Trazemos esta semana depoimentos de Nilce Azevedo Cardoso contando trazendo relatos de sua vida, sua juventude, sua história de militância política, uma história de perseguição do regime militar, de dor, de tortura, mas de também de resistência,superação e vitória!
O depoimento de Nilce seja de forma escrita quanto seu depoimento gravado em vídeo são impactantes. Os relatos nos trazem um pouco da ideia do que foi a perseguição a ditadura, a resistência e da repressão.
No vídeo abaixo Nilce dá seu depoimento no primeiro encontro da comissão estadual da verdade do Rio Grande do Sul, em uma audiência pública que aconteceu dia 08 de março de 2013. [A seguir seu depoimento escrito para o livro “Relatório Azul”, de 1997.]
Sim, meu pai, também posso dizer “Nossa luta não foi em vão”
Por Nilce Azevedo Cardoso
Meu pai me perguntou se tinha valido a pena tanta dor. Na época, eu só respondi que sabia com o que eu estava comprometida e quais seriam as conseqüências. Agora, propondo-me a escrever sobre as torturas que me foram impostas, essa pergunta aparece novamente. Passados trinta anos, o sentimento que me assalta é de esperança e, ao mesmo tempo, de horror.
Esperança de que o que fizemos continue a dar frutos, porque, apesar de tudo o que nos aconteceu, fizemos a história avançar, porém nenhum torturador e, principalmente, seus mandantes foram julgados ou condenados. Acreditávamos e continuo acreditando na necessidade de construirmos um mundo sem exploradores e explorados, onde o ser humano pudesse e possa viver como ser humano, numa sociedade solidária e cidadã, uma sociedade socialista.
Outro sentimento que me assalta é de horror. Porque temos que falar disso que nos machucou tanto? Lembro-me de Gorky quando foi perguntado para falar dos horrores que passou na infância. Ele teria dito algo como enquanto toda humanidade não souber do que se passa, a história se repete. Assim, proponho-me a falar um pouco do que se passou.
Nascida no interior de São Paulo, na cidade de Orlândia, morei durante minha adolescência em Ribeirão Preto. Fui para a capital fazer faculdade de Física . Entrei na Universidade de São Paulo em 1964, em pleno golpe. Desde meu ingresso, pude saber que minha vida jamais seria a mesma. Comprometida com o Movimento de Educação de Base, admiradora de Paulo Freire, entrei na JUC (Juventude Universitária Católica),tendo feito parte da Direção Nacional. Participei dos movimentos políticos durante a faculdade, tendo conhecido a violência do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) nos embates na Maria Antônia- a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo ficava na rua Maria Antônia, em frente a Faculdade Makenzie. Também participei da resistência que fizemos em defesa do CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo), onde morei durante meu curso na faculdade.
Esses foram anos de uma vivência política muito rica e educativa. Terminei a faculdade, tendo entrado, em 1967, para a então AP (Ação Popular), depois Ação Popular Marxista Leninista porque queria seguir em frente com minhas convicções políticas. Comprometia-me cada vez mais com a melhoria de vida do povo brasileiro e assim identificava-me ideologicamente com as classes populares.
O ano de 1968 foi um marco para mim como o foi para todos aqueles que militavam nessa época. Decidi-me conhecer de perto a vida e a luta da classe operária. Casei-me e fomos morar no ABC. Fui trabalhar, como operária, na Rhódia, fábrica de linhas em Santo André.
Seguindo o caminho de uma vida clandestina vim para Porto Alegre, em 1969, tendo ido trabalhar na fábrica Renner também como operária. Por motivo de segurança resolvi retomar o magistério como nos anos de faculdade, quando lecionava Física. Aqui em Porto Alegre, eu lecionava matemática quando caí presa.
Em 11 de abril de 1972, fui seqüestrada numa parada de ônibus, jogada no banco traseiro de um carro e, aos bofetões, levaram-me para a escuridão das dependências do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) onde fui imediatamente encapuzada. Por ter participado da seção de Serviços (mensageira entre os comandos nacional e regionais) e por ter sido membro do Comando Regional da AP, em Porto Alegre, eu já sabia o que me esperava. Entretanto, nenhum conhecimento teórico pôde antecipar o horror das torturas. Ainda encapuzada conduziram-me para uma sala, onde as primeiras palavras que ouvi foram “Tira a roupa.”.
