Por Bianca Santana*, em Brasil Post
“Perder o pai já é uma tragédia
Perdê-lo na infância é sentir saudade
Não do que viveu, mas do que poderia ter vivido”
Crisântemo, de Emicida e Dona Jacira
Criança tomando espuma de cerveja. Pai herói, de peito estufado, cumprimentando todo mundo. A certeza de que não vai acabar bem. Quando vi o clipe Crisântemo pela primeira vez, não consegui chegar ao final. Uma dor na boca do estômago e uma vertigem nauseada me fizeram parar e detestar. Só podia ser história de pobre contada para a classe média. Não parecia possível alguém que viveu essas cenas, tão corriqueiras nas periferias, gostar de algo tão doloroso.
Meu pai sempre deixou provar a espuma da cerveja. Era muito amado e respeitado por onde passava. E levava uma vida que anunciava como acabaria mal. Ele era bicheiro, daqueles com corrente de ouro e camisa colorida que costumava ter em novela. Eu sabia que era ilegal. E rezava muito cada vez que passava na frente de um presídio ou via um carro de polícia. Pelos presos, mas principalmente pelas filhas dos presos. Na minha fantasia, mais cedo ou mais tarde meu pai estaria na cadeia. Até que, por um milagre, ele saiu do jogo do bicho e abriu um bar.
O dinheiro acabou. A segunda esposa foi embora com o filho mais novo. Ele foi encolhendo os ombros, retraindo o peito e ficando cada vez mais quieto. Num domingo, fui visitá-lo e ele não abriu a porta. Abusada, pulei a janela, e percebi que ele fumava um cigarro, já no final. Ele não estava dormindo. Não abriu a porta porque não quis. Percebi a tristeza, mas me sentia feliz porque a vida agora era honesta.
No dia seguinte, enquanto eu fazia lição de geografia, o telefone tocou, mas minha tia não quis falar comigo. Nervosa, pediu para chamar minha mãe. Eu sabia o que tinha acontecido. Sabia que ele tinha morrido. Depois que minha mãe bateu o punho na mesa e deu um grito de fúria, foi pra longe de mim, falar com minha avó e meu tio. Depois, me chamou no quarto e contou.
Por 17 anos tive muita raiva. Lembrava de um homem ausente, irresponsável, pouco comprometido com qualquer coisa. Evitava lembrar, na verdade. Depois que meu pai se suicidou, construí as piores memórias. Como ele podia ter me abandonado? Como não pensou em mim antes de puxar o gatilho? Não era possível que ele me amasse. Ele não era um pai de verdade.
Precisei de uns 15 anos, muitas leituras, terapia e sofrimento para entender que a morte do meu pai não tinha a ver comigo. Que o suicídio dele não era falta de amor por mim. Que a história de vida daquele homem inteligente, articulado e ambicioso era a mesma de muitos jovens pobres. Que o genocídio dos jovens negros nas periferias do Brasil é um problema social grave. Que contar a minha história era também um ato político.
Precisei de 17 anos para acessar outras memórias do meu pai. Para lembrar de quando me ajudou a decorar as capitais do Brasil, de como ele falava que o meu cabelo era lindo, de como o abraço dele era único e me fazia sentir segura. Só depois de reencontrar esse pai amoroso consegui ver o clipe do Emicida até o final. E chorar a minha dor que é a de tantas pessoas. Uma dor de injustiça. Uma dor de saudade.
– *Jornalista especialista em educação e cultura digital, professora da Faculdade Cásper Líbero, idealizadora da Casa de Lua.