Alex Rodrigues – Repórter da Agência Brasil
Crimes contra os direitos humanos atribuídos a agentes do Estado que atuaram na repressão à Guerrilha do Araguaia voltam a ser discutidos hoje (12), em audiência pública na Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O movimento, que atuou na década de 70, tinha o objetivo de enfrentar e derrubar o regime militar instalado no país após o golpe de 1964.
Nesta terça-feira, a comissão ouve dois ex-militantes que foram presos e torturados, a parente de um desaparecido e uma advogada que falará sobre as implicações da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em 2010, segundo a qual graves violações aos direitos humanos não podem ser anistiadas.
Quatro militares acusados de participar de crimes como prisões ilegais, tortura, assassinato e ocultação de cadáver foram convocados a prestar depoimentos, entre eles Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió. Nenhum dos quatro compareceu à audiência pública, aberta à imprensa e a outros interessados.
Considerado um dos episódios mais violentos registrados durante o último período de ditadura militar (1964-1985), o combate aos integrantes do PCdoB que aderiram à guerrilha armada e lutaram contra o regime resultou, segundo a comissão, no desaparecimento de 70 militantes e moradores da região e na morte de oito militares em circunstâncias nem sempre devidamente esclarecidas.
Cerca de 10 mil militares atuaram em três campanhas e operações de inteligência deflagradas a partir de abril de 1972, seis anos após a chegada dos primeiros militantes à região. “Não tínhamos mais alternativa de resistência ao regime. Por isso, fomos à luta armada”, disse Danilo Carneiro, preso em abril de 1972 e vítima de torturas e maus-tratos que o levaram a pesar 38 anos, ao ser transferido de Belém para Brasília, onde continuou a ser agredido e interrogado.
“Foi quando me avisaram que, a partir dali, eu iria conversar com quem de fato sabia conversar [interrogar]. Havia 20 torturadores na cela. Me arrebentaram. Encapuzado, eu engolia sangue e desmaiava. Eu só tinha um desejo: morrer, pois não tinha outra saída que não fosse entregar meus companheiros. Tamanho era esse desejo [de morrer] que comecei a dar cabeçadas nas grades de ferro da cela e só não fui em frente porque outro companheiro preso conseguiu me convencer do contrário”, lembrou Carneiro.
Ao falar sobre o andamento das investigações da CNV sobre mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, o secretário executivo da comissão, André Saboia, destacou que, na primeira das três expedições à região, militares das Forças Armadas ainda fizeram prisioneiros. Daí em diante, passaram a executar sumariamente não só os militantes, mas também camponeses acusados de colaborar com os guerrilheiros. Muitos desses corpos até hoje não foram localizados.
“Isso não era fruto da ação de alguns psicopatas, mas sim de uma ação sistemática e estruturada, na qual as Forças Armadas têm responsabilidade”, afirmou o atual coordenador da comissão, o advogado Pedro Dallari. Para ele, esclarecer os desaparecimentos, as mortes e a participação de cada um no episódio é “um dos temas de maior relevância na agenda da comissão”, tanto que membros do colegiado aprovaram a inclusão, no relatório final, de um capítulo inteiramente dedicado à Guerrilha do Araguaia.
Ao comentar o teor do depoimento de alguns militares anteriormente ouvidos pela comissão, Saboia reproduziu trecho da declaração do sargento João Santa Cruz, que reconhece que os parentes das vítimas têm direito de saber o que de fato aconteceu e de resgatar os corpos dos desaparecidos para sepultá-los. Cruz acredita que isso daria fim às buscas, poupando recursos das próprias Forças Armadas.
De acordo com o ex-sargento, a “chave” para esclarecer o assunto é o major Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, “pois ele tinha acesso a tudo”. Um dos quatro militares convidados a participar da audiência e prestar depoimento, Curió informou que não poderia comparecer por motivos de saúde, já que está internado em um hospital das Forças Armadas devido a exames clínicos feitos na véspera.
“A forma como o Estado brasileiro trata essa questão é, no mínimo, muito cruel”, afirmou Crimeia Alice Schmidt de Almeida, ao endossar as críticas à resistência de órgãos do governo de entregar à comissão documentos que podem ajudar a esclarecer os fatos. Presa em dezembro de 1972, quando estava grávida, Criméia disse que foi barbaramente torturada.
“Eu passava dia e noite sendo interrogada. Quando, por cansaço, cochilava, me acordavam com choques elétricos. Nunca me penduraram no pau de arara, eu acho que porque a barriga não permitia”, contou Crimeia. “Diziam que eu ia morrer em um acidente de carro. Todas as noites eu era levada até o carro, onde passava a noite esperando que saíssem com o carro me levando. Ao fim de um tempo, eles diziam que havia acontecido algo e que o ‘acidente’ ficara para a noite seguinte”, acrescentou a militante, que deu à luz na prisão. “Ele [o filho] parecia um daqueles meninos de Biafra, que, na época, era o país africano da fome. E, logicamente, com uma mãe neurótica, meu filho, como todos nós, tem suas sequelas.”
Criada em 2011, por lei federal, a Comissão Nacional da Verdade tem o objetivo de apurar as violações aos direitos humanos registrados entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. A princípio, os trabalhos não tem a finalidade de incriminar ou servir de base à recomendação de punição aos militares acusados de violar direitos humanos, mas sim esclarecer os fatos para recompor a “verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. As conclusões da comissão deverão constar do relatório final a ser apresentado até 16 de dezembro deste ano, mas a data ainda pode ser prorrogado. Mais de mil depoimentos já foram colhidos pela CNV.
Edição: Nádia Franco.