Entrevista: Samia Barbieri fala sobre seu livro “Biopirataria e povos indígenas” e outras questões

samia jorgeBiopirataria e povos indígenas é o nome do livro que Samia Roges Jordy Barbieri lançou semana passada na sede da OAB, em Brasília. Presidente da Comissão Permanente de Assuntos Indígenas (COPAI) da OAB Mato Grosso do Sul, estado líder em assassinatos e ‘suicídios’ de indígenas, Samia começou a discutir a questão da biopirataria em sua tese de doutorado, defendida em 2011. Para ela, “o pano de fundo dessa questão é o capitalismo que transforma biodiversidade em produto e ainda nos impõe a compra desses  mesmos produtos com pagamento de royalties da nossa própria natureza, saqueada e pilhada”.

Nesta entrevista por e-mail, Samia Roges Jordy Barbieri* fala sobre a necessidade de lutarmos “para que as populações culturalmente diferenciadas como os povos indígenas possam participar do desenvolvimento da sociedade, mantendo sua identidade cultural preservada, como sujeitos de direitos, e não como minorias excluídas”. E conta ainda como foi criada a COPAI e qual a sua ação.

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Combate – Num momento em que o racismo anti-indígena está mais que nunca acirrado, você lança um livro relacionando os saberes dos povos originários e a biopirataria. Isso vai contra todas as defesas da aculturação, que muitos fazem para resolver o que chamam de “questão indígena”. Como nasceu o livro?

Samia – Exatamente por estarmos sempre num momento de racismo e anti-indígena, temos que lembrar da importância da cultura vastíssima e tão importante, que vem sendo saqueada num  país megadiverso, que possui seis biomas como o Brasil.

Nessa obra, que fala de um problema enorme que é o saque dos nossos recursos naturais, descobertos pela observação da natureza pelos povos indígenas, de forma intergeracional , ágrafa e oral, por muitos e longos anos, há a pilhagem de extratos de plantas que são levadas e voltam ao nosso país, vendidos como produtos,  e ainda nos cobram e pagamos “royalties”.

Isso acontece com o cupuaçu, com o açaí, a andiroba, o jambu que é o botox orgânico, o açaí entre tantos outros, inclusive o perfume Chanel nº5 que tem como fixador uma planta nativa chamada pau-rosa.

Entretanto, no que concerne ao conhecimento tradicional e à medicina tradicional associada à biodiversidade não há legislação sui generis que proteja nossos recursos naturais e o conhecimento indígena. Não podemos admitir que esse assunto seja tratado por medida provisória; a lei sobre recursos naturais associados à biodiversidade não regula a matéria até os dias de hoje. Obviamente que vivemos num sistema capitalista, que provoca essa distorção. O domínio econômico das empresas é mais interessante que a dignidade da nossa fauna e flora, e a dignidade dos habitantes originário da nossa “terra  brasilis”. Devemos inverter essa lógica tão perversa a um país tão rico em recursos naturais.

Combate – É conhecida a tentativa dos japoneses de patentear o cupuaçu. Suponho que você cite e/ou discuta isso… 

Samia – Sim, essa prática é muito usual, mais do que sabemos, infelizmente. No caso do açaí, tivemos um grande embate, até que fosse ‘repatriado’ o nosso açaí de volta ao nosso  país, uma vez que houve a patente para a indústria japonesa Asahi Foods. No Estado do Acre houve até passeata com mais de 12 mil participantes, procurando dar visibilidade à sociedade e demonstrar o absurdo de vermos nosso país sendo saqueado e pilhado, em forma de produtos da nossa biodiversidade e do conhecimento tradicional.

O meu livro mostra com profundidade e demonstra que o pano de fundo dessa questão é o capitalismo que transforma biodiversidade em produto e ainda nos impõe a compra desses  mesmos produtos com pagamento de royalties da nossa própria natureza, saqueada e pilhada.

