“O meu lugar,
É cercado de luta e suor,
Esperança num mundo melhor”
Rio On Watch – A filha de Maria do Socorro, de 14 anos, escreveu este verso na garagem de sua casa, chorando enquanto olhava a casa adjacente a sua ser brutalmente demolida, sinalizando a partida de sua amiga e vizinha. Foi em abril, no início das temidas demolições de moradias na Vila Autódromo, e um burburinho de jornalistas e fotógrafos documentando a cena. Vários deles subiram a escada da porta de Dona Maria para terem uma melhor visão da destruição; azulejos de cozinha quebrados por marretas, estruturas de metal sendo retorcidas, equipamentos de perfuração atacando as paredes, e finalmente, uma escavadeira retirando o que havia sobrado do esqueleto da estrutura.
As demolições continuaram sistematicamente na Vila Autódromo por vários meses. Os próprios moradores estimam que até metade das famílias deixaram a comunidade, a maioria optando por um reassentamento no complexo habitacional Parque Carioca e o restante aceitando indenização.
Ativistas afirmam que a Prefeitura está impondo condições insustentáveis sob as famílias que permanecem e continuam resistindo. Muitos têm estado sem água ou eletricidade por meses. Maria parou de receber os serviços de telefone e internet, e diz que a Prefeitura até tentou remover os telefones públicos da comunidade. Na semana passada, a Prefeitura construiu uma parede divisória temporária na principal rua de acesso, limitando severamente a mobilidade dos moradores e bloqueando acesso ao parque infantil. Muitos moradores discutem que as implacáveis demolições de moradias possuem a intenção de cansar os esforços de resistência, criando um clima de medo, incerteza e desespero.
“Eles vão te matando aos poucos,” disse Maria. ”Eles derrubam a casa de teus vizinhos, eles passam na tua frente com a máquina quebrando… e assim eles vão demolindo, e assim eles vão devastando”.
“Cidade Fantasma”
José Arimateia mora há trinta anos na comunidade e é o dono da padaria local. Seu negócio bem sucedido é o que está pagando a faculdade de seus dois filhos. Depois de anos de resistência, José evidentemente se esgotou.
“Não há mais esperança, está difícil, está triste”, ele disse, acrescentando que a comunidade que era viva e pacífica agora parece uma “cidade fantasma”.
As ruas estavam desertas neste dia, exceto a presença de trabalhadores da demolição circulando através das casas parcialmente demolidas entre pilhas de escombros. Lotes vazios e móveis abandonados deixam um sentimento ruim. Apesar de somente uma fração das casas tendo sido demolidas, parece que isto teve um enorme efeito na psique da comunidade. Escavadeiras sobem as ruas como tanques de guerra e as equipes de demolição garantiram sua permanência ao criar escritórios em containers na entrada da comunidade.
Durante recente visita a Vila Autódromo, o sentimento prevalecente era que os moradores estavam “somente esperando”, seja por informação, água, ou outra rodada de negociações com a prefeitura.
O Sonho de Permanecer
Através de várias rodadas de negociação com a Prefeitura, as famílias manifestaram a recusa em aceitar somas subvalorizadas para suas casas, que já foram intituladas duas décadas atrás pelo governo do Estado. José pediu 1,3 milhões de reais, indenização de acordo com o preço de mercado para sua casa e padaria, única fonte de renda da sua família. Até o momento, a ele foi oferecido menos de metade desse montante e ele está à espera de uma contra-oferta da Prefeitura.
Maria lembra que a Secretaria Municipal de Habitação tentou convencê-la que com a indenizaçãoproposta ela poderia comprar “a mansão dos sonhos” no Recreio, um pouco mais a oeste.
“Não!” ela respondeu: “Meu sonho não é ir para uma mansão no Recreio não. Meu sonho é ficar na minha casa e o seu sonho é me tirar daqui!”.
Apesar dessa resistência, em face de uma bem documentada sequência de constantes mudanças de justificativas para a remoção, a coerção continua. As autoridades da prefeitura tentaram repetidamente intimidar Maria, dizendo: “Eu não estou ameaçando você, mas se for para a justiça, vai ser muito pior”.
Resistindo Até o Fim
Maria e seu marido se mudaram para a Vila Autódromo há 17 anos e começaram suas vidas com grande dificuldade. Ela está empenhada a ficar na Vila Autódromo, conforme seu direito legal e pela afirmação do prefeito, no ano passado, que disse que ninguém seria forçado a sair. Mas ela também está assustada e frustrada.
“Nós ainda não aceitamos (a compensação proposta pela Prefeitura), mas estamos com medo porque a noite está ficando muito esquisito aqui, com todas as pessoas saindo e suas casas sendo derrubadas”.