O delegado Pedro Seelig, chamado por Cacique, junto com Nilo Hervelha e outros, de que ainda não me lembro os nomes, arrancaram minhas roupas, com palavras de depreciação na tentativa clara de baixar minha auto-estima. Perguntaram meu nome e eu disse Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todo os lados. Insistiam na pergunta, com socos na boca do estômago e no tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram os fios e vieram os choques . Fiquei muda daí para frente.
Quando paravam os choques, vinham as perguntas. Mas, meu silêncio continuava. Eu só pensava que ali estava terminando minha vida, porque achava que estava morrendo. Com o tórax soqueado, sentindo o sangue na boca, percebi que se movimentavam. Fui colocada no pau de arara.
Conheci o terror da dor física violenta, quase insuportável, e a dor de alma diante daquele horror que eu jamais imaginara que pudesse existir, embora já tivesse lido sobre relatos de torturas. Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criavam-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que não conseguia gritar, o que veio a me causar muitos danos psíquicos posteriores. Pendurada de cabeça para baixo no pau de arara, a lucidez continuava total. Lembrava-me a todo momento que estava ali em conseqüência de meu compromisso político e, naquele momento, para mim era o fim. Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiravam dali e me entregavam para policias femininas que me obrigavam a me mexer. Eu perdi os movimentos das pernas e dos braços e não conseguia articulá-los. Então elas me arrastavam. Quando achavam que já estava melhor, eles me penduravam novamente. O sangue jorrava e eles enfiavam a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molhavam meu corpo e me arrebentavam com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não tivessem cometendo aquelas atrocidades.
Para poder escrever o que estou escrevendo tive que ser atendida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, por um psiquiatra logo na saída da prisão. Fui atendida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Seguiram-se muitos anos de psicoterapia, principalmente um trabalho de psicopedagogia com a psicopedagoga Alicia Fernández onde iniciei o processo de recuperação da memória. Há quase dez anos entrei em análise, com a psicanalista Miriam Möller, não só para sair de uma amnésia, como para recuperar minha identidade e poder conviver com esse horror todo.
Lembro-me que os gritos dos torturadores foram se tornando cada vez mais fracos e quando me dei conta, estavam me fazendo massagem no coração, possivelmente após uma parada cardíaca. Ali acabaram de quebrar o seio, osso do tórax, como mais tarde vim a saber, após ser tirada radiografia no hospital. Passaram uma luz intensa nos meus olhos, usaram amoníaco para reanimar-me e eu ouvi “Não reage”. Eu já tinha sido examinada pelo médico que indicava quando podiam continuar a tortura. Mas, dessa vez, não foi possível porque entrei em coma.
Fui levada para o Hospital Militar e fiquei em coma oito dias. Depois disso, fui levada para o DOPS novamente. Muito mais magra e uma chaga só, fui colocada no meio de uma roda de companheiros. Senti uma dor violenta. Como estavam ali ? E tantos. Os torturadores me mostravam cada um deles e me perguntavam se eu os conhecia. Eu nada respondia. Passei por todos e não tendo dito que os reconhecia voltei para a sala de torturas. A pancadaria recomeçou, Depois de um tempo percebi que Hervelha não me perguntava nada. Pedi para falar com um de meus companheiros e soube que muita coisa tinha sido dita. Ameaçaram levar-me para o Guaíba (eu conhecia o caso das mãos amarradas…) e, analisando a melhor saída, naquele eu disse “Meu nome é Regina”. E fiz um surto . Completamente descontrolada chorei muitas horas compulsivamente, sentindo-me morta. Eu tinha a convicção de morrer e não dizer nada. A tortura não atinge somente o corpo, mas também a alma e a mente humana. Deram-me algo de remédio e fui me acalmando. Não sei quanto tempo isso durou. Escrevi o relatório com alguns dados. Quando notavam incoerências, buscavam-me novamente para interrogatórios, sempre acompanhados de ameaças de tortura. Assim foi até julho.