Analiso a CF/88 [Constituição Federal de 1988] e o regime capitalista, os princípios específicos do Direito Indígena, que são a consulta livre, prévia e informada e a repartição de benefícios  por venda de produtos advindos do conhecimento e da medicina tradicional, a diversidade biológica em países megadiversos, o etnodesenvolvimento e a etnossustentabilidade. E, principalmente, a existência de dois mundos completamente  diferentes e polarizados: de um lado o capitalismo que visa o lucro a qualquer preço e, de outro, o patrimônio cultural imaterial dos povos indígenas. Salientando que é preciso lutar para que as populações culturalmente diferenciadas como os povos indígenas possam participar do desenvolvimento da sociedade, mantendo sua identidade cultural preservada, como sujeitos de direitos, e não como minorias excluídas.

Aqui em Mato Grosso do Sul quero sustentar o debate acerca do Direito Indígena longe da questão da luta pela terra, mas numa visão muito maior do universo e da importância dos povos originários, pois aqui se vive o ódio étnico sem precedentes. O meu objetivo é de elevar o debate e buscar uma Cultura de Paz, demonstrando a importância da cultura indígena, que é muito maior e mais vasta do que a da luta incessante e inglória pela terra. Todo medicamento e cosmético que consumimos vem dessa cultura, e somos saqueados, impunemente,  pela prática da biopirataria.

Combate – Cumprir a Constituição de 1988 e a Convenção 169 da OIT seriam passos a serem tomados pelo governo brasileiro para não só respeitar os povos indígenas como, também, reconhecê-los como detentores de saberes e de uma visão de mundo a serem valorizados, como um primeiro passo inclusive para enfrentar a questão da biopirataria como um problema de interesse nacional?

Samia – Com certeza, a questão foi muito bem posta e é isso mesmo: o Estado Nacional ainda não olha a questão indígena como uma questão definida pelo Estado Democrático de Direito e por todas as Leis que o Brasil cria ou ratifica a nível internacional. A prova disso é o descaso com a demarcação de terras no país, o que vem trazendo o aniquilamento da cultura, das tradições e provocado a penúria dos povos indígenas. Esse tema deveria ser tratado de forma jurídica, humanista e tem provocado um verdadeiro Estado de barbárie pela disputa pela terra. A valorização há de começar pela demarcação de terras de um povo que foi formador do Estado Nacional, da nossa cultura, dos nossos saberes e do uso pela observação da natureza através de forma milenar.

Observamos que todos os governos não enfrentam a questão e provocam a dizimação dos habitantes originários e da sua enorme cultura, em tudo que fazemos, quer na utilização de qualquer produto da farmacopeia, quer na utilização da cosmetologia. A biopirataria é mais ampla e envolve recursos naturais, a natureza, a fauna, a flora advindas da observação da natureza pelos povos indígenas. Negar isso é negar a importância do Brasil como país megadiverso, é negar todos os nossos recursos naturais, promovendo a pilhagem da biodiversidade em produto. É a nova recolonização, transformar biodiversidade em produto e a apropriação indevida dos saberes e medicina tradicionais. E  mais, pagando royalties por essa expropriação.

Combate – Você vive no estado que há anos lidera as estatísticas nacionais de assassinatos e suicídios, no que diz respeito aos indígenas. Mato Grosso do Sul está presente no seu livro? 

Samia – Trato do tema Direito Indígena de forma ampla, como povos, não apenas elencando a realidade local, mas o pano de fundo de tudo, que é o que vivemos, como vivemos e sentimos. Hoje tenho como missão a divulgação dessa causa, como mulher, como mãe, como cidadã, como procuradora municipal, como Presidente da Comissão Permanente de Assuntos Indígenas, como Conselheira Federal da OAB e também como Conselheira do CONANDA, sabendo que essa causa  é local e também internacional, como observamos em todas as falas de todos os povos do mundo na ONU.

