Veja uma Canaã dos Carajás que a Vale não mostra

morador de canaã

Por Cláudio Castro, em Seminário Carajás 30 Anos

O que diz a Vale e o que diz a população de Canaã dos Carajás sobre o município

A cidade de Canaã dos Carajás, encravada na Amazônia, nas proximidades do novo megaempreendimento da Vale na região, a Mina S11D, e ainda na área de influência da exploração da Serra de Carajás, virou peça de propaganda da empresa na televisão e na Internet. A julgar pelo que dizem moradores da cidade, no entanto, a Canaã que aparece na propaganda nada tem a ver com a Canaã real, que sofre os impactos do “desenvolvimento” propagado pela Vale.

Uma das peças publicitárias mostra “a história de uma cidade e de um chaveiro que experimentaram juntos o desenvolvimento”, diz o filme da Vale, que parte do perfil do chileno David Perez, 57 anos, para mostrar a força de sua influência na região, altamente positiva, segundo tenta demonstrar. No filme, David alcançou o êxito nos negócios depois de participar de dois cursos “apoiados pela Vale em Canãa”. O perfil da cidade, por sua vez, não aparece na peça: sem dados que atestem as benesses da proximidade com a empresa, apenas são feitas imagens, muitas delas aéreas levando a crer que a história de sucesso do personagem David confunde-se com a história da cidade.

Não foi o que atestaram vários moradores de Canaã dos Carajás que participaram do Seminário Internacional Carajás 30 Anos: resistências e mobilizações frente a projetos de desenvolvimento na Amazônia oriental, em sua etapa realizada na cidade de Marabá, no estado do Pará, em março deste ano.

Durante o Seminário, moradores de Canaã dos Carajás relataram vários problemas relacionados aos impactos da presença na Vale na região: impactos na juventude, na infraestrutura do município, de desrespeito com os moradores de Canaã, com o maio ambiente, enfim, uma história muito diferente da que é mostrada no vídeo produzido pela empresa. O filme, aliás, demonstra uma estratégia denunciada pelos participantes do Seminário: a Vale adapta-se ao contexto, alternando sua identidade de acordo com o que lhe convém: no filme, por exemplo, é mostrada uma cidade próspera como se isso fosse consequência de sua influência na região. Assim, ela aparece como se fosse um agente “público”, mas quando é cobrada pela população de qualquer área atingida por suas operações, acionada sua face privada, e diz que nada pode fazer para resolver problemas que não são de sua competência.

Espionagem – mas não é apenas no discurso que a Vale faz as vezes de agente público. A empresa, conforme denunciaram vários movimentos sociais que atuam e são formados por comunidades da região, já denunciaram a espionagem feita pela corporação, atuação essa que foi inclusive alvo de audiência no Congresso Nacional. A professora e pesquisadora Edna Castro, da Universidade Federal do Pará, citando o jornalista Lúcio Flávio Pinto durante sua palestra no Seminário Carajás 30 Anos em Marabá, esse é um comportamento grave, pelo fato de a empresa estar ocupando um lugar que não lhe cabe, e isso é impensável em qualquer sistema democrático. Para Edna Castro, o autoritarismo da empresa fica explícito na denominação que esta dá aos arquivos das pessoas a quem mantém sob vigilância ilegal: prontuário (palavra do jargão policial). Castro alerta ainda para o fato de a prática da espionagem vir sendo reproduzida por outras megacorporações que atuam na Amazônia. Ela chama atenção para o fato de essa ser uma pratica presente também nas demais grandes empresas. A Petrobras, por exemplo, que ocupa a cada momento um novo espaço na Amazônia e, tal como a Vale, abre espaço para outras a ela associadas. O Consórcio Norte Energia (responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte), seria outro exemplo violento e autoritário, com espionagem a pesquisadores, movimentos sociais, agentes políticos, jornalistas, e, tal como as demais corporações, acha-se com direito ao território, acima das populações que tradicionalmente o ocupam.

População denuncia

Durante o Seminário, moradores de várias cidades do sul e sudeste paraense, denunciaram a contradição do discurso de responsabilidade ambiental da Vale que, mesmo dizendo-se correta ambientalmente, funciona numa área de proteção – a Floresta Nacional de Carajás, cujo acesso é negado às populações.

Outra denúncia é a que diz respeito á geração de empregos propagada pela empresa em veículos como a Internet. Os povos da Amazônia atestam: a mineração não gera empregos estáveis e em grande número. “É preciso questionar em quais condições esses empregos são gerados; questionar a dicotomia entre preservação de recursos naturais versus geração de empregos, como se se devesse escolher entre uma coisa ou outra”, apontaram os participantes do Seminário durante a socialização das discussões feitas nos grupos de trabalho do Seminário.

