualmente a leitura de dois documentos que podem ser baixados a partir daqui. O primeiro é uma Nota Técnica da Funai, de 7 de novembro de 2013. O segundo, o Memorando 244/2013, redigido com base em dados da Nota e encaminhado pela Presidente interina (até quando, Catilina?) da Funai, Maria Augusta Assirati, ao Ministro da Justiça. Os dois dizem e repetem de formas variadas a mesma coisa que Joaquim Shiraishi Neto e outras pessoas estudiosas e de bom senso afirmam: a Convenção 169 não necessita de regulamentação para ser aplicada. Necessita, sim, de respeito.
Mas os dois documentos vão mais longe que isso. Chamo a atenção, antes de mais nada, para o fato de que a Consulta aos Munduruku é mencionada nas páginas 5 e 6 da Nota Técnica, itens 27 a 29, sendo que nesse último os dois departamentos da Funai responsáveis pelo documento afirmam terem “total interesse em realizar as atividades informativas” sobre os direitos dos indígenas.
Da maior importância é o item “Consulta e Consentimento” (24, na Nota Técnica, e V no Memorando) onde chama-se a atenção para o fato de que há casos para os quais “a própria Convenção 169 da OIT e a jurisprudência internação do sistema ONU e OEA de Direitos Humanos preconizam a exigência, além da consulta, do consentimento, ou aceite indígena”. E eles são mencionados.
Cabe ressaltar, igualmente, a parte relativa ao Congresso Nacional e ao fato de ele também estar obrigado a consultar os povos indígenas (cita-se aqui diretamente a Convenção 169) “sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. A conferir no item IV do Memorando ou nos itens 18 a 22 da Nota Técnica.
Para encerrar, o item VII do Memorando é todo ele sobre Características e Etapas de um Processo de Consultas (também presente no item 30 da Nota). Os 17 slides da Secretaria Geral não parecem se encaixar bem no que preconiza a Funai…
Não preciso dizer que estou preocupada pelos Munduruku. Preocupada e impotente. Sei do valor e da coragem deles. Sei também da seriedade e coragem da Procuradoria da República no Pará. Que juntos eles consigam defender a cultura, as tradições e o direito à vida digna dos Munduruku. E, como parte intrínseca a essa vida, o próprio Tapajós. Fazendo isso, estarão também falando em nome da dignidade de todos nós.
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*Com documentos fornecidos por Marquinho Mota, a quem agradeço. Para baixar os slides, clique AQUI.
Olá, Gabriela,
muito obrigada por avisar. Os textos são pesados para o blog, então eu tinha tentado hospedá-los num host gratuito, mas que pelo visto não funciona. Agora os links já estão apontando de novo para o blog, onde felizmente eu havia mantido os originais. Você pode acessá-los, sendo que o power point baixa automaticamente para o seu micro. Mas não se preocupe quanto a vírus ou algo parecido. Está seguro.
Tania.
Ótimo texto!
O único problema é que não consegui ter acesso aos documentos, com exceção do texto do Shiraishi. Todos remetem a essa página http://xpg.uol.com.br/.
Existe alguma outra forma de acessar esses documentos?
Obrigada!
Valeu Tânia!
Forte abraço.