Rafael Custódio, da Conectas: ‘A quem interessa que as pessoas tenham medo de protestar?’

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Paulo Emanuel Lopes – Adital

Rafael Custódio é advogado especialista em Direito Penal. Há dois anos e meio, atua como coordenador do Programa de Justiça da Conectas, lidando com problemas relacionados à justiça criminal e ao sistema prisional. Participa ainda do Conselho da Comunidade de São Paulo, órgão que auxilia na execução penal, composto pela sociedade civil, com o objetivo de entrar nos presídios, fazer relatórios de inspeção, denúncias, entre outras coisas.

Nesta entrevista concedida à Adital, Custódio avalia o quadro de repressão às manifestações no Brasil, uma tentativa de intimidar os movimentos reivindicatórios. Contesta a cobertura dada pela chamada “grande mídia” às manifestações de rua, e apresenta um resumo das principais iniciativas legislativas que pretendem desestimular a prática democrática dos protestos no Brasil.

“Se a gente pensar, por exemplo, nos sindicatos, nos anos 1980, ou no movimento pela reforma agrária, nos anos 1990 e 2000, ou mesmo outros movimentos, como os estudantes, tradicionalmente, o poder público brasileiro vem lidando [com as manifestações reivindicatórias] de um jeito só, com a justiça, a repressão criminal.”

Adital: Fale-nos um pouco sobre as prisões de manifestantes que assistimos nessas últimas semanas… Como se deu esse quadro repressivo?

Rafael Custódio: Antes de tudo, precisamos voltar no tempo para conseguirmos contextualizar o que vem acontecendo no Rio de Janeiro. Assim, é fácil concluir que já há no Brasil um processo histórico de criminalização dos movimentos sociais, de movimentos reivindicatórios. Se a gente pensar, por exemplo, nos sindicatos nos anos 1980, ou no movimento pela reforma agrária, nos anos 1990 e 2000, ou mesmo outros movimentos, como os estudantes, tradicionalmente, o poder público brasileiro vem lidando de um jeito só, com a justiça, a repressão criminal. Agora, é claro que, com aquelas imensas manifestações de 2013, que foi algo fora do padrão, não que não houvesse manifestação antes no Brasil, mas nunca com tanta proporção, tanta gente na rua ao mesmo tempo em várias partes do País… Ali, eu entendo que, num primeiro o momento, o Estado ficou um pouco acuado, sem entender direito o que estava acontecendo, quem eram essas pessoas que estavam na rua. E as polícias mostraram que não sabiam lidar com isso, são completamente despreparadas para lidarem com o direito à manifestação. Depois desse primeiro momento, há uma resposta muito forte do poder público em várias esferas, no sentido de reprimir esses movimentos. No Legislativo, por exemplo, nós temos projetos de lei que estavam no Congresso há muito tempo e começaram a andar muito rápido, outros que foram apresentados agora, como o que tipifica o crime de vandalismo, que não existia no Brasil ainda. Aqui em São Paulo, a Assembleia aprovou aquele PL sobre o uso de máscaras. No Rio de Janeiro, também aprovaram um projeto proibindo o uso de máscaras em manifestações… O município de Porto Alegre [Estado do Rio Grande do Sul] também tem essa proibição no contexto das manifestações. Assim, é o Legislativo agindo como pode, criando leis para criminalizar. O Judiciário, tradicionalmente um poder distante da população, pouco sensível às questões sociais, reage como sabe fazer: quando chega a demanda, manda prender, manda busca e apreensão, quebra sigilo telefônico de advogados, o que aconteceu no Rio de Janeiro, que é gravíssimo… E o Executivo, através de suas polícias, indo pras ruas e prendendo, batendo nas pessoas, usando de violência desproporcional… Todo esse cenário contextualiza o que está acontecendo no Rio de Janeiro, que é também um caso especial, você tem aquelas obras da Copa do Mundo, das Olimpíadas, uma discussão muito forte sobre o uso do território, a questão das UPPs e a militarização do espaço, acirrando a disputa entre os movimentos sociais e os governos do Rio de Janeiro.

Pelo que soubemos [em relação às prisões no Rio], parece um pouco peça de ficção, porque você tem advogados que estão sendo investigados por serem advogados de manifestantes. Um dos diretores do IDDH [Instituto de Defensores de Direitos Humanos] teve o sigilo telefônico quebrado. Uma das advogadas lá está com mandado de prisão, aquela que teve que pedir asilo no consulado, a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] já reagiu… Isso por si só já é muito grave, você ver o poder público confundindo papéis. Agora, se eles estão fazendo isso com advogado, que exerce um trabalho, imagina o que eles fazem com quem não é. Mas não é só isso, você tem uma investigação feita aparentemente em sigilo, as pessoas não sabiam que estavam sendo investigadas – o que já é um problema, você viola o princípio da ampla defesa -, é um processo montado para atingir um determinado fim, ou seja, não é que a investigação leve a esse resultado, mas, muitas vezes, ele foi montado para chegar a esse denominador comum. Agora, temos informação que são duas testemunhas que brigaram com a organização dos movimentos, que tiveram problemas pessoais com alguns manifestantes, inclusive de relação amorosa, elas teriam motivos para serem ouvidas, no mínimo, com ressalvas… O Tribunal de Justiça soltou, através de habeas corpus, mas a coisa é muito mais grave que a prisão em si, é um cenário muito ruim para um país em desenvolvimento, para um país que ainda tem muito o que fazer para sua população, e os movimentos sociais possuem um papel super importante nesse processo, fazem com que a democracia de torne muito mais dinâmica. E a resposta que você tem do Estado é totalmente repressora, digna de sistemas autoritários.