Os participantes do grupo de trabalho Mineração e Meio Ambiente, por sua vez, questionavam: “E quando essa mina acabar, como é que esse povo vai viver?” indagavam, sobre a situação dramática em Canaã dos Carajás, apontando a falta de escola, de posto de saúde, de infraestrutura urbana. Tudo o que não é mostrado no filme sobre o desenvolvimento da cidade, produzido pela Vale, que segundo apontam, faz fortuna na região. Para os que participaram do GT, a situação piora com a cooptação de lideranças, como os dos sindicatos de trabalhadores nos municípios afetados. Uma das discussões foi sobre como resgatar as entidades para as lutas dos trabalhadores e das populações: os poucos que insistem em não aderir à força de atração ou à violência da empresa vão sendo criminalizados: vários respondem a inúmeros processos na justiça, mas dizem que, mesmo se as ameaças fossem motivo para recuar, não há, para eles, como fugir dessa luta.

Os participantes do Seminário apontaram ainda o conluio entre o Estado e o capital que devassa a Amazônia: as populações são ignoradas pelo Estado, e não são ouvidas quando da implantação de projetos de desenvolvimento. Além disso, apontam que os instrumentos de repressão estão mais fortes, com o Judiciário, com a Força Nacional de Segurança batendo nas pessoas, configurando grande repressão. Segundo eles, é preciso coragem, força e determinação contra esse quadro, “e que esse seja um movimento de massa, para resgatar aquilo que seja de necessidade do trabalhador”, diz o líder Raimundo, do Cepasp (Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular).

Racha Placa: a Canãa que o vídeo da Vale não mostrou

Os participantes seguiram, durante a Etapa Marabá, relatando um mundo muito diferente do mostrado no vídeo da Vale sobre a região. Foi lembrada a situação em Serra Pelada, por exemplo, de conflitos, mas também de reorganização em torno de uma educação popular, em que se questione a realidade dada e não se aceite passivamente o quadro atual como inelutável.

Foi citado ainda o quadro na Vila Racha Placa, onde a comunidade luta para existir e ter acesso a serviços como educação de qualidade e preservação de sua identidade cultural; para que a educação não seja vista apenas como formação de mão-de-obra técnica, para serviços braçais, mas sim como tratando de seres pensantes; luta para que os impactos da exploração da S11D não destrua a juventude, que vem perdendo suas poucas e precárias áreas de lazer para a expansão do projeto; para que a população não seja, como sempre, colocada à parte das discussões e tomada de decisões; para que haja emprego sem que este seja em condições degradantes, precárias ou análogas à escravidão, como é comumente observado; para que a juventude, em sua maioria negra, pobre e da periferia, não seja assassinada a toda hora e excluída, como vem acontecendo.

Os participantes do Seminário observaram, nesse contexto, algo que vem sendo trabalhado pelos movimentos sociais na região da Amazônia oriental: os problemas estão interligados. As ameaças e violações de direitos trabalhistas, de povos indígenas, de camponeses, ou seja, os impactos do dito desenvolvimento atingem a todos. Assim, é preciso dar visibilidade a esses problemas, contrapor os discursos, unir forças, debater nas escolas temas como mineração, cobrar o papel das universidades públicas da região (os atingidos apontam que os pesquisadores vão às comunidades para estudá-las, mas o resultado desse estudo não retorna). Enfim, “é preciso ir para o ataque” e ter uma estratégia, que implica nessa união de esforços e na reflexão: “É isso o que queremos?”.

Veja uma Canaã dos Carajás que a Vale não mostra

O vídeo a seguir, diferente do filme publicitário da Vale sobre Canaã dos Carajás, mostra uma cidade real, com inúmeras carências – muitas delas aprofundadas pela presença do grande capital, representando pela Vale, na região. Na própria página da empresa na Internet, um depoimento de uma jovem internauta é revelador: “Minha cidade também já passou por esse desenvolvimento meio que temporário, apenas durante a instalação do projeto, Onça Puma. Bem aqui do lado do projeto S11d da Vale em Canaã. Posso dizer que estamos vivendo na região mais rica do país e a menos desenvolvida. Deveria ser diferente essa região tão importante, que exporta minério para o mundo”.

O depoimento de um morador de Canaã dos Carajás traz à tona o outro lado e, com ele, a realidade desse desenvolvimento, tão alardeado pela propaganda da Vale.

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