De forma direta ou indireta, sempre vou falar do que vivemos e buscar uma Cultura de Paz para MS. Falo de vários temas, incluindo os nossos dramas, que são o drama de todas as populações indígenas do mundo. Nessa obra, a abordagem é mais ampla, do direito indígena e conhecimento tradicional associado à biodiversidade, não apenas a questão de luta pela terra, que mostra apenas o conflito, quero mostrar o universo do Direito Indígena, e as consequências reais até para a nossa soberania nacional como país megadiverso, possuidor de seis biomas e que até hoje não possui legislação sui generis que trate dos recursos naturais associados à biodiversidade, como um tema de interesse nacional, que permite a pilhagem do nosso conhecimento, impunemente através da biopirataria.

Combate – Você criou e preside um núcleo único, até onde sei, na história da OAB: a Comissão Permanente de Assuntos Indígenas, COPAI. Saindo um pouco do tema do livro, propriamente dito, gostaria que falasse um pouco sobre. Como foi criada e o que faz a COPAI?

Samia – A Comissão Permanente de Assuntos Indigenas da OAB/MS, inicialmente criada como Comissão Especial e presidida pelo Dr. Wilson Matos, indígena Guarani Kaiowá e advogado, é fruto de uma morte anunciada de uma liderança, que pediu proteção e, mesmo assim, foi morta como tantas lideranças, na busca do reconhecimento e de seu direito à demarcação de suas terras, em pleno século 21. Quando assumi, no ano de 2010, quis fazer um grande debate que ouvisse os movimentos sociais, os advogados dessa causa e advogados que tivessem trabalhos voltados à causa. Por isso, convidei todos os participantes da então CEAI, que estão conosco até hoje.

A nossa primeira luta como Presidente foi requerer que a então CEAI, Comissão Especial fosse considerada como uma Comissão de caráter Permanente na OAB/MS, em função da importância do Direito Indígena para o Estado de MS, como segundo estado da federação com a maior população indígena e com graves problemas fundiários. Essa luta durou dois anos, até que em fevereiro de 2011, foi declarada Comissão Permanente de Assuntos Indígenas, à unanimidade, pelo Conselho Seccional da OAB/MS.

Nossa atuação é de observadores da causa, cujo protagonismo é dos povos indígenas. Promovemos um profundo debate com a sociedade, e estamos na nossa V Semana do Índio na OAB, tentando fazer um diálogo com o meio acadêmico, sociedade e advogados. É a primeira Comissão Permanente a tratar da questão indígena no sistema OAB, o que nos dá uma responsabilidade muito grande. A nossa formação é muito interessante, daí vem a riqueza da COPAI, pois são advogados advindos dos movimentos sociais, são advogados da União, Defensores, Procuradores, Colaboradores. Temos a honra de termos dois advogados e representantes dos povos indígenas: um da etnia Kadiwéu, Dr Marcus Ruiz, e um da etnia Guató, Dr Wilson Capistrano, o que nos dá a perfeita dimensão dessa causa. Essa composição nos permite o diálogo franco e análise profunda da nossa realidade.

Hoje, entendemos que nossa missão advém da educação e estudo do Direito Indígena, nas escolas, universidade ou comunidades indígenas. Mas atuamos na defesa da causa indígena, respaldados na CF/88, na Convenção da OIT, na Declaração Universal de Direitos dos Povos Indígenas declarada pela ONU em 13 de setembro de 2009, entendendo a importância de todos os agentes  de proteção e atuando em conjunto.

Temos uma Cartilha da COPAI, que ensina os princípios do Direito Indígena, disponível no site da OAB/MS na Biblioteca Virtual, que dá subsídios a várias escolas e estudiosos do tema, no MS e em outros Estados da Federação.

*Samia é Conselheira Federal da OAB e autora também do livro Os Direitos Constitucionais dos Índios e o Direito à Diferença, Face ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

 

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