*Lena Azevedo, em Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta
A morte é também cultural. No Pelourinho, dos espaços culturais frequentados por negras e negros da periferia resta muito pouco. O primeiro a sucumbir à perseguição das instituições municipais foi o Beco de Gal, em 2006. No ano passado, dois bares com tradição de eventos focados na negritude, o Sankofa African Bar e o Bar do Fua (nome oficial é Galícia), tiveram, em 9 de agosto de 2013, suas aparelhagens de som apreendidas pela Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo (Sucom), com apoio da Polícia Militar. As ações geraram uma manifestação nas redes sociais, por meio da campanha “Reação Sankofa: Contra a Criminalização dos Espaços Negros de Cultura” e um manifesto de artistas, produtores e frequentadores, feito a partir de uma audiência do Conselho Estadual de Cultura. Apesar do protesto, o Sankofa African fechou as portas. Um dos últimos pontos de resistência, o Bar do Fua, tem sofrido investidas constantes da PM e só não fechou de vez por conta da resistência da dona do local,Tatiane Dórea.
“Sou nascida e criada no Pelourinho, meu pai tem uma história muito grande aqui, de muita luta para manter hoje o Bar Galícia (Fua) vivo, uma história que hoje está sendo perseguida pela Polícia Militar. No ano passado, a PM invadiu meu bar junto com a Sucom, levou meu som. Teve muita agressão, um bocado de celular levado dos clientes pela PM (as pessoas que gravavam a violência policial tiveram os aparelhos levados e não devolvidos pela polícia). A gente foi pra delegacia, porque teve uma menina e um rapaz agredidos e presos. Fomos ao Ministério Público e à Corregedoria da PM, mas a gente sabe que a Corregedoria não resolve nada, mas o MP pode fazer algo pela gente. Por causa desse assunto do ano passado, estou sendo perseguida pelo 18º Batalhão da PM até hoje”, denuncia.
Segundo Tatiane, ela está tendo dificuldades para manter o bar e suas atrações culturais, sempre às terças, sextas e sábados. A perseguição hoje não é mais da Sucom, mas de militares. “Eu sou uma pessoa que trabalho numa luta muito grande para manter isso aqui vivo, manter a história da Bahia viva. Isso aqui é pagode de negro e por isso que está existindo o preconceito, o racismo por parte da PM, que mata, violenta e discrimina, em vez de cuidar do seu papel”.
Ela afirma que o “Pelourinho está falido, abandonado pelos órgãos públicos. A PM nunca está na hora que deve. Só aparece para fechar nosso bar. Pelourinho hoje tem muito roubo, sequestro, mortes e isso não chega à mídia. Só quem sabe é quem mora aqui”, diz.
O Bar do Fua existe há 68 anos e sempre foi referência de negros, sobretudo da periferia, que frequentam o centro histórico. Apesar de ser o ponto turístico mais famoso de Salvador, as atrações culturais do Pelourinho não têm qualquer incentivo municipal, são mantidas pelos ambulantes e donos de bares e restaurantes. No Terreiro de Jesus, eles se cotizam para pagar cachês de artistas e o equipamento de som.
“Não tem atração no Pelourinho, não tem nada que atraia. A gente faz um samba, há 19 anos principalmente para o pessoal da terra. Estamos sendo perseguidos pela polícia, que não quer mais que o samba aconteça por que é coisa de negro. Se fosse um espaço de gente branca, eles não fariam isso”, reclama.
E Tatiane Dórea tem razão. A proibição da PM aos eventos em seu bar não foi aplicada a um restaurante para turistas, que fica na mesma rua, a menos de 100 metros do estabelecimento. Pleno sábado à noite, 24 de maio, havia música ao vivo e policiais que tinham acabado de pressionar a dona do Bar do Fua não chegaram nem perto do outro local.
“Meu pai hoje, com 80 anos, se encontra com muitos problemas de saúde, com mal de Parkinson, arritmia cardíaca e glaucoma. E mesmo com tudo isso ele me diz que se tivesse saúde ia enfrentar a polícia. Eu sou a filha caçula e toco o bar. A gente depende do estabelecimento para sobreviver. Nosso faturamento hoje é muito precário por conta dessa situação”, relata.
A morte é também cultural. Salvador, cidade túmulo.
*Lena Azevedo é jornalista e escreve para Apublica, é colaboradora da Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto e da Quilombo Xis Ação Cultural Comunitária.