Aqui em São Paulo, a gente tem um processo que as pessoas chamam de “processo Black bloc”, que investiga vários movimentos, que não tivemos prisão, mas também um inquérito absurdo. E a gente tem relatos: Porto Alegre, Fortaleza [Estado do Ceará], Belo Horizonte [Minas Gerais]… Talvez, nossas instituições públicas não estejam maduras o suficiente para lidarem com esse tipo de coisa. O problema é elas se fecharem ainda mais, adotarem uma ideologia que não é o que a gente espera em um Estado de Direito.

Adital: Você acha que há “interesses difusos” por trás desses inquéritos?

Rafael Custódio: Acho que sim. Em São Paulo, por exemplo, a gente percebeu nos últimos meses, principalmente na véspera da Copa do Mundo, uma articulação política entre Executivo estadual, Legislativo, Judiciário e governo federal também. Aparentemente, havia um acordo entre essas instâncias de que alguma coisa precisaria ser feita… É perigoso o que está acontecendo, é perigoso as pessoas estarem indo para as ruas, temos um grande evento, a imprensa internacional vai estar aí… Em pouco espaço de tempo, esses poderes fizeram ações com esse denominador comum: repressão, e sempre avalizados por autoridades do governo federal, principalmente o ministro da Justiça, o que é estranho essa sintonia entre esses diferentes atores. No Rio, isso foi nítido agora, quando teve a primeira prisão temporária, que saiu 6h, 7h da noite, deu uns 40 minutos o ministro da Justiça já estava declarando que as prisões eram legais, o que é muito preocupante. Se eu estou politizando a polícia, o Judiciário, você viola esse equilíbrio dos poderes, e a sociedade civil se vê muito sozinha.

Em São Paulo você vê isso, as manifestações com um número muito menor de pessoas, e existe um senso que as pessoas estão com um pouco de medo de irem às ruas. Têm medo de tomar bala de borracha na cara, perder um olho, ser preso do nada… Se você ver alguém sofrendo violência você vai querer intervir? De repente, você aparece em um inquérito policial porque participou de uma manifestação… Isso é algo maior que o concreto, essa sinalização pras pessoas que é melhor ficar em casa. A quem interessa que as pessoas tenham medo de protestar?

Em junho do ano passado, houve uma coisa interessante, as pessoas entenderam que ir para as ruas faz parte do exercício da cidadania, que participar de uma democracia não é só votar de quatro em quatro anos. Agora, aqui em São Paulo, existe essa sensação um pouco contrária, que é perigoso ir. As pessoas vão, mas ficam no telefone: “olha, cuidado, tá tudo bem? A polícia…”, e a gente acaba naturalizando isso, o que é muito ruim. Medo da polícia? A gente não pode ter medo da polícia! E olhe que estamos falando de manifestações na Avenida Paulista, em plena luz do dia, um estrato social meio privilegiado… Se a gente assiste a tudo isso com esse grupo de pessoas passamos a imaginar como é que é na periferia, durante a madrugada, um grupo de pessoas que, se acontece algo, não tem como denunciar, não sabe como se pronunciar adequadamente. Não parece ser à toa que os índices de letalidade pela polícia são tão altos no Brasil.

Adital: Custódio, em relação a esses PLs [Projetos de Lei] que vimos, vocês pretendem ingressar com algum pedido de inconstitucionalidade?

Rafael Custódio: A gente [Conectas] atua muito mais junto ao Congresso Nacional, um projeto de acompanhamento e monitoramento de PLs… Nós fizemos uma intervenção muito forte nesse que cria o crime de vandalismo. Originalmente, era um PL que criava o crime de terrorismo, tem essa discussão que o Brasil precisaria tipificar essa conduta, mas tivemos uma mudança. O senador Pedro Taques (PDT-Mato Grosso) viu que ali havia falta de debate, então, ele propôs esquecer o terrorismo e criar o “vandalismo”. Nós da Conectas fizemos um parecer técnico com outras entidades de direitos humanos e levamos à Brasília, apresentamos à CCJ [Comissão de Constituição e Justiça], e conseguimos, pelo menos até agora, dar uma ‘melada’ na discussão. Eles perceberam que não é uma unanimidade, se sentiram um pouco pressionados, e o PL não avançou. Nosso argumento é que todas as condutas possíveis que uma pessoa pode fazer, hoje, elas já estão tipificadas no Código Penal. O problema não é falta de leis! Atualmente, esse é o PL que mais preocupa em Brasília.