Maria pediu a seu inquilino do segundo andar–que já havia feito arranjos de aluguel em outra comunidade–que continuasse vivendo com eles para que sua filha adolescente não ficasse sozinha quando ela e o marido estivessem trabalhando.
Maria também está assustada devido a insegurança dessas negociações, particularmente depois da liminar que prevenia as demolições ter sido derrubada numa medida altamente controversa por parte do escritório da Defensoria Pública. Tensões internas e informações conflituosas têm gerado uma exacerbada desconfiança e incerteza.
“Então o que eu faço? Em quem eu devo confiar? Que garantias eu tenho?” ela pergunta. “A Defensoria Pública diz que não temos que sair, mas teremos garantias? Ninguém me garante o que o prefeito irá fazer. Ele é muito Maquiavélico, ele fala uma coisa e faz outra”.
Maria está prestes a chorar enquanto imagina sua família acordando com uma escavadeira na sua porta e um oficial informando que as únicas opções restantes são o Parque Carioca ou ficarem sem moradia.
Uma Nova Casa
Enquanto isso, antigos moradores da Vila Autódromo começaram a construir uma nova comunidade no complexo Parque Carioca, localizado a um quilômetro de distância. Marivaldo de Jesus da Silva me conduz ao complexo, entregando folhetos aos vizinhos sobre a “Reunião de Esclarecimento” patrocinada pela Prefeitura, que irá acontecer na manhã seguinte. Ele vai convencendo os vizinhos e adverte as crianças a tirar suas bicicletas da passagem de pedestres. Nós brincamos que ele deveria ter uma posição de liderança no complexo, um dos tópicos da reunião.
Há poucos meses na Vila Autódromo, Marivaldo expressava ambivalência sobre a moradia de reassentamento e estava esperando que rumores fossem esclarecidos antes que ele tivesse que mudar com a filha de cinco anos de idade. Agora, ele diz não ter nenhum arrependimento sobre sua decisão.
“A Vila Autódromo, ao longo dos anos, enfrentou várias batalhas e lutou muito. As pessoas estão exaustas de viverem sem infraestrutura, o que acarreta uma série de problemas no dia-a-dia. Então as pessoas resolveram mudar e tudo está bem aqui, Graças a Deus”.
Embora Marivaldo tenha tido uma experiência positiva, as opiniões sobre a moradia no Parque Carioca têm sido diversas. Maria do Socorro explica que muitos dos moradores que ela visitou se arrependeram da decisão devido aos altos custos, incluindo contas de luz que ultrapassam 200 reais por mês.
Apesar das fotos lustrosas de crianças se divertindo ao redor da piscina comunitária que saiu no jornal O Globo, o Parque Carioca parece um projeto habitacional fortemente vigiado. Blocos de apartamentos idênticos se estendem pela rua principal, cada qual com seu próprio portão de entrada e guarita de segurança. Os visitantes só podem entrar se acompanhados de algum morador, em contraponto a Vila Autódromo, onde os moradores geralmente se vangloriavam que: “Qualquer um pode ir e vir a qualquer hora do dia ou da noite”, em referência a segurança e ao acolhimento de visitantes.
Enquanto eu estava andando com Marivaldo, um representante da Prefeitura apareceu e perguntou quem eu era e o porquê eu estava tirando fotos.
A Última Esperança
De volta a Vila Autódromo, a resistência continua enquanto líderes pressionam o prefeito para entregar os plano de urbanização para as famílias que permaneceram. O prefeito mantém o discurso de que ele não pode divulgar o plano até que as famílias que têm interesse em sair o façam, o que os moradores dizem que é uma conveniente desculpa para disfarçar suas verdadeiras intenções e aumentar o clima de medo e incerteza sobre o futuro da comunidade, aumentando as chances de mais capitulações sob pressão.
“É tudo maquiagem”, explicou José, “Eu sabia desde o começo que o seu plano não era fazer nada para a comunidade”.
Famílias continuam a resistir de diversas formas. Muitos estão realizando encontros semanais para fortalecer os esforços de resistência e exigir prestação de contas neste momento de intensa pressão pela Prefeitura. Outros permanecem forte em face do assimétrico e geralmente coercivo processo de negociação, recebendo algumas das primeiras indenizações de moradias de favelas a preço de mercado na história da cidade. Outros estão criando uma nova vida e comunidade para si mesmos no Parque Carioca, com o sentimento de estabilidade depois de anos de luta e incerteza.
As últimas palavras de Maria ditas para mim têm o mesmo espirito de determinação que fortificou a Vila Autódromo durante décadas.
“Minha esperança é que nós ainda estaremos vivendo aqui na sua próxima visita,” ela me diz.