Por Carlos Alberto Lungarzo*, Correio da Ciddania
Ilmos. Colegas, Alunos e Funcionários da Universidade Estadual de Campinas:
Prezados amigos,
Sou professor aposentado do IFCH, e desejo fazer algumas reflexões sobre a deliberação do Conselho Universitário (CONSU) de 5/8, relativa à anulação do título de Doutor Honoris Causa (DHC), outorgado pela UNICAMP em 1973, a um dos maiores representantes e mais ativos organizadores e ideólogos da repressão, Jarbas Passarinho (JP).
JP foi governador biônico de Pará em 1964, ministro de trabalho (67-69), ministro da Educação (89-74) e outros cargos que não são relevantes a esta nota. O DHC foi concedido por seu trabalho à frente do ministério da Educação, cujos traços principais são bem conhecidos. Nessa função, assinou o AI-5 e, durante a cerimônia, pronunciou uma célebre frase: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência“.
Quase todas as honrarias são atos de sedução da instituição outorgante para com figuras que podem ser úteis aos políticos e operadores dessas instituições. Por sinal, há algo mais escandaloso que a prestigiosíssima Fundação Nobel ter dado o Prêmio pela Paz a Henry Kissinger, condenado em vários países, inclusive na Holanda, por democídios gigantes em Kampuchea?
O DHC dado a JP não tem função prática e talvez sirva de entretenimento a uma pessoa cujos dias ativos estão declinando. O grave é que uma instituição supostamente iluminista se recuse a repudiar um ato que, 41 anos antes, foi realizado pela terceira pior ditadura do Continente.
A ditadura tinha motivos para estar contente com JP. Ele conseguiu abrir a educação pública ao ensino privado, criar sistemas de colaboração com os EUA, introduzir o sistema de departamentos como medida para poupar dinheiro, eliminar do ensino básico as disciplinas que, teoricamente, deveriam ajudar a pensar (Filosofia, História, Sociologia, Psicologia) e substituí-las por matérias tecnológicas para formar, não cidadãos, mas serviçais baratos das empresas.
Dentro das escolas e universidades, o ministério estimulou e organizou a delação, os castigos contra alunos, professores e funcionários e a consolidação de uma espécie de sub-Estado policial.
Naquele período, a ditadura eliminou o orçamento fixo para a educação, criou o vestibular classificatório, um grande filtro para favorecer alunos da classe alta e média alta, e instalou novos “campi”, afastados dos centros urbanos, para tornar os novos estudantes cada vez mais despolitizados e indolentes ao mundo que viviam.
É forçoso reconhecer que JP conseguiu, de maneira bastante sutil e pouco violenta, adaptar a universidade aos objetivos da ditadura, coisa que o fascismo espanhol e argentino apenas conseguiram depois de assassinar milhares de estudantes, professores e intelectuais.
A eficiência de JP talvez só tenha sido superada pela de Bernhard Rust, aquele que proibiu o ensino da teoria da relatividade, por considerá-la terrorista.
O fato de que em 2014 existam 20 membros do CONSU (que são, além de professores, representantes dos outros professores numa universidade importante) que defendam a glorificação de JP mostra, sem dúvida, que JP foi eficiente: conseguiu esvaziar as cabeças, e 20 delas, pelo menos, ainda continuam vazias.
Finalizo fazendo algumas sugestões:
- Sugiro que os nomes dos 20 professores (10 que votaram contra a revogação e 10 que se abstiveram) sejam divulgados amplamente nas universidades públicas do país, em outras Comissões da Verdade e em organismos internacionais de desnazificação, como há na Argentina, Chile e Uruguai.
A outorga de um DHC deixa de ser um título acadêmico quando se aplica com finalidade abertamente política e passa a interessar a toda a sociedade. Em 1980, a faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires concedeu um DHC a um professor por ter identificado e delatado seus alunos, militantes marxistas que logo foram assassinados. Anos seguintes, a justiça anulou a honraria, passando por cima do Conselho Universitário da faculdade. Creio que o mesmo pode ser feito aqui, para anular a decisão do CONSU.
- Creio que se deve dar máxima difusão aos partidários de homenagear um terrorista de Estado. Se eles têm direito a bajular os tiranos, nós temos direito a fazer conhecer os nomes dos bajuladores.
- Também se poderia fazer um abaixo assinado e abrir um site para recolher opiniões sobre este sujo e lamentável assunto.
- O único que não pode se fazer é nos resignarmos a conviver com a ideologia dos anos 60, agora revivida.
Atenciosamente,
Carlos Alberto Lungarzo.
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*Carlos Lungarzo é professor aposentado da Unicamp, ativista dos direitos humanos e membro da Anistia Internacional.