Adital: Até pela dificuldade de se definir o que é vandalismo…

Rafael Custódio: Esse é um outro ponto, porque é um conceito um pouco subjetivo, não bem definido. Eles tentam importar o conceito de outros países. Outra questão é a proporcionalidade das penas. O vandalismo com morte, por exemplo, no PL, a pena chega a até quatro vezes a pena do homicídio simples… E a gente trabalha com esse ponto de vista, que o Estado pode dar outras respostas, que não sejam só o Direito Penal, que deveria ser a última instância. Esse PL tem poucas chances de entrar em pauta este ano, agora, o Congresso entra em recesso… Mas ele vai voltar, talvez já no ano que vem.

Esse PL, aqui em São Paulo [sobre o uso de máscaras], a gente estudou pra ver se conseguia fazer alguma intervenção, mas não havia mais tempo. Deve ir para o [governador Geraldo Alckmin] Alckmin [para sanção], agora em agosto. A ideia é fazer um tipo de abaixo-assinado, alguma pressão pra ver se a gente consegue, pelo menos, aumentar o custo político dele sancionar, mas não temos esperança dessa pressão surtir algum efeito, até porque a sensação que nós temos é que a população apoia essa ideia, ‘ah, o cara tá mascarado, então ele quer aprontar’. A ideia é sim, se ele aprovar, a gente ingressar com uma ADIN [Ação Direta de Inconstitucionalidade]. Além da questão do direito à expressão, também há uma questão de incompetência, pois o Estado de São Paulo não poderia regulamentar esse direito constitucional.

Adital: Como você analisa a cobertura da imprensa nesses episódios?

Rafael Custódio: Impressionante… A imprensa vem batendo muito forte. O que a gente vê é a exposição de uma verdade única, de um único lado da história. Na verdade, não se trata apenas de má fé das pessoas em acreditar naquilo que é veiculado, mas também falta muita informação às pessoas sobre o tema justiça, sobre como as leis defendem o direito de manifestação. Assim como também não podemos afirmar que se trata de má intenção a atitude da imprensa, mas sim que ela [a imprensa] tem a tendência de presumir como verdadeira e justa a atitude das autoridades. Assim, se um juiz toma uma decisão, se um policial prende, supõe-se que se trata de uma ação justa, que, aliado com a falta de informação, que acabei de comentar, legitima uma atitude que se trata, na verdade, de ilegítima.

Assim, nós da Conectas procuramos produzir nosso próprio conteúdo. Você vê como há 10 anos atrás era e como hoje, com a internet, é. A mídia alternativa, aí entram vocês da Adital, tem um papel importantíssimo em mostrar o outro lado, desinteressante para os donos de jornais, lado esse que, em outros tempos, não tínhamos nem a oportunidade de conhecer.

Em São Paulo, por exemplo, tivemos uma grande manifestação há poucos dias. Milhares de pessoas protestaram, pacificamente, por mais de quatro horas, e foi um grupo pequeno de 20, 30 pessoas, que ganhou as manchetes nacionais por depredarem uma concessionária. A mídia parece, assim, querer montar um “personagem-manifestante”, um perfil de alguém interessado somente em vandalismo, não pautando as reivindicações que estão sendo levantadas pelos movimentos sociais.

Por outro lado, foi exatamente a imprensa que ajudou a divulgar as imagens de agressões pela polícia contra os manifestantes, ela, aliás, também vítima dos policiais. Esse foi um lado positivo da cobertura midiática: nunca como antes se falou tanto na desmilitarização da polícia que, infelizmente, não conseguiu ainda sua tramitação definitiva para a democracia.

Adital: O que aprendemos com a Copa e o que poderemos tirar como exemplo para as Olimpíadas?

Rafael Custódio: Pelo que tenho conversado, não acredito que irá permanecer esse clima de protestos. A Copa foi um evento nacional, envolveu 12 cidades, então muitos brasileiros foram impactados, envolveram-se de alguma forma, foram obrigados a pensar como cidadãos. As Olimpíadas serão um evento mais regional, um contexto específico.

Houve uma desarticulação dos movimentos organizados já durante a Copa, pelo que observo de alguns comitês. De qualquer forma, caberá a nós mantermos o clima de reivindicações. Foi criado o Comitê Popular contra o Estado de Exceção, que é uma tentativa de manter a pauta de reivindicações, de continuar a luta. Se desarticulou ou não, temos que entender que é muito importante o que vem acontecendo. O poder público se acostumou a agir sem abertura e, agora, entende que não dá para agir dessa forma. Eles podem estar tentando, de todas as formas, impedir a organização dos movimentos sociais, mas, com certeza, uma lição vem aprendendo, que não são os únicos atores políticos. Talvez esse seja o principal legado da Copa: o diálogo. Sobre a reforma da polícia, por exemplo. As imagens das agressões ganharam o mundo. Agora, conseguimos, ao menos, colocar esse assunto em discussão.

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