Notificações extrajudiciais e liberdade de expressão, informação e comunicação: não se apaga a História

Livro censurado pela Inquisição. Foto: Daniel Rocha
Livro censurado pela Inquisição. Foto: Daniel Rocha

Tania PachecoCombate Racismo Ambiental

No dia 10 de setembro de 2010, quando este blog de certa forma ainda engatinhava, republiquei uma notícia que o Ministério Público Federal no Acre havia postado quatro dias antes. Tratava-se de denúncia feita pelo Procurador da República Paulo Henrique Ferreira Brito, envolvendo trabalho escravo. Na noite desta sexta-feira, 22 de agosto, recebi como comentário a ela uma Notificação Extrajudicial de que deveria, no prazo máximo de três dias, retirar do blog e de seu banco de dados todas as notícias que vinculassem “o nome e imagem do NOTIFICANTE a ‘trabalho escravo’, a fim de não causar ao NOTIFICANTE maiores prejuízos em sua vida profissional e pessoal”. E ainda:

b. o não cumprimento tempestivo por V.Sas. do disposto na alínea “a” supra, ensejará por parte do NOTIFICANTE a adoção das medidas judiciais cabíveis para a retirada das referidas informações de seu website e do banco de dados, inclusive o pleito de indenização por dano material, moral e à imagem, sem prejuízo do direito de resposta, conforme assegurado pela Constituição Federal.

Antes desse final, fui informada de que estava “induzindo erroneamente o internauta a crer que o NOTIFICANTE teria relação com trabalho escravo, o que não se pode admitir, especialmente em razão do trânsito em julgado da sentença ora apresentada, que INOCENTOU o NOTIFICANTE”. Um parêntese: a Notificação informava a existência de documentos anexos, que evidentemente não podiam ser postados num comentário, dentre os quais, suponho, a sentença mencionada. Fecho o parêntese. Também eram citadas a Constituição Federal, em seu art. 5º, incisos V e X (relacionados) e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sobre “Retirada de Página da Rede Mundial de Computadores”, por “Conteúdo Ofensivo à Honra e à Imagem”. 

Nos quatro anos e meio de existência do Combate Racismo Ambiental, já recebi uma carta de advogado solicitando Direito de Resposta, uma meia dúzia de ofensas (todas racistas e/ou misóginas) e algumas ameaças. As duas últimas foram simplesmente deletadas, porque esse tipo de gente não tem coragem de assinar seu verdadeiro nome e de indicar seu verdadeiro e-mail, e o blog exige isso para publicar o comentário. O Direito de Resposta foi tranquilamente exercido, inclusive com uma observação minha de que não teria sido necessária a intervenção de um escritório de advocacia para tal.

Esta Notificação Extrajudicial, entretanto, é algo novo. Inclusive porque, em lugar de buscar exercer o direito de contradizer ou desmentir o publicado, a intenção clara não é só de cercear o direito à publicização da informação, mas sim de apagar todos os vestígios de uma informação inquestionável, reprodução de notícia publicada em página de Órgão Público: a Procuradoria da República no Acre. Ora, no que toca a qualquer processo público, não é por acaso que as sentenças e demais decisões são ‘publicadas’ em diários de justiça acessíveis a todos, mas para que qualquer um tenha acesso a elas: “O público é o detentor da soberania e destinatário final das atividades da República, dentre as quais as do Judiciário”.

O pedido de retirada da informação não é descabido apenas por esse motivo, entretanto. A mesma Constituição de 1988 citada na Notificação Extra-Judicial garante a liberdade de expressão, informação e comunicação, desde que exercida sem ilicitudes. Não me parece que reproduzir noticia do MPF, repito, disponível na internet exatamente para ser de conhecimento público, possa ser classificada como uma “ilicitude”. Penso que o citado art. 5º, agora no seu inciso IX, e os artigos 23, II, do Código Penal e 188, I, do Código Civil respaldam o exercício regular desse direito.

Em 2012, a vice-presidente da Comissão Europeia, Viviane Reding, afirmou, com relação aos debates que eram travados na ocasião sobre o Direito ao Esquecimento: “É claro que o direito a ser esquecido não se pode sobrepor ao direito e apagar a história. E nem o direito a ser esquecido pode prevalecer sobre a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa”. 

Nesse sentido, podemos recorrer a um exemplo presente na mídia nos últimos dias. Como é de conhecimento público e, inclusive, parte já da nossa História, o ex-presidente Fernando Collor sofreu um processo de impeachment que o fez renunciar à Presidência, em 1992. Manifestações e protestos de milhões de brasileiros nas ruas, incluindo os ‘caras-pintadas’, levaram o Senado da época a ratificar a decisão da Câmara e cassá-lo por oito anos. Paralelamente, ele foi denunciado à Justiça por corrupção e outras coisas que não recordo e não é o caso de procurar.

Em abril deste ano, 2014,  o Supremo Tribunal Federal considerou-o inocente das denúncias de peculato, falsidade ideológica e corrupção passiva, por falta de provas. Isso permitiu que há exatos cinco dias, 20 de agosto, Collor usasse seu primeiro programa na tevê como candidato à reeleição ao Senado por Alagoas para dizer que foi vítima de um “golpe parlamentar”, e que “os movimento das ruas foram todos orquestrados”. Não acho, entretanto, que ele vá ‘notificar’ jornais, rádios, revistas e tevês da grande mídia para que ‘deletem’ todas as denúncias contra ele feitas. No que diz respeito a blogs e saites que não têm atrás de si o respaldo do capital, isso seria de qualquer forma impossível por um motivo simples: eles não existiam, em 1992.

Neste nosso caso específico, cabe aos Procuradores da República oferecer denúncias; cabe ao Judiciário (do qual eles não fazem parte) decidir se elas procedem e prescrever as medidas cabíveis. Até onde sei, se a denúncia é julgada improcedente, o MPF não sai apagando todos os vestígios da questão. Primeiro, porque o fato de ter havido uma denúncia e de ela ter sido ‘recebida’ pela Justiça são e serão para sempre dados reais, mesmo que tenha havido uma absolvição. Segundo porque, dependendo da situação, o Ministério pode inclusive recorrer da decisão e prosseguir com a ação.

Tudo isso diz respeito à liberdade de expressão propriamente dita. Ao direito que temos, blogueiros, jornalistas, colunistas e outras pessoas mais que buscamos socializar de forma séria e responsável a informação, de fazê-lo sem sofrer qualquer tipo de cerceamento ou tentativa de intimidação. Mesmo que eventualmente o ‘público’ opte por ignorá-la e vote em candidatos cassados, ruralistas, anti-indígenas, racistas, misóginos etc.

Voltando ao artigo 5º da Constituição de 1988, é ele que nos diz, no inciso III, que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Contraditoriamente, apesar de saber que absolutamente nada me obriga a isso, vou retirar em seguida a matéria em questão. Vou fazê-lo ciente de que ela continua presente na sua origem: no saite do MPF no Acre, republicanamente publicizada desde o dia 6 de setembro de 2010.

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