Lembro-me que me deram muitos remédios. Eu tinha ficado com muitos problemas. O osso do tórax já estava cicatrizado, embora frágil ainda. Estava com infecção no útero e fui levada numa clínica. Mas havia remédios em demasia. Remédios que me dopavam. Insisto nisso, porque preciso saber mais sobre os efeitos disso.
Assim fui levada para OBAN (no DOI-Codi ) em São Paulo. Lá tiraram-me toda a medicação. Hoje, sei os efeitos disso. Alucinei. Para mim, torturas na OBAN não puderam ser de porradas, porque minha saúde estava frágil. A “equipe de inteligência” deve ter sugerido torturas psicológicas, com a máquina da verdade, pressões de muitas maneiras, já descritas. De uma delas, eu lembro-me agora. Havia uma equipe comandada por Mangabeira, um sujeito muito supersticioso. Ele me levou para “falar com o Diabo”, num ambiente enfumaçado. Hoje, até chego a achar graça, mas, no estado em que estava, era terrificante, porque eu não sabia como viria o golpe. Mas, eu disse que o Diabo que me aparecia não era como o que ele me descrevia e nunca mais fui interrogada por ele.
Posso me lembrar da indescritível tensão que passamos cada vez que chegavam e diziam nosso nome. Daí para frente, o que tentaram fazer foi me desmoralizar como mulher, questionar meus valores, minha inteligência e tudo fizeram para que eu não soubesse distinguir entre realidade e alucinação.
Voltei estranha para o DOPS de Porto Alegre, onde fiquei até chegar meu alvará de soltura, em 20 de julho de 1972. Os gritos dos presos comuns eram contínuos e minha cela ficava bem em cima da sala de torturas . Sentia-me à beira da loucura. Contei com a ajuda de companheiros que estavam presos na cela da frente, principalmente de Diógenes Sobrosa de Souza e de outro que vim a saber agora, que era Djalma de Oliveira. Contei também a forte, amorosa e sensível presença de minha mãe Zilda que, apesar de não saber de minha vida clandestina, apesar de ter sido vítima de terrorismos em sua casa, trouxe o apoio de meus irmãos e esteve sempre presente a meu lado. A pedido de minha mãe fiquei morando com Gilda Souza da Luz, contando com seu apoio até hoje.
Quando estava na OBAN (no DOI-Codi em São Paulo), já pude notar que algo estava acontecendo com minha memória. Logo ao chegar não consegui ligar para minha família, porque não me lembrava dos nomes e telefones. Aos poucos, fui notando um certo apagamento. Já não me lembrava de muita coisa. Quando me dei conta, eu tinha sido tomada por uma amnésia da qual só me recuperei com muita terapia e análise que faço até hoje. Contei com a ajuda fundamental de minha nova família Antônio Norival Soave, com quem me casei após sairmos da prisão. Depois contei com meus filhos, Semíramis e Paulo que têm conseguido conviver comigo, aceitando-me e ajudando-me com amor. Outro sim contei e conto com verdadeiros amigos. Eles sabem compreender-me e aceitar-me.
Quando recebi o alvará de soltura, fiquei sabendo que teria que fazer um documento dizendo que tinha sido bem tratada. Como me recusei voltei para a cela. O delegado me chamou e me pediu que eu escrevesse que tinha entrado com a fratura no tórax, como constava na radiografia. Naturalmente, não aceitei escrever isso. Lembro-me de ter escrito que recebi o atendimento dado aos presos políticos.
Sim, meu pai, continuo achando que valeu a pena. Hoje, felizmente continuo viva e, tendo feito o luto dos companheiros que foram assassinados, sigo em busca de meus sonhos, firme na luta, sabendo que estamos lutando por um causa justa. Um dia a humanidade vai viver numa sociedade em que os homens serão aceitos na sua desigualdade. Haverá paz e justiça social para todos e não haverá nunca mais torturados nem torturadores.
Textos publicados no livro “Relatório Azul”, 1997, da Comissão.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
Nilce Azevedo é um de muitos exemplos de mulheres com postura de resistência frente aos desmandos da ditadura. Para conhecer novas histórias como essas acesse o sítio: http://resistenciaemarquivo.wordpress.com. Parabéns ao Racismo Ambiental pela abordagem da temática.